ESTADOS UNIDOS

QAnon: a teoria conspiratória que mirou a política e acertou as relações pessoais

Americanos estão se afastando de amigos e familiares por conta de uma teoria que coloca Donald Trump como salvador

Brasil de Fato | Los Angeles (EUA) |

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Apoiador de Donald Trump segura símbolo do QAnon com a bandeira americana enquanto aguarda o presidente em um comício na Pennsylvania (agosto/2018). - Rick Loomis/AFP

L.B. está em luto por uma tia que ainda vive. "Eu e minha família sentimos como se a tivéssemos 'perdido' mesmo, e ela era o meu braço direito", contou a estadunidense ao Brasil de Fato, em condição de anonimato, para não expor a família.

Já Alx Uttermann não faz segredos e lamenta o afastamento de grandes amigos publicamente. Embora as relações tenham natureza diversa, todas acabaram pelo mesmo motivo: a mais recente teoria da conspiração a abalar os EUA, o QAnon.

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No caso de Alx, foram cinco amigos "perdidos" – e não só americanos. "Uma amiga sul africana e um amigo alemão também compraram essa falsa narrativa e se afastaram, por não conseguirem aceitar os fatos", relata a terapeuta espiritual, que mantinha uma parceria de mais de duas décadas com alguns dos agora ex-amigos.


Embora todos os desarranjos afetivos tenham acontecido no último ano, essa teoria conspiratória é anterior ao ano eleitoral americano. "O QAnon começou em 28 de outubro de 2017, com alguns posts na internet, numa página chamada 4chan", afirma o James A. Beverley, professor e doutor da Tyndale University e autor do livro "The QAnon Deception."

Segundo o estudioso, a narrativa falaciosa consiste basicamente em dizer que a elite do partido Democrata comanda uma espécie de esquema de tráfico internacional sexual de crianças e que Donald Trump seria um salvador da pátria. "Tudo tomou uma outra dimensão quando Q, um personagem enigmático, se auto proclamou uma figura militar que trabalhou com Donald Trump por três anos", diz Beverley. 

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Ainda que soe absurda, a teoria se espalhou. Uma reportagem publicada em setembro de 2020 pela Revista Forbes, citando dados de uma pesquisa feita pela Daily Kos/Civiqs, indicou que 56% dos republicanos acreditavam no QAnon

Para o cientista político especializado em teorias da conspiração, Jospeh Uscinski, a popularidade do QAnon talvez possa ser associado a sua gamificação.

"O QAnon é diferente no sentido que parece um videogame. As pessoas podem ir para essas salas de bate-papo anônimas, onde pegam dicas secretas e tentam decodificá-las. Depois de inventarem seu próprio significado, elas compartilham e discutem com a comunidade online. Então existe um aspecto de jogo nisso, e uma identidade de grupo, uma vez que as pessoas se sentem parte de alguma coisa", explica.

Para Beverley, o QAnon também precisa ser estudado como um culto. "Se você tem um grupo de pessoas acreditam cegamente em uma coisa, podemos dizer que é uma espécie de culto. E eles podem dizer algo absurdo, como 'o Brasil, na verdade, fica na Europa', e não há prova que os convença do contrário", analisa.

Rompimento de relações

Foi justamente essa falta de diálogo e essa resistência em aceitar evidências inclusive científicas que foram a gota d'água para Alx Uttermann e seus amigos. Ela conta que com todos eles tentou ponderar argumentos comprovados, mas que cada um, a sua maneira, descartou suas investidas. 

"É muito frustrante saber que não havia nenhuma lógica, não havia nenhum fato que eu pudesse apresentar para mudar a perspectiva deles. Parece um tipo de doença mental, que tem que cumprir seu ciclo. Tudo o que contrapõe os argumentos deles apenas fortalece a ideia de que elas são vítimas e perseguidas, o que significa que você é estúpido e eles realmente sabem a verdade", conta.

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Enquanto as diferenças se resumem a salas de estar e bate-papo, pouco temos a nos preocupar. O problema é que alguns seguidores do QAnon partiram para violência, já que se sabe que algumas das principais figuras que participaram da invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro, pertenciam ao movimento.

Enfraquecimento QAnon

De acordo com o monitoramento de Beverley e Uscinski, o movimento tem perdido força à medida que suas previsões não se concretizam. "Eles disseram que Trump voltaria à Casa Branca em diferentes datas. Agora a aposta é que o ex-presidente retome o comando na última delas quinta-feira, 4 de março, através de um golpe militar", conta o professor da Tyndale University.

Segundo a rede americana ABC News, a polícia do Capitólio está monitorando o movimento e que já foram descobertos planos de grupos que pretendiam, novamente, invadir a sede do Congresso dos Estados Unidos. A segurança na região foi reforçada.

Envolvido na falácia do QAnon, Uscinski conta que recebeu ameaças depois que o movimento Q publicou que o pesquisador faria parte do que o personagem fictício chama da "estado profundo". "Eu não sei como provar para os outros que eu não tenho nenhuma conexão com o estado profundo, mas eu sei que não tenho, e por isso sei que Q é um mentiroso", conta.

São atitudes como essa, de trazer a verdade a público, que podem enfraquecer o QAnon, segundo Beverley. "Eu tentei pessoalmente entregar a Trump alguns memorandos, porque acho importante convencê-lo a se afastar do QAnon abertamente, mas não acho que ele vai fazê-lo, infelizmente", relatou à reportagem do Brasil de Fato.

Apesar da resistência do republicano em condenar a teoria conspiratória, os especialistas avaliam que o movimento esteja enfraquecendo por si só e que a derrota do dia 4 de março pode ser a pá de cal para enterrar essa narrativa mentirosa de vez.

O problema, contudo, é que o QAnon pode se metamorfosear e se transformar numa nova teoria conspiratória, tão ou mais perigosa que a "original". 

Para aqueles que não sabem exatamente como distinguir uma teoria conspiratória, Uscinski explica: "o que caracteriza uma teoria da conspiração é a percepção acusatória, no qual um pequeno grupo de pessoas poderosas está trabalhando em segredo para benefício próprio, contra o bem comum". O cientista político lembra, porém, que conspirações, como Watergate, existem, mas elas são amparadas por fatos. Na dúvida, portanto, ouça sempre os especialistas. 
 

Edição: Marina Duarte de Souza