Do novo coronavírus ainda sabemos pouco, mas de pandemia sabemos muito – sobretudo que ela é mais cruel e custosa para comunidades de baixo poder aquisitivo. E, embora esse diagnóstico seja universal, nos Estados Unidos a desigualdade ficou mais acentuada durante a crise da covid.
"Parece ser um padrão norte-americano generalizado estruturar o acesso à saúde em regiões onde as pessoas podem pagar por isso, não onde as pessoas mais precisam", conta a Dra. Arrianna M. Planey, professora de Políticas Públicas e Administração da Saúde na Universidade da Carolina do Norte, à reportagem do Brasil de Fato.
O resultado dessa disparidade é o que se vê: comunidades negras, latinas e indígenas foram desproporcionalmente afetadas pelo vírus, como mostra um levantamento do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês). "Dados sobre raça e etnia mostram que a porcentagem de latinos, negros não-hispânicos e índios americanos que morreram de covid-19 é maior do que a porcentagem desses grupos raciais e étnicos entre a população total dos EUA", descreve o órgão.
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Engana-se quem pensa, porém, que há qualquer fator biológico ligado a essa realidade. "Não há nada genético que justifique essa realidade. O tom de pele de uma pessoa não significa que ela é mais ou menos propensa a contrair o coronavírus, é tudo consequência do nosso arranjo social", afirma a Drs. Mary Travis Bassett, diretora do Centro de Direitos Humanos e Saúde da Universidade de Harvard.
Quem chancela esse posicionamento é a médica Dra. Renuka Tipirneni, professora da Universidade de Michigan. Ela destaca que os índices de saúde e mortalidade são compostos por uma conjunção de fatores, e não apenas o acesso à prevenção e tratamento. "A pandemia começa no que as pessoas chamam de 'fatores sociais determinantes da saúde', frequentemente descrito como o lugar onde você nasceu, cresceu, frequentou e trabalhou", explica.
Mas nada disso é um fenômeno moderno. Se investigarmos os rastros de outras pandemias, veremos o mesmo padrão se repetir – com comunidades vulneráveis pagando o maior preço pela crise. "Em 1918, na pandemia da Influenza, vimos a mesma desigualdade, com o vírus se espalhando do nordeste ao oeste e castigando sobretudo os mais pobres. Isso não é algo que começou nesta pandemia; é um problema que existe antes da Covid", diz à reportagem Antonio J. Trujillo, professor da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health.
Mas enquanto o debate público não surte efeito, a desigualdade continua assolando milhões de norte-americanos. "Nos Estados Unidos, algo entre 40% e 60% da força de trabalho foi classificada como essencial. Ou seja, muita gente teve a "benção" do governo para continuar trabalhando e, se quisessem ganhar dinheiro, teriam de fazê-lo", destaca a Dra. Bassett.
A consequência disso foi que mais de 90 mil pessoas em linhas de produção de empresas alimentícias, por exemplo, foram contaminadas. "É realmente terrível o que se viu nas indústrias de alimentos e nos galpões da Amazon. O que me parece é que a liderança dessas empresas não sofreram nenhum tipo de penalidade por não cuidarem de seus empregados", finaliza a especialista.
Essenciais perante o governo, mas descartáveis perante a sociedade, trabalhadores rurais e braçais seguem vítimas das disparidades, tendo menos acesso às campanhas de vacina.
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Pessoas negras e hispânicas, nos Estados Unidos, têm menos probabilidade de ter acesso à Internet confiável o suficiente para fazer consultas online; ter horários de trabalho suficientemente flexíveis para ocupar qualquer vaga disponível; e ter acesso a meios de transporte confiáveis para os locais de vacinação, entre outros fatores.
Por essas e outras, a Dra. Arrianna Planey insiste que se refaça os cálculos da pandemia para que estes reflitam a realidade: "Usar a capacidade do sistema de saúde como determinante é um jeito de abstrair o estrago da covid nas pessoas, nas comunidades e na população. Isso está ligado a objetivos métricos e é muito menos ambicioso no preço humano que essa pandemia nos cobrou".