Pernambuco

LITERATURA

Os Vivos e os Outros

José Eduardo Agualusa aborda confinamento em novo livro de ficção

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Agualusa ambientou 'Os vivos e os outros' na Ilha de Moçambique, com enredo em torno de um encontro literário - Divulgação

Quando terminou de escrever Os vivos e os outros, José Eduardo Agualusa não imaginava que estaria, poucos meses depois, vivenciando uma experiência similar à de seus personagens. Era novembro de 2019 e o premiado escritor angolano (Independent Foreign Fiction Prize por O vendedor de passados e Prêmio Literário Internacional Impac de Dublin por Teoria geral do esquecimento, entre outros) finalizava este que é seu 15º romance, recém-lançado em Portugal, pela Quetzal Editores, e, no Brasil, pela Planeta de Livros, através do selo Tusquets. Entre fevereiro e março do ano seguinte, o mundo parou em decorrência da pandemia do novo coronavírus, o lema passou a ser o do #fiqueemcasa, as fronteiras entre os países foram fechadas e a sensação era de um medo apocalíptico jamais vivenciado pelas presentes gerações, beirando os relatos ficcionais sobre o fim do mundo. 

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Seriam as semelhanças entre o universo cativante de Agualusa e a dura realidade de 2020 mais um exemplo da potência profetizadora da arte? Difícil aqui – em se tratando de um autor cujas narrativas são sempre um tanto quanto mágicas e que eleva a linguagem a um patamar inteligentemente simples e rebuscado – ser meramente racional. Há um componente fantástico inegável, a começar pela cidade que acolhe o livro, ela também um personagem. 

O romance se passa na Ilha de Moçambique, território localizado no norte do país e considerado, desde 1991, Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco. O próprio Agualusa encontrou morada na cidade, há cerca de quatro anos, e divide com seus seguidores do Instagram lindas imagens do lugar. Um festival literário – o primeiro da ilha – está prestes a acontecer e tudo começa justamente com a chegada dos escritores, vindos não só de Moçambique como de diversos outros países africanos, e segue por uma semana, tendo seus capítulos divididos do primeiro ao sétimo dia. O tempo de celebração pelos reencontros e descontração é interrompido já no primeiro dia, com o aparente começo do fim, “a noite rasgando-se num enorme clarão, e a ilha separando-se do mundo. Um tempo terminando, um outro começando”.

Os moradores da ilha e os convidados do festival se veem então isolados do resto do mundo, sem sinal de telefone, sem acesso à internet. Até o contato com o continente se torna inexistente, uma vez que nuvens pesadas e tempestades bloqueiam o acesso à ponte, enquanto o clima da ilha permanece ensolarado e aberto. Quem está à frente da organização do evento é o escritor e ex-jornalista Daniel Benchimol e a artista Moira Fernandes, casal já conhecido dos leitores de A sociedade dos sonhadores involuntários, livro lançado por Agualusa em 2017. Se a primeira narrativa marcava o encontro entre o angolano e a moçambicana na África do Sul e o começo da paixão, enquanto Daniel se aventurava na busca pelos mistérios da linha tênue entre sonho e realidade, agora eles residem na Ilha de Moçambique e estão à espera de um bebê. A não ser pelo fato de ser um excelente livro, não há necessidade de ter lido A sociedade dos sonhadores involuntários para mergulhar no universo de Os vivos e os outros, já que não se trata de uma continuação.

O casal precisa não apenas lidar com a situação inusitada justo nos últimos dias da gravidez de Moira, como também dar atenção às demandas de seus amigos escritores e continuidade ao festival. A narrativa foca em alguns dos autores convidados. Com a perspicácia e ironia característica de Agualusa, somos apresentados ao tranquilo e sábio Uli Lima, conterrâneo e amigo de longa data de Daniel; às moçambicanas Ofélia Eastermann – autora veterena muito segura de si – e Luzia Valente, jovem poeta que está ainda à procura de sua voz literária; e aos nigerianos Jude d’Souza – autor digital influencer que carrega sempre consigo uma câmera Leica –, e Cornélia Oluokum – a grande atração do festival, autora reverenciada no mundo todo e radicada em Nova York. Outras figuras vão compondo o dia a dia dessa estranha semana, mas, sem dúvida, as mais peculiares talvez nem sejam os escritores e, sim, personagens de suas obras mais famosas que aparentam ter saído das páginas dos livros diretamente para a Ilha de Moçambique…

Há uma razão para esse súbito isolamento tecnológico, mas ela só será revelada ao final do livro. Ao longo de uma semana, vamos sendo guiados com curiosidade e leveza pelos mistérios da ilha encantada, que parecem ser indissociáveis do fazer literário. Na vida real, grandes nomes da literatura de língua portuguesa passaram pela ilha (Camões teria terminado de escrever Os lusíadas durante estadia de dois anos), e na literatura do autor angolano a ínsula é palco de reflexões e debates sobre o ofício do escritor e o papel da literatura hoje. “– Não tem receio de que seus leitores o confundam com ele”, questiona Daniel a Jude, sobre seu protagonista “egocêntrico, narcisista, machista e misógino.” “– Agrada-me explorar a possibilidade de ser um outro, diverso de mim, continuando a ser eu mesmo. Também me agrada confundir os leitores”, responde o nigeriano. 

Em outro momento, Daniel Uli e Cornélia estão desabafando sobre os estigmas e estereótipos criados pela crítica europeia em torno de autores africanos. “A literatura africana deveria servir para confirmar a África imaginada por eles. Um escritor africano que optasse, eu sei lá, por escrever um romance sobre a guerra civil espanhola seria considerado um alienado”, analisa o anfitrião. Pílulas que vão nos revelando um pouco também dos pensamentos do próprio Agualusa acerca dessa narrativa metalinguística. 

Privados do contato com o mundo exterior, todos mergulham não apenas nessas reflexões coletivas, como também precisam aceitar que essa viagem é um recolhimento para dentro de si. É o momento de fazer as pazes com questões malresolvidas do passado, muitas delas relacionadas ao extraordinário aparecimento de seus personagens. O tempo, aliás, é outro tema central em Os vivos e os outros: o passado colonial e o presente da ilha, os sete dias que delimitam o desenrolar da narrativa e, principalmente, como a percepção do tempo é alterada a partir do momento em que não há celulares e outros aparatos tecnológicos. A iminente ideia do fim também acelera – ou retarda? – essa consciência.

Assim como no mundo real, a pandemia representou o fim de um mundo como o conhecíamos, o término dessa inusitada semana na Ilha de Moçambique ressignificou para os personagens a essência da vida humana e da literatura. “Os anos multiplicam-se e terminam ocupando tudo. Então, o tempo para. Olhas para dentro de ti e vês os instantes inumeráveis, todos imóveis, cada segundo da tua vida absolutamente estático, e voltas a sentir a alegria ou a tristeza que experimentaste enquanto passavas por eles. A cada estado, quando o tempo para de crescer dentro de nós, a isso chamamos morte.”

*Valentine Herold é jornalista e mestre em Sociologia