Coluna

Um Pinscher com pés de barro

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Bolsonaro não só tem medo, muito medo, da CPI da pandemia, como é fraco demais para impedi-la. O medo é evidente: ele sabe que tem suas digitais - Carolina Antunes / Fotos Públicas
Os ventos da política estão mudando e ameaçam jogar o barquinho de Bolsonaro contra as pedras

Olá,

Se tem uma coisa que Bolsonaro sabe fazer é abrir novas frentes de combate. Mas como ele é incapaz de resolver qualquer problema com maturidade, o governo corre o risco de afundar num atoleiro de conflitos criados por ele mesmo.

1. Jair ladra, mas não morde. Bolsonaro não só tem medo, muito medo, da CPI da pandemia, como é fraco demais para impedi-la. O medo é evidente: ele sabe que tem suas digitais na falta de vacinas, na sabotagem às medidas sanitárias e na morte de pacientes por falta de oxigênio.

E o fato de que o Ministério Público Federal (MPF) e o Tribunal de Contas da União (TCU) também investigam a gestão Pazuello, só aumenta a tensão no Planalto. Quanto à fraqueza, fica evidente quando o único mecanismo que Bolsonaro encontrou para barrar a CPI foi fazer um teatrinho de escola com outra figura caricata da política nacional, Jorge Kajuru.

A conhecida falta de educação do chefe do Executivo denunciou a fraude: Bolsonaro não falou palavrões no “vazamento ensaiado”. Além de não ter sido levado a sério, o diálogo novamente se dirigia apenas à sua base mais fiel, insistindo no argumento de que o Supremo Tribunal Federal (STF) e os governadores não o deixam governar.

Depois, seguindo a dinâmica de blefes que marcam a retórica bolsonarista, mais uma vez insinuou ações vagas e um chamado aos aliados para irem às ruas. Os outros movimentos para impedir a criação da CPI também não funcionaram e a comissão não só foi instalada, como os senadores governistas são minoria entre os integrantes.

Na prática, só o que o governo vai fazer mesmo é trocar outra vez seu secretário de comunicação, indicando um nome mais próximo da família, e sinalizando que vai continuar apostando nas mensagens para as suas hostes fiéis. Na CPI, o governo deve tentar atrasar a abertura dos trabalhos, propondo inclusive que eles só ocorram quando todos os senadores estiverem vacinados, o que seria outro tiro no pé, pois arrastaria a investigação até as vésperas da eleição de 2022.

Outra estratégia é tentar dividir a responsabilidade das mortes com os governadores, com ampliação do foco para os recursos federais repassados para estados e municípios, o que interessa aos senadores-candidatos aos governos estaduais no ano que vem, mas também podem atingir governadores bolsonaristas que lideram o número de mortos por covid.

Na melhor das hipóteses para Bolsonaro, a CPI fará do centrão o rabo que balança o cachorro, aumentando o preço do apoio no dia-a-dia. Na melhor das hipóteses para o país, pode ser o nosso julgamento de Nuremberg para os crimes da pandemia.

2. Surra de toga. Parte dos problemas de Bolsonaro se devem ao fato dele ter aberto várias frentes de ataque e ter que lidar com muitos inimigos ao mesmo tempo. A mudança do diretor da Polícia Federal (PF) em São Paulo é sinal de que Bolsonaro não desistiu de atacar João Dória, que por sua vez tenta se descolar do legado do “Bolsodória” trocando o tema da segurança pela saúde.

Em outra frente, os ataques de Bolsonaro não fizeram nem cócegas no STF. Ao contrário, em dois dias, o tribunal suspendeu parte dos decretos de armas do governo, movimentou o pedido de julgamento da notícia-crime pela acusação de genocídio e confirmou a criação da CPI da pandemia.

Nem o fiel Kassio Marques levou adiante o pedido de impeachment de Alexandre Moraes feito por Kajuru. E isso que Moraes pode mexer ainda com os inquéritos das fake news e dos atos golpistas e o Tribunal pode vir a deliberar em breve sobre o prazo para os pedidos de impeachment no Congresso.

Provando que não está mesmo para brincadeira, o STF ainda confirmou nesta quinta-feira (15) a decisão do ministro Edson Fachin de anular quatro sentenças contra Lula que tramitaram na Vara de Curitiba. Dessa forma, Lula recupera seus direitos políticos pelo menos até um novo julgamento e promete ser uma pedra no sapato de Bolsonaro.

Aliás, isso já vinha sendo apontado pela pesquisa PoderData que mostra um empate técnico entre Lula e Bolsonaro nas intenções de voto para 2022. Somado a isso, a absolvição da ex-presidenta Dilma pelo TCU no caso da compra da refinaria de Pasadena é mais um sinal de que os ventos da política estão mudando e ameaçam jogar o barquinho de Bolsonaro contra as pedras.

3. O suicídio de Paulo Guedes. A emenda constitucional do teto de gastos aprovada em 2016 foi uma espécie de carta de suicídio do Estado brasileiro. Por ironia do destino, Paulo Guedes, seu maior defensor, pode agora estar assinando sua própria carta de despedida. Tudo isso devido ao impasse do orçamento.

Depois que a polêmica desembocou num possível impeachment de Bolsonaro, Arthur Lira chegou a sugerir que ele viajasse para o exterior e deixasse a sanção do projeto por sua própria conta e risco. No entanto, a mensagem do Congresso - “quer ajudar? Senta lá no banquinho” - não prosperou. O impasse se arrasta e Bolsonaro não poderá fugir da responsabilidade de sancionar ou vetar a proposta do Congresso.

Enquanto isso, segue também a guerra de pareceres favoráveis e contrários. A Secretaria de Orçamento Federal (SOF) e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) continuam sugerindo o veto enquanto a consultoria técnica da Câmara dos Deputados sugere sua aprovação, com ajustes posteriores. Tentando resolver o imbróglio, Paulo Guedes articula uma manobra através da proposição de uma PEC no Congresso que passa a tratar o aumento de recursos destinados a emendas parlamentares como gastos emergenciais específicos que deixariam de ser contabilizados dentro do teto fiscal. Na prática, o teto passaria a ser flexibilizado.

A jogada é uma espécie de vale-tudo para tentar ficar no cargo, já que Bolsonaro está sendo pressionado a escolher entre Guedes e o centrão. Ainda mais com um desempenho econômico desastroso. Segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) o Brasil é a única grande economia mundial que continua em desaceleração.

E março trouxe más notícias, com queda no varejo e nos serviços. Nesse cenário, apenas “apertar o cinto” já não é aceitável. Porém, a nova jogada de Gudes pode ser um tiro no pé e ele corre o risco de perder apoio de gregos e troianos.

Integrantes do centrão já apelidaram o ministro de “liberal de Taubaté”, uma ironia machista para chamá-lo de mentiroso. E talvez a versão de um Paulo Guedes negociador não agrade ao mercado, pois ele perde sua utilidade como bastião do ultraliberalismo dentro do governo.

4. Diários do purgatório. Em tempo, o gen. Eduardo Pazuello e mais cinco pessoas viraram alvos de uma ação de improbidade administrativa movida pelo MPF do Amazonas. Contudo, a gestão de Marcelo Queiroga no Ministério da Saúde, ainda que busque se afastar dos militares, não tem sido mais eficiente. Há mais de um mês a falta de remédios do kit intubação atinge diversas regiões do país.

Queiroga negociou a compra através da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), mas até agora os insumos não chegaram. E as entregas previstas dão conta de apenas 17% da demanda projetada para os próximos seis meses. Já em relação às vacinas, depois de tantos atrasos, a solução encontrada pelo Ministério da Saúde foi deixar de divulgar o cronograma de entrega.

Na falta de soluções reais, segue impune o terraplanismo dos Médicos pela vida, ligado ao grupo Vitamedic que produz a Ivermectina, um dos remédios do dito “tratamento precoce”. Além dele, o grupo Prevent Senior está sendo denunciado por orientar seus médicos a receitar a Flutamida, um remédio não indicado para a covid-19 e que pode causar hepatite grave.

A vítima mais recente do negacionismo foi uma mulher que morreu na maternidade de Manaus (AM) depois de ter recebido nebulização com hidroxicloroquina. Além do problema do negacionismo, a escassez de médicos em muitas localidades intensificou o conflito entre aqueles que defendem a contratação imediata de diplomados no exterior e os defensores do Revalida, a exemplo do dep. Dr. Luizinho (PP-RJ).

Já a vacina, virou objeto de negociações de todo o tipo. Em Roraima, uma associação Yanomami denunciou ao MPF que servidores do Ministério da Saúde estão aplicando vacinas em garimpeiros em troca de ouro. Na outra ponta, a Conmebol anunciou o recebimento de 50 mil doses doadas pela Sinovac para imunizar jogadores, dirigentes e comissões técnicas dos times de elite do futebol.

Alguns beneficiados seriam as equipes que estão atuando na Libertadores, Sul-Americana e Copa América. A medida, além de imoral é ilegal. Perante esse quadro, não admira que a pandemia esteja tirando dois anos da expectativa de vida dos brasileiros, que passou de 77 para 75 anos.

5. Mudou o clima. Não é novidade que a política ambiental do governo Bolsonaro é literalmente devastadora. De acordo com o Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), março foi o mês mais destrutivo na Amazônia desde que o monitoramento iniciou em 2015.

Além disso, Ricardo Salles segue passando a boiada, reduzindo ainda mais a autoridade de fiscais e facilitando a vida dos infratores. Aliás, a queda do diretor da PF no Amazonas que denunciou Salles nesta semana ao STF por defender madeireiros é prova de que a impunidade aos desmatadores está garantida.

Porém, a questão ambiental é cara à imagem de imperialismo civilizado do governo Biden e o Brasil está no centro dos debates da Cúpula do Clima convocada pelos americanos para a próxima semana. A postura de Biden em relação ao governo brasileiro é dúbia.

Por um lado, deu um ultimato através do embaixador Todd Chapman. O embaixador chegou a abrir diálogo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em reunião onde a Fundação Nacional do Índio (Funai) levou sem terem sido convidados indígenas ligados ao agronegócio e à mineração.

Por outro lado, o governo Biden mantém conversas a portas fechadas com o Brasil, o que sinaliza a possibilidade de um acordo. Por fora, 23 governadores criaram uma articulação para negociar diretamente com Biden, aproveitando para desgastar a imagem de Bolsonaro e Salles e, quem sabe, abocanhar alguns recursos internacionais.

Já 28 grandes empresas aproveitam a Cúpula para pressionar o governo brasileiro por uma maior “ambição climática” do país, o que inclui uma política de comercialização internacional de créditos de carbono. Seguir o dinheiro ajuda a entender o que está em jogo.

Um dos focos de disputa é o Fundo Amazônia, paralisado desde 2019. Enquanto a Noruega exige uma redução do desmatamento para retornar ao Fundo, o presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal, Hamilton Mourão, lançou um plano de combate ao desmatamento que na prática regulariza o aumento do desmatamento dos últimos anos.

Já o ministro Ricardo Salles, como se estivesse num leilão, diz estar disposto a cumprir as metas de combate ao desmatamento desde que paguem US$ 1 bilhão ao Brasil.

6. Herança maldita. Talvez porque já tenha problemas demais, como a CPI da pandemia, esta semana o Congresso preferiu fugir de temas polêmicos. Um deles, o depoimento do ministro da Defesa gen. Braga Netto convocado pela Comissão de Fiscalização e Controle da Câmara para explicar a farra da picanha e da cerveja, foi revertido por Arthur Lira.

Outro tema adiado foi a delicada discussão da Lei de Segurança Nacional (LSN). Se alguém ainda tem dúvidas sobre o uso político da Polícia Federal, vale lembrar que durante o governo Bolsonaro a PF abriu 84 inquéritos baseados na LSN, uma média de 3 por mês. O número é tão absurdo que até mesmo a Corregedoria da PF criticou o uso sistemático da LSN contra detratores do governo.

Justamente por abrir prerrogativas excepcionais, a LSN é objeto de disputa. Hoje há sete processos no Supremo que questionam a sua validade. A proposta que tramita na Câmara, cuja relatora é Margarete Coelho (PP-PI), prevê a revogação da lei, considerada antiquada, e criar tipos penais em seu lugar.

A estratégia do governo em relação ao tema é dupla. Por um lado, defende a LSN, como faz o ministro da Justiça Anderson Torres, citando como exemplo positivo o inquérito aberto pelo STF no caso das fake news.

Por outro, os governistas disputam o projeto que tramita na Câmara, como faz o Major Vitor Hugo (PSL-GO). A ideia dos governistas é consolidar num novo arcabouço legal as prerrogativas da velha LSN que hoje está desgastada na opinião pública. Mas para isso, o governo precisa votar “a toque de caixa”, evitando o debate e reduzindo os espaços de intervenção da sociedade civil, como denuncia a Anistia Internacional.

7. Ponto Final: nossas recomendações.

.O bolsonarismo estava em Brasília nos dias do impeachment, mas ninguém notou. Cinco anos após o golpe, uma série especial do Brasil de Fato relembra as forças políticas e os desdobramentos do impeachment.

.Quem é o terrorista? Ana Penido e Hector Saint-Pierre dissecam o que pretende e quais os riscos do novo projeto de lei contra o terrorismo.

.O que defendem o vencedor do 1º turno, Pedro Castillo, e seu partido. O Brasil de Fato conta quem é o professor primário que surpreendentemente venceu o primeiro turno nas eleições peruanas.

.Isolamento militar. O combate à pandemia nas fileiras das forças armadas é um sucesso e o segredo é fazer tudo ao contrário do que Jair mandar. 

.Educação Domiciliar: fundamentalismo e business. No Outras Palavras, como a educação domiciliar une neopentecostais, classe média e as empresas de educação privada.

.Amor e militância contra a ditadura: “A morte de Merlino nos uniu definitivamente”. No El País, o testemunho de Ângela Mendes de Almeida, companheira do jornalista Eduardo Merlino, assassinado pela ditadura em 1971.

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Ponto é uma publicação do Brasil de Fato. Editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile.

Edição: Leandro Melito