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O Mercado apostaria em Auschwitz

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Em um mundo sem remorso e compaixão – portanto perfeito enquanto ambiente negocial – por certo o Mercado se interessaria por Auschwitz - Janek Skarzynski / AFP
O princípio do lucro acima de tudo e do Mercado acima de todos autoriza a pensar o impensável

Como a entidade chamada Mercado reage a uma tragédia humanitária? É uma questão pertinente já que o Mercado orienta o governo, qualquer governo, quanto às decisões que deve tomar. Como os oráculos da velha Grécia, sua palavra não tolera transgressões sob pena de desabar o mundo. Logo, é importante saber de que modo este ente impalpável, incorpóreo e imaterial lida com as dores da condição humana.

É o que vamos tentar descobrir. Aqui, em sinal de reverência e devoção, vamos chamá-lo de “Mercado”, com M maiúsculo, único tratamento digno de uma divindade.

O Mercado se corporifica na Bolsa de Valores. Ali, o Verbo se faz Carne e seus insondáveis desígnios tornam-se mais claros. Dali provém seus ensinamentos para iluminar nossos governantes e dar rumo as nossas pequenas vidas. Quais as aflições do Mercado, então, diante do Brasil assolado pela pandemia?

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No dia 28 de abril do ano passado, o país chegou aos cinco mil mortos pela covid-19, superando o total da China. Naquela quarta-feira, Jair Bolsonaro foi perguntado sobre a cifra. “E daí?”, respondeu. “Sou Messias mas não faço milagre”, retrucou.

“E daí?” foi também a resposta da Bovespa. Subiu 2,29%.

Oito de agosto de 2020 apontou 100 mil vidas perdidas. O governo enxergou mérito no número. Celebrou “um dos menores índices de óbitos por milhão”. Naquele sábado, o presidente comemorou o título de campeão paulista do Palmeiras. Dois dias antes, ao saber que os 100 mil se aproximavam, recomendou “tocar a vida”.

Na Bovespa, a decisão foi também de “tocar a vida”. No primeiro pregão após o recorde funerário, o Ibovespa fechou em alta de 0,65%. Havia, porém, preocupação com medidas que prejudicassem o teto de gastos.

Ano novo, novo recorde. Na quinta-feira, 7 de janeiro, o Brasil ultrapassou a marca dos 200 mil óbitos. “Aumentamos as mortes, a vida continua e pedimos a Deus que abençoe o nosso Brasil", resumiu Bolsonaro em sua live.

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No pregão seguinte, a vida continuou também no Mercado porém bem mais animada. “Ibovespa volta a bater recorde e alcança 125 mil pontos”, bradou uma das manchetes. Naquela sexta-feira, a Bolsa fechou em alta de 2,20%.

Não precisou de muito tempo para o Brasil cruzar a linha dos 300 mil mortos. Aconteceu em 24 de março.

Na Bovespa houve otimismo. Fechou em alta, subindo 1,50%.

Dezessete dias depois, 350 mil mortes. Aconteceu no sábado, 10 de abril. Aquela semana fecharia com os piores resultados desde o começo da pandemia, com mais de 21 mil vidas perdidas.

Na reabertura da Bolsa, dois dias após, o otimismo prevaleceu. O Ibovespa subiu quase 1%.

O Brasil empilhou 400 mil cadáveres no dia 29 de abril. “Chegou a um número enorme aqui, né?”, disse o presidente na conversa com o eleitorado em mais uma live.

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No pregão seguinte, a Bovespa, finalmente, registrou um ligeiro recuo de 0,98%. Nada capaz de atrapalhar a euforia dos investidores. Afinal, abril fechou com saldo positivo de 1,94%.

Menos positivo foi o abril da gente brasileira. Tornou-se o mês mais letal da pandemia com 82 mil mortes.

É fácil perceber que o Mercado não dá a mínima para nosso drama. Como, então, aceitar os conselhos dessa criatura de empatia zero? Se fosse uma pessoa humana, iríamos querer saber de quem se trata. Qual seu caráter, seus valores, sua personalidade?

O documentário canadense A Corporação, de 2004, nos dá algumas pistas. Nele, testemunhas detectam em algumas pessoas jurídicas o emblema da psicopatia. Um dos depoentes diz que se uma empresa mostra total desinteresse pelo sentimento dos demais, desconsidera a segurança alheia e mente em busca do lucro deve ser considerada “psicopata”.

No filme, Carter Brown, um corretor da bolsa de Nova York expôs seu sentimento ao ver os aviões se chocando contra as torres gêmeas. A primeira coisa que pensou foi: “O ouro vai explodir! Meus clientes tinham ouro e o capital deles dobrou. Foi uma benção disfarçada!”

Brown vibrou também com os bombardeios do Iraque. O barril de petróleo passou de 13 para 40 dólares e ele torcia para a situação se agravar para que o petróleo continuasse subindo. “Na devastação também há oportunidades”, justificou.

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O princípio do lucro acima de tudo e do Mercado acima de todos autoriza a pensar o impensável. Nesse universo amoral, todas as cogitações são possíveis, bastando que haja perspectiva de ganho. No desbravamento de novas fronteiras sem empecilhos de ordem moral, é lícito presumir que o complexo de campos de concentração e de extermínio Auschwitz/Birkenau pudesse ser uma oportunidade de negócio.

No sumidouro de um milhão de mortos que o nazismo implantou na Polônia na II Guerra, as tropas da SS despojavam os prisioneiros de alianças, anéis, colares, pulseiras e lhes arrancavam os dentes para extrair o ouro. Em outro campo, Buchenwald, prosperou o uso de pele humana na encadernação de livros e álbuns e na produção de abajures e carteiras. O horror propiciava uma incipiente produção extrativista e industrial.

Em um mundo sem remorso e compaixão – portanto perfeito enquanto ambiente negocial – por certo o Mercado se interessaria por Auschwitz. Melhor gestão, automatização dos processos, revisão de metas poderiam, quem sabe, alavancar a performance e produzir um case de sucesso. Viabilizado, com produção em grande escala, poderia, talvez, colocar suas ações na bolsa. Afinal, como disse o corretor: “Na devastação também há oportunidades”.

 

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo