Império

Qual a avaliação do Partido Socialismo e Libertação dos EUA sobre o governo Biden

Para o partido de esquerda, novo presidente sinaliza para um giro na política interna dos EUA, o que merece atenção

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Joe Biden, 46º presidente dos Estados Unidos, chega aos 100 primeiros dias de mandato com maior aprovação que seu antecessor Trump - Drew Angerer / AFP

A partir de uma visão crítica sobre o novo presidente dos EUA, Joe Biden, o Partido Socialismo e Libertação declara, em nota, que é preciso tomar cuidado com as medidas progressistas do mandatário para responder às demandas de desigualdade e racial no país.  Com base no discurso do republicano ao Congresso, no marco de 100 dias de seu governo, a agremiação de esquerda estadunidense tece a sua análise, divulgada nesta semana.

Continua após publicidade

A partir do histórico de apoio a setores empresariais e do capital financeiro, ou pelo fato de “o presidente tem sido um servo leal das grandes empresas durante toda sua carreira”, além da análise da crise do momento atual, o partido socialista indica que Biden está sinalizando positivamente a movimentos como Ocuppy Wall Street e Black Lives Matter, em uma linha de "dobrar-se para não quebrar".

Continua após publicidade

:: Leia mais: Biden completa 100 dias na presidência dos EUA: veja quais promessas foram cumpridas ::

Continua após publicidade

“Ele está propondo fazer concessões a movimentos populares e tomar suas demandas como se fossem dele. Isto é tanto uma conquista significativa para estes movimentos quanto um desafio estratégico em termos de como proceder”, indica a agremiação de esquerda.

Continua após publicidade

Resgatando uma série de políticas prometidas por Biden, também do contexto internacional, o partido socialista direciona sua leitura para a classe trabalhadora dos EUA, e aponta que este seria o momento de impor uma pressão pela garantia de direitos.

“Longe de temer a ascensão da China ou de qualquer outro país, os trabalhadores estadunidenses deveriam aproveitar o declínio do poder dos Estados Unidos em todo o mundo. Isto coloca nossos verdadeiros inimigos – as grandes empresas e seus servidores em Washington – em uma posição mais fraca na qual eles podem ser pressionados a fazer concessões.”

Confira a declaração na íntegra:

Em seu primeiro discurso importante, Biden apresenta sua agenda para a classe trabalhadora 

Em seu primeiro discurso em uma sessão conjunta do Congresso dos EUA, no último dia 28 de abril, Joe Biden decidiu, calculadamente, atender diretamente às necessidades da classe trabalhadora. "20 milhões de estadunidenses perderam seus empregos durante a pandemia – estadunidenses de classe média e trabalhadores. Ao mesmo tempo, o patrimônio líquido dos cerca de 650 bilionários nos Estados Unidos aumentou em mais de US$ 1 trilhão", disse Biden. "A economia de trickle-down [política de redução de impostos dos mais ricos com a intenção de estimular a economia, mas que os beneficia] nunca funcionou. É hora de expandir a economia de baixo para cima e do meio para fora”. Biden continuou a ressaltar as várias reformas específicas que, se aprovadas, teriam implicações significativas na vida de incontáveis milhões de trabalhadores.

Assim como os presidentes do período da Guerra Fria, Biden formulou este programa em termos explicitamente imperialistas, tentando cinicamente obter apoio para esta política de confronto – uma medida potencialmente catastrófica que já está causando grandes danos aos trabalhadores nos EUA, na China e no resto do mundo. Mas o que distingue seu discurso é que o político burguês mais poderoso do mundo utilizou esta plataforma de alto nível para se dirigir diretamente aos interesses da classe trabalhadora, e para propor uma série de medidas progressistas verdadeiramente consideráveis para resolver os problemas de desigualdade de classe e raça. Compreender as razões por trás desta decisão é crucial para aqueles que querem ganhar estas reformas imediatas e para os socialistas que vislumbram uma sociedade inteiramente nova.

Isto não foi um resultado da bondade de Joe Biden. O presidente tem sido um servo leal das grandes empresas durante toda sua carreira – ele tem apoiado acordos de "livre" comércio contra os trabalhadores, a desregulamentação dos grandes bancos e instituições financeiras e tem ajudado a desmantelar a rede de seguridade social.

Pelo contrário, Biden está fazendo um cálculo político e levando em consideração os múltiplos problemas e pressões que atualmente enfrenta o sistema capitalista nos Estados Unidos. Nos últimos dez anos, os movimentos políticos radicais, socialistas e outros, tem entrado no discurso popular. O movimento Occupy Wall Street, a rebelião em Ferguson que desencadeou o movimento Black Lives Matter, a crescente luta ambiental, o movimento que se desenvolveu em torno das campanhas presidenciais de Bernie Sanders e as revoltas nacionais contra o racismo neste verão, junto a outras grandes lutas importantes, alteraram fundamentalmente a política dos EUA. Ao fazer o chamado que fez em seu discurso ao Congresso, Biden está adotando a lógica de "dobrar-se para não quebrar". Ele está propondo fazer concessões a movimentos populares e tomar suas demandas como se fossem dele. Isto é tanto uma conquista significativa para estes movimentos quanto um desafio estratégico em termos de como proceder.

Durante sua cerimônia de posse, Joe Biden estendeu um ramo de oliveira à direita, oferecendo-se para estabelecer uma aliança de longo prazo com a liderança do Partido Republicano, em nome do "bipartidarismo" e da "unidade". O Partido Republicano mostrou pouco interesse nesta proposta – outro fator que levou Biden a adotar a orientação expressa em seu discurso ao Congresso. Se a administração Biden continuar por esse caminho, os republicanos podem vir a lamentar esta decisão.

O que Biden propôs?

Biden usou seu grande discurso para anunciar oficialmente uma importante iniciativa legislativa – o Plano para as Famílias Estadunidenses. A iniciativa estabeleceria uma educação pré-escolar universal e dois anos de faculdade comunitária gratuita; subsidiaria o cuidado infantil para famílias da classe trabalhadora; garantiria 12 semanas de licença-maternidade ou médica remuneradas; e tornaria permanente um crédito fiscal significativo para os pais. Biden esclareceu que estas medidas seriam pagas com um aumento dos impostos sobre corporações e pessoas físicas que ganham mais de US$ 400 mil por ano.

O Plano para as Famílias Estadunidenses é a segunda parte da proposta de infraestrutura de Biden. O outro componente é o Plano Estadunidense de Emprego, cujo foco é em melhorias nos transportes, comunicações, habitação e serviços. Biden também destacou este plano em seu discurso, enfatizando que 90% dos empregos que a proposta visa criar não exigem um diploma universitário.

Ainda que tenha chegado a respaldar um sistema de saúde de pagamento único, Biden disse que "a atenção médica deveria ser um direito e não um privilégio", e propôs a extensão dos benefícios do Medicare [sistema de seguros de saúde gerido pelo governo dos EUA]. Ele argumentou que isto pode ser pago combatendo a manipulação de preços pelas empresas farmacêuticas, referindo-se aos custos dos medicamentos prescritos como "inaceitavelmente altos".

Biden prestou homenagem a George Floyd e instou o Congresso a aprovar um projeto de reforma da polícia. Embora o discurso incluísse linhas sobre como a maioria dos policiais serve suas comunidades, Biden ainda se sentia obrigado a reafirmar sua determinação de "erradicar o racismo sistêmico que atormenta a vida estadunidense", particularmente no sistema de justiça criminal. Ele exortou a expansão das bolsas em faculdades e universidades historicamente negras, que há muito vêm sofrendo com a negligência e a discriminação por parte do governo federal. 

Em seu discurso, Biden expressou apoio a outras medidas progressistas, tais como: a Lei PRO, que ampliaria drasticamente os direitos sindicais dos trabalhadores; alívio permanente da deportação para os "sonhadores"; aprovação da Lei de Remuneração Justa, que garante a igualdade salarial para as mulheres trabalhadoras; ampliação permanente do Status de Proteção Temporária, que é concedido aos imigrantes que escapam de circunstâncias catastróficas; e a aprovação da Lei de Igualdade para proibir a discriminação contra pessoas LGBTQ.

A situação internacional

"Estamos em competição com a China e outros países para vencer o século 21", declarou Biden em seu discurso ao Congresso, antes de acrescentar que ele advertiu "o Presidente Xi [Jinping] que vamos manter uma forte presença militar na região Indo-Pacífica, assim como fazemos com a OTAN na Europa". Biden acrescentou que esta era "uma política externa que beneficia a classe média... Os Estados Unidos farão frente a práticas comerciais que prejudicam os empregos e as indústrias estadunidenses".

O apoio de Biden às políticas internas progressistas não diminuiu nem um pouco seu compromisso com o império estadunidense. Inúmeras ações que ele tomou desde que tomou posse deixaram isso claro, incluindo sua recusa em levantar as restrições impostas a Cuba feitas pela administração Trump e sua decisão de manter as sanções devastadoras impostas à Venezuela.

Longe de proteger "trabalhadores e indústrias estadunidenses", a campanha para um conflito total com a China terá um efeito devastador – tomando quantias exorbitantes de dinheiro que poderiam ser usadas para pagar programas sociais, as desviando para uma escalada militar selvagem de proporções épicas, e que poderia colocar trabalhadores em uma situação em que seriam enviados para matar e morrer pelos lucros de Wall Street e dos fabricantes de armas.

Mas esta formulação também aponta para uma importante tendência histórica. A pressão internacional sobre a classe dominante norte-americana é frequentemente o principal fator que leva à adoção de reformas maiores. A possibilidade de que a China possa "ganhar o século 21", juntamente com a onda emergente de movimentos radicais dentro dos Estados Unidos, força a classe capitalista a considerar medidas que de outra maneira seriam descartadas.

Consideremos o exemplo do “New Deal” da administração de Franklin Roosevelt (1933-1945). Para o ex-presidente dos EUA, a Grande Depressão trouxe consigo o intenso desafio dos sindicatos e partidos políticos socialistas, cujos números cresciam diariamente. Enquanto isso, na União Soviética não havia nenhuma depressão. De fato, havia frequentemente uma escassez de trabalhadores, pois o país estava no meio do período  de desenvolvimento econômico quiçá o mais rápido de qualquer sociedade da história – um ponto que os organizadores socialistas frequentemente enfatizavam. Roosevelt estava em sua própria "corrida estratégica" com a União Soviética, e a legalização dos sindicatos de trabalhadores, a criação da Previdência Social e outras medidas foram aprovadas após reconhecer que o capitalismo estadunidense parecia, em comparação, terrivelmente inferior.

O mesmo pode ser dito sobre o fim da segregação de Jim Crow [em seu nome ficou conhecido um conjunto de leis estaduais e locais que impunham a segregação racial no sul dos Estados Unidos]. A classe dominante enfrentou por um lado a luta determinada pela libertação do povo negro nos EUA e por outro o confronto global com a União Soviética, na época campeã das lutas contra o colonialismo supremacista branco que irrompia pelo mundo.

Uma lógica semelhante estava em jogo nas iniciativas da "Grande Sociedade" de Lyndon Johnson (1963-1969), que criou programas como o Medicare e o Medicaid.

Longe de temer a ascensão da China ou de qualquer outro país, os trabalhadores estadunidenses deveriam aproveitar o declínio do poder dos Estados Unidos em todo o mundo. Isto coloca nossos verdadeiros inimigos – as grandes empresas e seus servidores em Washington – em uma posição mais fraca na qual eles podem ser pressionados a fazer concessões.

O que é preciso para vencer?  

É claro que é muito mais fácil para Biden declarar seu apoio a medidas progressistas em um discurso do que realizá-las de fato. Mesmo versões diluídas das medidas certamente enfrentarão a oposição tanto do Partido Republicano quanto da facção de direita do Partido Democrata. Estas concessões estão agora sobre a mesa; ganhá-las exigirá uma luta intensa.

Se Biden e o resto da liderança do Partido Democrata realmente querem alcançar essas mudanças, eles precisam eliminar o filibuster [procedimento que permite a um grupo minoritário de senadores atrasar ou bloquear uma aprovação de legislação]. A norma legislativa do Senado em vigor impõe uma exigência de 60 votos para aprovar a maioria das peças legislativas, em oposição a uma maioria simples de mais de 50%, que seria muito mais fácil de ser alcançada. O filibuster poderia ser eliminado sem sequer precisar de um voto republicano.

Deve ser exercida uma pressão política considerável sobre os senadores Joe Manchin, Kyrsten Sinema e outros políticos democratas com posições de direita igualmente intransigentes. Em vez de colocá-los em um pedestal como "colaboradores bipartidários" que ocupam assentos em regiões do país com altas proporções de eleitores conservadores, esses inimigos da classe trabalhadora deveriam ser ridicularizados e evitados até chegarem à mesa de negociação. Não há dúvida de que o Partido Republicano disciplinou seus próprios membros, que temem que seus oponentes os rotulem de "republicanos apenas no nome" se não seguirem à risca a ortodoxia de direita.

As mobilizações massivas, especialmente aquelas envolvendo o movimento trabalhista, seriam de grande importância para criar uma pressão necessária para forçar a aprovação de reformas fundamentais. Fazer um chamado para que as pessoas se mobilizem além das urnas ou em campanhas eleitorais é um tabu para os políticos da classe dominante. Mas para alcançar mudanças reais, a política não pode seguir sendo de domínio exclusivo dos ricos, deixando os trabalhadores como meros espectadores. 

Conquistar reformas pode motivar as pessoas a se organizar e lutar por objetivos de longo prazo, prova de que a luta pode levar a resultados tangíveis. A sentença de Derek Chauvin [policial que assassinou George Floyd], por exemplo, nada fez para diminuir o interesse na luta contra o terror policial racista. Se as pessoas que acreditam em uma nova sociedade socialista são participantes dedicados dessas lutas, elas podem servir de trampolim para um movimento de transformação completa do governo e da economia a serviço dos interesses da classe trabalhadora.

*Tradução da Declaração do Partido Socialismo e Libertação por Vivian Fernandes.

Edição: Vivian Fernandes