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Em meio a avanço conservador, pauta do "combate ao terrorismo" ressurge no Congresso

Projeto de Lei (PL) resgata tema e terá comissão própria; oposição alerta para criminalização de movimentos populares

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Da esquerda à direita: Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, Jair Bolsonaro e Rodrigo Pacheco, presidente do Senado Federal - Sérgio Lima/AFP

Depois de mais de um ano paralisada no Congresso Nacional, a pauta que endurece a Lei Antiterrorismo voltou à tona. Uma movimentação do governo Bolsonaro em acordo com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), fez com que este autorizasse a criação de uma comissão especial para avaliar o Projeto de Lei (PL) 1595/2019, de autoria do deputado Major Vitor Hugo (PSL), atual líder do PSL e ex-líder da gestão na Casa.

Já aprovado em 2019 pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, o PL agora tende a ter tramitação mais célere porque a análise do texto ficará concentrada em um único colegiado, em vez de ser feita por outras três comissões em separado, conforme previsto anteriormente.

O ressurgimento da proposta se dá a contragosto da oposição e de diferentes entidades civis, que apontam que o projeto abre espaço para a criminalização de movimentos populares e revive uma disputa de narrativa em relação ao conceito de terrorismo.

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O texto volta ao jogo legislativo no mesmo cenário em que o país discute, sob tensão política, as trocas de comando nas Forças Armadas e os recorrentes acenos do governo Bolsonaro à memória da ditadura militar.

Pressa

A mudança de rumo na tramitação do PL partiu da aprovação de um requerimento apresentado por Vitor Hugo no último dia 16. Nele o parlamentar pede que a pauta, apontada como algo de “extrema relevância”, seja avaliada também pela Comissão de Ciência e Tecnologia porque “pode ser aprimorada” no que se refere a esses campos do conhecimento, considerados “imprescindíveis para a prevenção do terrorismo”.  

O pedido foi entendido politicamente como uma estratégia para agilizar a pauta, uma vez que o regimento da Casa prevê a criação de comissão especial para projetos passíveis de análise em mais de três colegiados de mérito, como se tornou o caso.

A Câmara cuida agora da composição da nova comissão, e o governo tem pressa: pelo menos 20 dos 34 deputados titulares foram indicados já nos primeiros dias após a autorização de Lira, no último dia 18. A oposição terá direito a oito cadeiras na comissão.

“Lira se comprometeu com uma pauta com setores do governo e, entre essa pauta, está esse tema. Eles usam um determinado discurso, mas, na prática, querem é criar uma possibilidade jurídica de criminalização dos movimentos sociais e enquadrar isso como terrorismo. Isso foi tentado em outras oportunidades”, afirma o deputado Paulo Pimenta (PT-RS).

A Câmara já teve diferentes matérias legislativas com esse tipo de conteúdo. O primeiro PL com teor semelhante surgiu ainda na década de 1990 e, de lá pra cá, as propostas foram ficando pelo caminho, travadas pelas dissidências. No governo Temer (2016-2018), em meio ao avanço conservador, o tema chegou a ser destaque.

Para opositores de Bolsonaro, o momento atual é considerado mais desafiador porque o grupo trabalha na tentativa de conter diferentes pautas de desmonte ao mesmo tempo. Bolsonaro conta com o centrão, grupo de direita majoritário no Legislativo e fiel escudeiro na agenda neoliberal. 

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“Eles entram com vários projetos em várias frentes ao mesmo tempo para dificultar a capacidade da oposição de resistir e ter uma centralidade. Acho que, num primeiro momento, o principal desafio é esclarecer para a opinião pública as consequências desse PL. Tem muitos setores que eventualmente não perceberam que eles mesmos podem vir a ser atingidos”, realça Pimenta.

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Do ponto de vista do teor, o projeto trata de “ações contraterroristas”. O texto fixa um novo conceito para ato terrorista, apontado como aquele ''que seja perigoso para a vida humana ou potencialmente destrutivo em relação a alguma infraestrutura crítica, serviço público essencial ou recurso-chave e que aparente ter a intenção de intimidar ou coagir a população civil ou de afetar a definição de políticas públicas por meio de intimidação, coerção, destruição em massa, assassinatos, sequestros ou qualquer outra forma de violência”.

Para especialistas, o conceito é vago e pode ser manobrado politicamente segundo as dissidências políticas que se acirram com o avanço conservador do país.

“A tendência de muitos desses projetos e do PL 1595 é sempre de ampliar o conceito de terrorismo pra abarcar ações típicas de movimentos sociais. E, no caso desse PL, cria um tipo penal totalmente aberto. Ao fazer isso, fere o princípio da lei penal que prevê que as condutas devem estar bem especificadas”, aponta o advogado Leonardo Santana, da Rede de Justiça Criminal.

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A entidade é uma das 12 organizações civis que enviaram uma carta ao presidente da Câmara em meados de março para pedir que a comissão especial não fosse montada. O grupo chama atenção para os diferentes riscos da proposta.


Ações de vigilância previstas no PL 1595/2019 estão entre os destaques da proposta de Major Vitor Hugo / Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Um deles é o fato de o PL criar uma estrutura de vigilância do Estado por fora do controle civil. O texto prevê desde medidas de controle de fronteiras nacionais até a adoção de estratégias de monitoramento, inteligência, vigilantismo e infiltração de agentes públicos para prevenir ou reprimir atos considerados terroristas.

Se o PL for aprovado, as “ações contraterroristas” podem ser conduzidas, por exemplos, por tropa das Forças Armadas. Na justificativa do PL, o autor, Vitor Hugo, argumenta que seria “alarmante a maneira insidiosa” como são feitas ações de terroristas. “Assim é que, caso os estados não desenvolvam mecanismos de prevenção, estarão sempre sujeitos à vitimização de seus servidores/militares e da população civil”, diz.

As entidades civis consideram que a proposta seria, em seu conjunto, desproporcional e perigosa à garantia dos direitos fundamentais, dando margem para uma maior escalada autoritária no país. Também apontam que a Lei Antiterrorismo (Lei nº 13.260), aprovada no Brasil em 2016 sob acusações de excessiva rigidez, já abarca esse fenômeno.

Outro aspecto do projeto é que alguns dispositivos da lei seriam definidos posteriormente por meio de decreto do presidente da República. O advogado Leonardo Santana aponta que a previsão “gera mais insegurança”.

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“Atribuiria muito mais poderes [a ele] num tema sensível, que é o da vigilância e do conceito de terrorismo, o que vai possibilitar a ele promover uma perseguição contra opositores políticos, se aproveitando de uma super estrutura de informações, de dados. Isso reduz totalmente a possibilidade de resistência dos movimentos”, avalia, ao mencionar que a atividade política de tais entidades é “democrática” e sofre constantes tentativas de criminalização.

“Atitude desesperada”

O dirigente nacional do MST Alexandre Conceição afirma que a iniciativa não surpreende. A entidade vê a medida como algo ligado à espinha dorsal do governo Bolsonaro, conhecido pela defesa de práticas autoritárias e pelos discursos que acusam a militância popular de praticar terrorismo.

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Agora, com o aprofundamento da crise no país, endossada pelo descontrole da pandemia, o MST interpreta o retorno do PL como uma iniciativa centrada não exatamente no mandato de Vitor Hugo, mas sim como uma “atitude desesperada” do governo.

Para Conceição, em termos de articulação política, o projeto estaria em sintonia com as investidas da gestão contra os governadores na Justiça por conta das medidas de isolamento, os arroubos de Bolsonaro em defesa do AI-5 e as menções a um estado de sítio no país, por exemplo.

“Do ponto de vista do ataque a nós, não é surpresa, mas, do ponto de vista do ataque à sociedade brasileira e da tentativa de construir um regime ditatorial, isso está presente inclusive nesse PL do Vitor Hugo”.

Paralelamente, veio à tona, no último sábado (20), por meio da Folha de São Paulo, a informação de que o Ministério da Justiça trabalha atualmente em uma consulta interna sobre a possibilidade de se tipificar ocupações de terra como terrorismo.

A prática é costumeiramente adotada por movimentos do campo e da cidade como forma de protesto popular contra a grilagem de terras e outras práticas que ajudam a travar as reformas agrária e urbana. Bolsonaro tem uma trajetória política associada a defesas da criminalização de entidades como o MST.

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O ressurgimento do PL se dá também em meio a prisões políticas que chamaram a atenção em Brasília (DF). No último dia 19, cinco militantes foram presos durante um protesto na Praça dos Três Poderes, em frente ao Palácio do Planalto, por chamarem Bolsonaro de “genocida” e associarem o presidente a uma cruz suástica, símbolo do nazismo.

Na sequência, foram liberados pelo delegado da Polícia Federal que atendeu o caso. O agente considerou que não havia justificativa para as prisões, mas o episódio acendeu uma luz amarela entre segmentos sociais.    

“Precisamos ficar atentos a isso. Nós vamos tentar derrotar essa tentativa de modificação da Lei de Terrorismo e também ficar em alerta porque precisamos vencer a pandemia, mas especialmente derrotar o regime de Bolsonaro”, finaliza o dirigente do MST.

Edição: Poliana Dallabrida