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Um ano de pandemia: entregadores de aplicativo relatam piora em condições de trabalho

Trabalhadores afirmam que demandas de greve inédita de 2020 não foram atendidas e que taxas estão ainda mais baixas

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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"Por mais que as cabeças sejam diferentes, a ferida é universal. Os motocas estão todos feridos", desabafa entregador - Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Superexplorados e expostos à covid-19, os entregadores de aplicativos enfrentam condições de trabalho ainda mais precárias do que na primeira onda da pandemia. A greve inédita da categoria, em junho de 2020, não mudou o modus operandi das empresas.

“Fizemos a paralisação e os caras não cederam em nada. As taxas estão cada vez piores. Esses dias peguei uma corrida da Rappi por R$ 3,60 para andar um raio enorme. Está pior do que já estava. Fica quem não tem outra opção. A gasolina aumenta, mas as taxas não”, critica Simões*, que faz entregas em Niterói (RJ) e atua como motoboy há mais de 15 anos. 

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Em meio à crise socioeconômica e índices de desemprego nunca antes registrados, o número de entregadores nas plataformas aumentou consideravelmente, consolidando a informalidade como única alternativa de sobrevivência. 

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Não há dados oficiais sobre quantos entregadores estão cadastrados nos aplicativos.

Somente o Ifood possui 160 mil entregadores ativos na plataforma, de acordo com informações enviadas à reportagem pela empresa, uma das principais do ramo.

A grande presença de entregadores nas ruas esperando uma chamada e a consequente diminuição dos pedidos, já que há mais mão de obra disponível, é nítida para quem circula todos os dias pelas vias das cidades.

Altemício Nascimento, de 53 anos, também participou das mobilizações ano passado e afirma que as empresas não abrem diálogo com os entregadores. Após ser bloqueado pelo Ifood, ele segue fazendo entregas pela Rappi, UberEats, Loggi e LalaMove. 

“Eles não dão retorno, não melhoram as taxas, e enchem as plataformas na fase roxa [fase com medidas restritivas mais severas]. Você passa na rua e vê 10, 20, 30 motos paradas esperando uma corrida. Está difícil trabalhar”, relata o motoboy, que também reprova o valor repassado aos entregadores pelo quilometro percorrido.

Uma remuneração maior da taxa mínima de corrida e o pagamento padronizado por quilometragem eram as principais reivindicações do movimento conhecido como #BrequedosApps.

Você passa na rua e vê 10, 20, 30 motos paradas esperando uma corrida

Apesar das fotografias da paralisação que aconteceu em todo país se tornarem manchetes nacionais, as demandas continuam sem ser atendidas.

“Eles baixaram ainda mais o valor [da taxa]. Estamos trabalhando na média de R$ 0,85 o km, o que é muito pouco. E a gasolina está quase R$ 6,00 o litro. Não tem condições de fazer uma corrida de 13 km por R$ 10,00. Nâo existe isso. Eles não dão reajuste desde que a plataforma abriu. É tudo nas nossas costas... almoço, gasolina”, afirma Nascimento.

Além da remuneração precária, os entregadores apontam que os bloqueios arbitrários continuam acontecendo e que material de proteção contra covid-19 entregue pelas plataformas é escasso.

Infectados e desamparados

Após a grande repercussão da greve, as empresas vieram à público assegurar que garantiriam medidas de proteção para os entregadores, incluindo fundos para auxiliar aqueles que se infectaram com a covid-19.

No entanto, em dezembro do ano passado, Nascimento confirmou o que já imaginava: as coisas não são como aparenta a propaganda. Rotineiramente na rua fazendo entregas pela Loggi, UberEats, Rappi e Lala Move, o entregador manifestou todos os sintomas da covid-19. 

“É muito estranho. A pessoa não sente gosto de nada. Sentia dores no corpo inteiro. Mesmo depois de ter sarado da covid, ainda tenho uma dor nas costas que é muito grande. Às vezes não consigo nem andar direito. Sinto um gosto ruim de cloro na boca até hoje”, conta o entregador.

:: Leia também: “A guerra continua”, prometem entregadores dos breques contra apps :: 

Ao procurar o serviço de saúde e testar positivo para o vírus, permaneceu três dias internados no Hospital Municipal do Campo Limpo. Com a lotação da unidade, foi enviado para casa, onde cumpriu quarentena. Depois, procurou atendimento na rede particular por meio do convênio.

Com a comprovação que havia sido contaminado, buscou ajuda, mas não recebeu o retorno esperado dos aplicativos.

“Fiz o PCR, mandei pra Rappi e quase depois de um mês eles me deram R$ 150,00. Mandei o laudo, tudo bonitinho. Nenhum deles me deu auxílio nenhum. Só a Rappi deu esse valor e eu gastei dinheiro pra caramba”, lamenta Nascimento, que, mesmo tentando manter o distanciamento social de 15 dias, acabou infectando a esposa. 

“Lembro que comecei a fazer entrega pro lado do Morumbi e o povo disse que estava muito infectado [a região]. Acho que foi pra lá que eu peguei. Eles [os aplicativos] não têm cuidado nenhum com a gente. Quando você é infectado trabalhando pra eles, deveriam dar um suporte melhor, um apoio. Eles só nos exploram”, lamenta.

Quando você é infectado trabalhando pra eles, deveriam dar um suporte melhor, um apoio. Eles só nos exploram

O Brasil de Fato procurou os aplicativos para saber mais detalhes de quantos trabalhadores já foram infectados até o momento e como havia se dado a ajuda a eles.

A Rappi optou por não comentar especificamente sobre o caso de Nascimento, assim como não respondeu a demanda relacionada aos números de trabalhadores infectados, como esse monitoramento estaria sendo feito ou o valor gasto com auxílio aos entregadores.

A empresa informou apenas que para receber qualquer auxílio o entregador deve apresentar um exame médico e/ou atestado positivo para a covid-19. 

“Com a confirmação, ele receberá o benefício pelo período de 15 dias, até cumprir a quarentena, conforme recomendação médica”, diz o texto. 

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Segundo endossa a nota enviada, a Rappi formalizou um acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT) em dezembro do ano passado para cumprir compromissos e uma série de medidas para proteger os entregadores parceiros.

A Rappi alega ainda que, mesmo antes da pandemia atingir o país, já havia desenvolvido protocolos de proteção, como entrega sem contato, distribuição de máscaras e álcool em gel, além de sanitização de carros, motos, bikes e bags.

O Ifood, por sua vez, afirma que já destinou cerca de R$ 100 milhões dentre todas as iniciativas de proteção e apoio aos entregadores, como a distribuição de mais de 3 milhões de itens de proteção e o repasse mensal no valor de R$ 30,00 para a compra de materiais para aqueles que não puderem retirar o kit disponível em pontos de apoio.

Foram criados dois fundos especificamente para os trabalhadores adoecidos ou integrantes do grupo de risco. De acordo com a empresa, todos os entregadores que atuam na plataforma podem acionar o auxílio e a remuneração dos fundos corresponde à média de ganhos do entregador no aplicativo dos últimos 3 meses.

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O acesso aos fundos deve ser solicitado por meio do próprio aplicativo mediante o envio de documentos comprobatórios. O Ifood, no entanto, também não respondeu quantos de seus entregadores cadastrados tiveram acesso ao auxílio, quantos possíveis óbitos foram registrados e como o monitoramento é feito.

Conforme afirma o posicionamento da empresa, a plataforma ofereceu “um plano de vantagens em saúde com consultas e medicamentos com descontos” em parceria com a empresa Avus, que conta com mais de 66 mil cadastros.

Sobre a remuneração, o Ifood afirma que os valores das rotas pagas “consideram fatores como, por exemplo, a retirada do pedido no restaurante, a distância percorrida, entrega para o cliente, a cidade, o dia da semana e o modal utilizado.”

A Loggi, por sua vez, optou por não responder as perguntas enviadas pela reportagem e a UberEats não retornou a demanda. 

Mesmo que os posicionamentos oficiais sinalizem uma estrutura de apoio, Simões contra-argumenta que a realidade vivenciada pelos entregadores é outra. Sem opções, enfrenta o constante medo da infecção cruzando a ponte Rio-Niterói todos os dias.

O objetivo de sair de casa mais cedo, mesmo gastando mais combustível, é tentar conseguir metade do valor que recebia antigamente.

“Isso tudo desmotiva a galera. Um sofre acidente, o outro fica doente e não consegue pegar auxílio, as entregas começaram a diminuir… Se eu não sair pra rua, eu vou passar fome. Não tenho condições, não tenho renda, não tenho dinheiro na conta. Como vou pagar meu aluguel? Tenho 3 filhos, minha esposa. Se eu não trabalhar já era. Infelizmente estamos sujeitos à contaminação”. 

Respostas urgentes

Em entrevista ao Brasil de Fato, o jurista Jorge Luiz Souto Maior, desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 15º Região e professor de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), avalia que a formalização das relações de trabalho dos entregadores e motoristas de aplicativo deveria ser prioridade máxima do governo.

“São pessoas que estão colocando suas próprias vidas em risco ganhando pouquíssimo, trabalhando intensamente, em uma lógica cada vez mais precária e concorrencial entre si. A sociedade brasileira está diante do caos. Vamos começar a acertar os nossos problemas formalizando o trabalho dessas pessoas”, afirma, defendendo a limitação da jornada de trabalho, o direito aos dias de descanso e férias remuneradas.

O desembargador avalia que o discurso apresentado pelas empresas – de que os entregadores trabalham de forma independente e gerenciam seu próprio tempo – é utilizado para vender a precarização como “liberdade de trabalho” e esconde jornadas e condições análogas à escravidão.

“A liberdade de vender horas de trabalho durante 18 horas não é liberdade. É escravidão. É só um discurso de liberdade”, ressalta.

Outras possibilidades

A nível internacional, algumas medidas já caminham no sentido de reconhecer o vínculo dos trabalhadores com as empresas de aplicativos, conforme explica Souto Maior.

Os juízes da Suprema Corte do Reino Unido, por exemplo, decidiram em fevereido deste ano, por unanimidade, que os motoristas da Uber possuem direito a salário mínimo, férias e descanso. 

Na Espanha, o avanço foi ainda maior. O governo anunciou em 11 de março que agora a legislação trabalhista do país determina que entregadores de plataformas como Deliveroo e Uber Eats sejam considerados assalariados, algo inédito na Europa.

"São trabalhadores assalariados e vão gozar de todas as proteções", afirmou Yolanda Díaz, ministra do Trabalho da Espanha. 

A liberdade de vender horas de trabalho durante 18 horas não é liberdade. É escravidão

Para Carlos Rasta, que faz entregas de bicicleta no Rio de Janeiro e declara que as “taxas caíram de forma vergonhosa”, o que as plataformas oferecem aos entregadores no Brasil está muito longe do ideal.

“Proteção é quando todas as empresas de aplicativos forem regulamentadas para funcionar corretamente nesse país”, defente o integrante do grupo Entregadores Antifascistas. 

:: Leia também: Entregadores antifascistas buscam criar cooperativa com aplicativo próprio :: 

Rasta acredita que o primeiro desafio para fortalecer a mobilização da classe é que a maioria dos entregadores esteja convencida que uma legislação trabalhista específica é uma demanda legítima.

“O segundo desafio é convencer o Estado que esse mercado precisa ter mais responsabilidade social com os entregadores. Coisa que não ocorre. Gastam milhões em propaganda para mentir perante a opinião pública”, critica. 

Por ser um movimento amplo, que reúne diversos perfis, e na ausência de uma entidade representativa consolidada, os entregadores se deparam com discordâncias internas sobre as pautas defendidas. A formalização da relação de trabalho, por exemplo, não é unanimidade.

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Ainda assim, a união inédita da categoria deve continuar diante da precarização que atinge a todos, como projeta Simões: “Estamos juntos na atividade. Por mais que as cabeças sejam diferentes, a ferida é universal. Os motocas estão todos feridos”. 

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*Fonte preferiu não se identificar completamente por receio de retaliação.

Edição: Poliana Dallabrida