Novo governo

Qual o papel do fundamentalismo religioso na oposição a Joe Biden nos EUA?

Biden pretende reverter medidas conservadoras do mandato de Donald Trump e discurso religioso ganha terreno na oposição

Brasil de Fato | Los Angeles (EUA) |
Simpatizantes de Donald Trump invadem violentamente o prédio do Capitólio dos EUA após a manifestação "Stop the Steal" em 06 de janeiro de 2021 em Washington DC - SPENCER PLATT / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / Getty Images via AFP

A mesma Bíblia que foi instrumentalizada para "justificar" a escravidão, a submissão feminina e a proibição do casamento inter-racial agora é usada pela extrema-direita dos Estados Unidos para a manutenção de suas crenças e privilégios, fazendo oposição ao atual governo.

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Embora não tenha discutido abertamente questões diretamente relacionadas a religiões, como a isenção fiscal concedida às igrejas, a gestão de Joe Biden (Partido Democrata), confirma que pretende reverter algumas medidas conservadoras herdadas do mandato anterior, de Donald Trump (Partido Republicano).

A revogação da proibição do financiamento público a organizações que oferecem auxílio e proteção ao direito reprodutivo da mulher, por exemplo, seriam algumas delas.

A nova equipe a ocupar a Casa Branca também se mostra favorável às causas LGBTQI+ e de descriminalização das drogas, que são pontos condenados por grupos religiosos.

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"Ainda que vejamos esses desdobramentos atuais, eu diria que o envolvimento da religião com a política, nos Estados Unidos, começou mesmo na Guerra Civil, quando algumas igrejas ao sul do país, sobretudo as igrejas Batistas, apoiavam abertamente a escravidão", explica ao Brasil de Fato a jornalista Anne Nelson, autora do livro Shadow Network.

A partir de 1964, quando os Direitos Civis foram aprovados, a lei estabelecia que, para receber qualquer benefício ou compensação financeira do governo, uma instituição deveria ser integrada – ou seja, não praticar a discriminação por cor.

As igrejas se opuseram. Não queriam ser integradas, mas queriam a isenção tributária. Foi então que montaram o Conselho de Política Nacional que virou instrumento político dos fundamentalistas, promovendo seus aliados no Congresso e perseguindo seus opositores.

Assim eles se organizaram contra os republicanos moderados e ficaram ao lado dos radicais, ligados à extrema-direita. Desde então, a estratégia desses grupos mais extremistas se mantém igual, e é replicada em diversos países, inclusive no Brasil.

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"Esse braço do protestantismo nos Estados Unidos, e também no Brasil, vai atrás de pessoas em áreas rurais, onde há menos acesso à educação. Muitos movimentos pentecostais e evangélicos fazem o mesmo: de buscar aqueles que participam das religiões por questões emocionais, e não pelo estudo da Bíblia. São pessoas mais fáceis de serem 'direcionadas'", afirma Nelson.

Quem conhece de perto todas as curvas desse movimento religioso nos Estados Unidos é o escritor Matthew Sheffield, que se auto-intitula "ex-mormon" e "ex-conservador".

Segundo ele, que teve um livro censurado ao abordar o assunto, o avançar da "fé" na política americana preocupa pelo radicalismo e pela ameaça democrática que representa.

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"É um dado conhecido que jovens americanos brancos são menos religiosos, assim como também estão mais distantes das religiões imigrantes latinos e asiáticos. Então, em vez de adaptar seu discurso na tentativa de se tornar mais interessante a esses recortes populacionais, esses grupos religiosos simplesmente se tornam mais radicais", contou Sheffield à reportagem do Brasil de Fato.

O escritor traça paralelos entre o que acontece agora com o que aconteceu com o Islã após a colonização do Oriente Médio.

"Depois que a colonização terminou, os fundamentalistas muçulmanos logo perceberam que as pessoas não concordavam com suas ideias; não queriam colocar burcas nas mulheres, não queriam executar homossexuais. E então eles se radicalizaram muito, infelizmente. E temos vivido com essas consequências desde aquele momento".

Ainda segundo o autor, o poder da religião no campo político americano se deve, em partes, a essa democracia indireta, que não representa a realidade local.

"Cristãos evangélicos protestantes correspondem a 15% da população adulta dos Estados Unidos, mas são 25% de todo eleitorado, então seu capital político é mais expressivo que sua demografia real", explica.

Nelson corrobora com o posicionamento do colega, e sinaliza que ali moram seus maiores medos. "Joe Biden teve 7 milhões de votos a mais nesta eleição, mas a diferença é muito menor se você olhar os votos do Colégio Eleitoral, que são os que importam. As áreas rurais são maiores e mais numerosas, embora menos populosas, e é ali que miram as organizações religiosas", diz.

Para ela, a Bíblia pode definir as próximas eleições, agravada pelo declínio no consumo da mídia tradicional pelo americano médio. "Muitas vidas americanas e provavelmente muitas vidas fora dos Estados Unidos sofrerão ou serão perdidas como consequência disso", e alerta, "Bolsonaro é uma cópia do que se vê aqui".

Edição: Leandro Melito