PALESTINA

Artigo | Sobre os acordos da UnB com apartheid israelense

Professores reagem à aproximação entre a reitora da universidade pública e a Embaixada de Israel

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Reitora da UnB, Márcia Abrahão Moura, encontrou-se com o embaixador de Israel, Yossi Shelley, em fevereiro; nas redes da universidade, ele foi descrito como "grande parceiro" - Reprodução / UnB

Os fantasmas do século 20 assolaram muitos acontecimentos nos últimos anos. Os fantasmas, que dizem que assombram como farsa, aparecem torcidos, recombinados e às vezes disfarçados. 

No Brasil um governo de direita combina a clareza de seus propósitos declarados publicamente com a desfaçatez de não assumir diante de um público amplo suas ações para alcançá-los. Como diversos governos dos anos 1930 na Europa e na América do Sul, o governo cria uma cortina de fumaça que permite levar a cabo seus objetivos explícitos mas inconfessáveis.

Os Estados não praticam violências apenas por ação e coação, mas também por complacência seletiva. Aquilo que era marcante nos governos de muitas partes do mundo oitenta ou noventa anos atrás, pode ser entendido como um experimento de gerência sorrateira que passou a figurar em todos os manuais acerca de como governar diante da opinião pública. Assim no Brasil, e assim na Palestina. E a presença de bandeiras israelenses nas marchas de apoio ao atual governo revelam a torção, a recombinação e o disfarce do ressurgimento de práticas do século passado. 

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No último dia 22, em Jerusalém, uma marcha de supremacistas judeus com a presença de membros conhecidos do Otzma Yehudit (Poder Judeu) foi considerada por grupos de observadores assustados como um pógrom. Na oportunidade, não apenas os supremacistas agrediram vários palestinos, mas a polícia israelense mostrou sua seletividade e terminou por ferir gravemente palestinos em torno da porta de Damasco.

Dar o nome de pógrom revela aquilo que muitos já perceberam: os palestinos na Palestina são os novos judeus da Europa do início do século 20. Nessa semana, antes da marcha, um enorme número de parlamentares assinaram uma carta de protesto às pressões americanas pelos direitos humanos dos palestinos. O governo instituído não quer considerar as palestinas e palestinos como cidadãos, trabalha implícita e explicitamente para conferir a essas pessoas um estatuto de subalternos.  

A Lei aprovada em 2018 no parlamento israelense com o nome “Estado-Nação do povo judeu”, reserva o direito à autodeterminação a este coletivo e estabelece o hebraico como única língua oficial. Embora na prática os preceitos desta lei já vinham vigorando desde a autoproclamação/criação do Estado de Israel em 1948 com base na destruição e a limpeza étnica (Ilan Pappe) de mais de 400 vilarejos palestinos e sua população de 700.000 expulsos por força militar e através de crimes de guerra como o massacre de Deir Yassin.

O que se institui a partir da criação de Israel é uma etnocracia, um estado de supremacia judia do Rio Jordão ao Mar Mediterraneo como apontam os relatórios de 2021 da ONG israelense B´Tselem e do Human Rights Watch. Muito antes, remetendo ao ano 1965, o escritor palestino Fayez Sayegh descreveu Israel como estado de Apartheid. 

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O que se passa na região não é uma briga tribal ancestral – e toda briga desse tipo tem elementos cósmicos – mas é mais uma torção de uma batalha colonial. Os estados que se produziram depois da experiência colonial prosseguiram a missão de fazer o pensamento, a economia e o modo de vida europeu (e branco) prevalecer. Assim na subalternização insistente das populações nativas e rurais na América do Sul e na África, assim no longo apartheid sul-africano, assim na supressão dos direitos das populações palestinas.

Quando combatemos contra acordos do governo brasileiro com autoridades israelenses e protestamos contra a reitoria da UnB [Universidade de Brasília] selando tratados com o governo racista israelense, fazemos em nome dessa luta. E o mesmo quando, de uma maneira mais geral, aderíamos aos boicotes do BDS. Esses boicotes surgiram efeito, depois de longos anos, em destituir o racismo institucional na África do Sul.  

O movimento BDS- Boicote, Desinvestimento e Sanções foi inspirado pelo BDS sul-africano e é uma iniciativa da sociedade civil palestina que remete à Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância organizada em 2001 pela Unesco, em Durban (África do Sul) e foi lançado em 2005 como resposta à construção do Muro de Segregação por Israel. O BDS palestino é um movimento que "trabalha para acabar com o apoio internacional para a opressão dos palestinos e pressionar Israel a respeitar o direito internacional", e ele vem ganhando mundialmente maior adesão nos âmbitos acadêmico, econômico e cultural tendo apoiadores de renome como o sul-africano Desmund Tutu, Roger Waters e Angela Davis.

O BDS tem 3 objetivos: o fim da ocupação e da colonização dos territórios palestinos, a igualdade de direitos para os cidadãos árabes de Israel, e o respeito ao direito de retorno dos refugiados palestinos.  

O caso do conflito palestino é uma torção dessas lutas do século 20. O sionismo provou-se um barril de pólvora: ele se assenta sobre uma premissa – a de uma população religiosa e etnicamente descendente de povos que habitaram uma região há mais de milênio – que se aplicada em todos os casos levaria a massacres por todos os lados. Cecile Winter propôs que se imaginasse a história do sionismo sem levar em conta o problema judeu da Europa – e, crucialmente, sem levar em conta a Shoah produzida pelos europeus em Lagers espalhados pelo continente dotados de crematórios que assassinavam milhares de judeus por dia.

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Se imaginamos isso, vemos que a história do sionismo é uma história colonial. E que tem sido um pesadelo para a memória da Shoah: ela se tornou uma desculpa para a segregação e a subalternização institucional. Ao nos levantarmos contra a destituição sistemática dos palestinos, nos levantamos contra os poderes coloniais – os mesmos que experimentaram campos de extermínio nas suas colônias antes de trazerem Ausschwitz como técnica de governo para dentro de suas fronteiras. 

A solução do século 20 para o problema judeu da Europa não foi a construção de sociedades que lidam com o que é outro, mas a produção de barreiras nacionais de modo a tornar a Europa livre dos judeus e ainda empregá-los em um projeto colonial que a favorecesse. Combater racismo com racismo, a receita europeia do século 20. O BDS, em contraste, procura, como por exemplo o Sleeping Giants, desinflar a estrutura econômica que sustenta as práticas a serem combatidas. É preciso mostrar ao sionismo que nós, judeus e outros povos, não estamos de acordo com essas práticas. Como dizia Edward Saïd, procedimentos discriminatórios tem uma economia, como na África do Sul, e combatê-la é procurar torná-la insustentável. 

Seguiu-se à marcha de Jerusalém vários protestos palestinos e solidariedade em muitos países da região. O Otzma Yehudit não é o partido do primeiro-ministro tentando formar um governo estável, mas é parte da coalisão com a qual ele conta. Um acordo com um governo assim não seria apenas como um acordo com o presidente Hindenburg no ano 1933, seria um acordo com um governo que discorda da marcha de Jerusalém apenas porque ela apresenta suas políticas de forma clara demais. 

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Os recentes acontecimentos em Jerusalém onde se vê diariamente a brutalidade israelense contra a população árabe palestina, muçulmana e cristã durante a Pascoa e o Ramadã e e a descarada isenção e proteção dada a judeus israelenses que saíram em marchas em abril gritando "morte aos árabes" e "queima suas aldeias". Ou então, mais recentemente, ainda sob a proteção do exército israelense grupos judeus buscando terrorizar e expulsar famílias palestinas somando 500 pessoas de suas casas no bairro de Sheik Jarrah em Jerusalém e substituí-las por famílias judias.

Na sua intensidade e condensados num curto período de tempo esses acontecimentos em verdade sintetizam algo que já se configuravam desde a criação de Israel, e sinaliza que não se trata de "grupos judeus extremos", como propaga a mídia mas sim de um mainstream de Israel, no bojo de um apartheid de estado que é eminentemente settler-colonial (estado colonial de povoamento), ambos instrumentalizados por uma ocupação militar de uma potência bélica mundial.  

Tomando a linha de Cecile Winter, seria intolerável que a UnB fizesse acordos com o governo sul-africano, digamos, há 30 ou 40 anos atrás. Aquilo que oferece uma dispensa especial às autoridades israelenses parece ser não mais do que a história de anti-semitismo da Europa e dos poderes coloniais. A questão importante acerca do anti-semitismo colonial europeu que perdurou sistematicamente pelo menos até o século XX e acerca da Shoah em particular é quem foram os que foram os racistas e os que perpetraram o massacre, inspirado nas atitudes coloniais europeias na África e em outros lugares. A resposta parece ser: o empreendimento colonial de purificação dos privilegiados ele mesmo.

Protestar contra os acordos com esse governo não é anti-semitismo; pelo contrário, é zelar pela memória da Shoah, da Nakba e de todas os combates anticoloniais que procuram dar a possibilidade de um país como o Brasil pensar a si mesmo em seus próprios termos.  

* Muna Muhammad Odeh e Hilan Bensusan são professores da UnB nos departamentos de Saúde Coletiva e Filosofia, respectivamente.

Edição: Vivian Virissimo