Tons de verde-oliva

Caso Pazuello: racha nas Forças Armadas ou apoio incondicional a Bolsonaro?

Participação do ex-ministro em ato reforça politização do Exército e provoca reações variadas; punição é improvável

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Deputado federal Hélio Lopes (PSL-RJ, à esquerda), Eduardo Pazuello, Jair Bolsonaro e deputado federal Carlos Jordy (PSL-RJ) em manifestação no Rio no último domingo (23) - Reprodução / Twitter

“As Forças Armadas estão diuturnamente nas páginas dos jornais, e grande parte da oficialidade não gosta disso. Se Bolsonaro afundar, ele carrega junto as Forças Armadas. O presidente do Clube Militar continua apoiando o presidente da República, mas eu ouvi do corpo de sócios que alguns já não vão aderir a manifestações pró-Jair Bolsonaro.”

O relato de Robson Augusto da Silva, suboficial da reserva da Marinha desde 2014, aponta para desgastes na relação entre Jair Bolsonaro (sem partido) e parte das Forças Armadas.

Generais como o ex-ministro Santos Cruz e o vice-presidente Hamilton Mourão defenderam publicamente punições ao ex-ministro Eduardo Pazuello por sua participação no ato pró-Bolsonaro do último domingo (23) – no palanque, sem máscara nem respeito às normas de distanciamento social.

Leia também: Artigo | Qual será destino de Pazuello?

O Regulamento Disciplinar do Exército Brasileiro (RDE) diz que não é permitido ao militar tomar parte em manifestações de caráter político. Pazuello é general da ativa.

Se houver uma punição exemplar ao ex-ministro da Saúde, será um acontecimento inédito no atual governo. Nas outras vezes em que generais declararam apoio efusivo a Bolsonaro ou criticaram outros presidentes, saíram fortalecidos.

O próprio presidente da República já se posicionou abertamente contra qualquer tipo de punição a seu ex-ministro da Saúde, alegando se tratar de um “homem de bem.”

Silva é editor da revista Sociedade Militar, que tem cerca de 400 mil leituras de artigos por mês. Como seu público-alvo são integrantes das Forças Armadas, ele acompanha em tempo real os comentários dos leitores e percebe que o apoio ao presidente já não é homogêneo e irrestrito.

Em conversa com o Brasil de Fato, o militar da reserva da Marinha compartilhou suas percepções sobre os temas que provocam maior divergência.

Vozes dissonantes

Desde que deixou o cargo de ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência, em junho de 2019, Carlos Alberto dos Santos Cruz tornou-se um dos únicos generais a criticar Bolsonaro na imprensa e nas redes sociais.

Em janeiro de 2020, em entrevista à BBC Brasil, ele acusou o presidente de se afastar do combate à corrupção.

Após o rompimento entre Bolsonaro e o então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, o general se posicionou do lado da Lava Jato.

Na manhã seguinte ao ato com Pazuello no Rio, Santos Cruz fez uma nova postagem contundente em sua conta no Twitter:

“De soldado a general tem que ser as mesmas normas e valores. O presidente e um militar da ativa mergulharem o Exército na política é irresponsável e perigoso. Desrespeitam a instituição. Um mau exemplo, que não pode ser seguido. Péssimo para o Brasil”, escreveu.

Santos Cruz não foi o único militar a repudiar a postura de Pazuello no ato pró-Bolsonaro.

“Nas redes sociais e grupos formados por militares das Forças Armadas muita gente tem questionado a presença do General Pazuello nesse domingo em palanque ao lado do presidente Bolsonaro e outros políticos”, diz nota publicada pela Sociedade Militar na segunda-feira (24).

O texto ressalta que a insatisfação é principalmente de militares da reserva.

Superexposição

Para Silva, não é possível listar quem são os representantes da ala “não bolsonarista” das Forças Armadas nem precisar o tamanho dessa fatia, na ativa ou na reserva.

“Nós tradicionalmente não nos posicionamos contra ou a favor de um político. Normalmente, nos posicionamos sobre uma medida, lei ou ato específico”, diz.

“Eu frequento bastante grupos e redes sociais de militares e vejo, por exemplo, que alguns estão insatisfeitos com a política remuneratória, mas se sentem agradados com o governo de maneira geral”, completa.

Se existe algum consenso, é que a superexposição dos militares no governo Bolsonaro ameaça a credibilidade da Marinha, do Exército e da Aeronáutica.

“As Forças Armadas têm lutado para que o nome seja conhecido como uma instituição segura, honesta. No momento em que você se alia a um político, tudo que ele faz de bom, e principalmente de ruim, fica marcado”, explica Silva.

“Hoje em dia até a alimentação dos militares é vigiada, assim como o número de medalhas que se concede, o dia em que fulano é transferido para a reserva etc. Todos os olhos estão voltados para as Forças Armadas”, lamenta.

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Em novembro de 2020, essa insatisfação foi verbalizada por Edson Pujol, ex-comandante do Exército, durante seminário sobre Defesa Nacional.

“Não somos instituição de governo, não temos partido, nosso partido é o Brasil. Independente de mudanças ou permanências em determinado governo por um período longo, as Forças Armadas cuidam do país, da nação. Elas são instituições de Estado, permanentes. Não mudamos a cada quatro anos a nossa maneira de pensar”, disse.

O general da reserva Paulo Chagas se manifestou pelas redes sociais em março, acusando Bolsonaro de teimosia, vaidade, narcisismo e falta de humildade. No final daquele mês, os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica deixaram seus cargos.

Parecia estar aberta uma fissura nas Forças Armadas. No entanto, o apoio a Bolsonaro estava assegurado: 6,3 mil militares brasileiros ocupam cargos civis em diferentes áreas, um recorde desde a redemocratização.

Remuneração e regalias

Em abril, o Ministério da Economia publicou a Portaria nº 4.975/21, que definiu novas regras para aposentados civis ou militares reformados que ocupam cargos ou funções.

Na prática, o documento liberou os aposentados da obrigação de cumprir o teto salarial de R$ 39,2 mil mensais, beneficiando ministros militares como os generais bolsonaristas Braga Netto (Defesa) e Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil).

A mudança representou uma alta de 6% no salário de Bolsonaro e de 62% no de Mourão. Para o general Ramos, o aumento foi de 69%, e para Braga Netto, de 58%. Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, terá acréscimo de 60%, e Marcos Pontes, ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, de 44%.

Na interpretação do sargento da reserva da Marinha, a concessão dessa regalia teve impacto negativo sobre a credibilidade da instituição.

“O discurso do bolsonarismo sempre incluiu uma reclamação contra os supersalários. E, agora, na primeira oportunidade que apareceu, os ministros palacianos colocaram o nome na lista para extrapolar o teto permitido para o funcionalismo. Isso pegou muito mal”, relata.

Para pesquisadores como William Nozaki, é justamente a concessão desse tipo de benefício que alimenta o “apetite corporativista” das Forças Armadas.

“A linha geral é a ocupação do Estado. Precisamos olhar para essa dimensão desconstruindo o mito de que os militares sentam em uma mesa e organizam tudo hierarquicamente, de maneira estratégica. O que as crises nos mostram é que isso não acontece. É uma ocupação de espaço desprovida de projeto”, disse o cientista político, em entrevista ao Brasil de Fato no fim de semana.

Em paralelo à permissão para os generais extrapolarem o teto, parte dos militares da reserva passou a pagar mais por pensão e assistência médica.

“O que está mais dividindo a opinião dos militares é a questão remuneratória. Recentemente houve uma reestruturação, e muitos esperavam que o governo contemplasse o conjunto dos militares da ativa e da reserva. Como isso não aconteceu, gerou-se uma divisão de opiniões sobre o governo e sobre o papel que os ministros militares estão desempenhando”, relata Silva.

“Grande parte dos militares da reserva acredita que a reestruturação das carreiras foi uma espécie de reajuste salarial disfarçado, que contemplou todos os oficiais generais na ativa e na reserva, e parte significativa da tropa na ativa”, acrescenta.

O suboficial da reserva da Marinha enfatiza o efeito negativo desse processo junto ao que parecia ser uma base consolidada de apoio.

“A insatisfação eu posso dizer que é maciçamente da parte dos militares que estão na reserva hoje, que costumam ser considerados apoiadores de primeira ordem do presidente da República, e que estavam na ativa quando ele se lançou como candidato a vereador no Rio de Janeiro [em 1988].”

Nada de novo no caso Pazuello

Embora haja discordâncias pontuais entre os militares, as primeiras reações à participação do general Pazuello no ato de domingo não significam uma cisão nas Forças Armadas.

Essa é a análise de Lucas Rezende, professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialista no tema.

“O que a gente está vendo agora com Pazuello não é nada diferente do que o general Villas Bôas fez no Twitter, do que o general Mourão fez ao se posicionar politicamente contra dois ex-presidentes da República, Dilma Rousseff [PT] e Michel Temer [MDB]”, diz.

A postagem a que ele se refere foi feita pelo então comandante do Exército Brasileiro às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula no Supremo Tribunal Federal (STF), no “caso triplex”.

Sem citar o ex-presidente, mas em tom de ameaça, Villas Bôas criticou na ocasião a impunidade da Justiça brasileira. O habeas corpus foi negado, e Lula passou 580 dias preso. Este ano, o mesmo STF reconheceu que Moro foi parcial e que a 13ª Vara de Curitiba não tinha competência para julgar o petista.

:: Militares deixaram de ser vistos como o lado racional do governo, diz pesquisador João Roberto Martins Filho ::

Lucas Rezende ressalta que nem Villas Bôas nem Mourão foram punidos conforme o regimento do Exército.

“Mourão foi ‘afastado’, entrou para a reserva e se tornou vice-presidente da República. Villas Bôas teve problemas de saúde, mas se tornou um herói dentro do Exército e das Forças Armadas. Então, esses gestos têm sido entendidos como incentivo para a participação política, e não o contrário”, observa.

Para o especialista, a falta de uma punição exemplar aos generais transmite uma mensagem clara a todos os militares: “Se os generais podem, por que as patentes mais baixas, coronéis, tenentes-coronéis e mesmo policiais, não vão poder?”

As declarações de Mourão e Santos Cruz contra a postura do Pazuello também não são inéditas. O pesquisador lembra que são inúmeras as falas de generais dizendo que política e Forças Armadas não se misturam. Na prática, nada mudou depois desses discursos.

“A mensagem que Pazuello tem passado não é um confronto ao comando do Exército, muito pelo contrário. Porque o comando do Exército, que possibilitou isso tudo, é o general Villas Bôas. Isso começou com ele, continuou com Etchegoyen [ex- ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional] e com tantos outros”, analisa.

“Pazuello não está lá à toa, de forma gratuita. Está lá representando uma visão que hoje é majoritária dentro das Forças Armadas de que vale a pena atuar politicamente, de que os militares têm que dar sua mensagem política”, completa.

Rezende finaliza lembrando que Bolsonaro é fruto da atuação política dos generais brasileiros, e não o contrário. “São militares que sempre quiseram ter uma participação política ativa, e têm feito isso de maneira cada vez mais declarada e descarada.”

Polarização e perspectivas

Robson Augusto da Silva deixa claro que as insatisfações pontuais de parte das Forças Armadas são anteriores ao ato com participação de Pazuello. Para ele, a não adesão do Clube Militar ao ato de 1º de maio “foi um fato político relevante.”

O suboficial da reserva da Marinha avalia que o apoio que Bolsonaro recebeu das Forças Armadas em 2018 foi circunstancial, mas pode se repetir na próxima eleição.

“Não estou dizendo que Bolsonaro era o ‘menos pior’, mas pela ótica dos militares ele era visto como alternativa para afastar os governos derivados de Lula”, lembra.

“Hoje em dia é diferente. Bolsonaro já foi eleito, o PT não assumiu a Presidência, e divergências começam a aparecer”, compara Silva.

Na entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político William Nozaki discorreu sobre o ressentimento das Forças Armadas com o ex-presidente Lula (PT).

Entre as hipóteses levantadas por Nozaki, estão os grandes projetos estratégicos elaborados junto à Marinha e a Aeronáutica.

“O Exército foi justamente o que teve menos grandes projetos estratégicos nessa monta. E, nessas parcerias, também pela política externa de defesa da soberania brasileira, o alinhamento automático com os Estados Unidos não estava dado”, disse o especialista.

“Então, criou-se um ambiente que facilitou a aproximação entre o Exército, especificamente, e os Estados Unidos, o que acaba desaguando nesse alinhamento que vimos com o governo Bolsonaro”, acrescentou Nozaki.

A esse caldo de insatisfação somou-se a eleição de Dilma Rousseff, torturada pela ditadura militar, e a abertura da Comissão Nacional da Verdade, gerando “desconforto entre parte dos generais, sobretudo da reserva”.

Silva diz que a possibilidade de retorno do PT ao governo, sinalizada pelas pesquisas de opinião, pode ser um elemento importante na equação do bolsonarismo.

“Ele [Bolsonaro] é um cara que trabalha em alta rotação. Se tiver atrito, ele se sobressai, porque cresceu na política dessa forma”, afirma o militar da reserva da Marinha.

“Então, uma polarização [com Lula] favorece, sim, o presidente Bolsonaro no que diz respeito ao apoio das Forças Armadas – que acabam arrastando o apoio de boa parte da direita. Os militares não enxergam até agora outro nome que represente a direita”, completa.

Uma vez eleito, Lula se tornará comandante supremo das Forças Armadas em 1º de janeiro de 2023. Ou seja, generais da ativa que hoje apoiam Bolsonaro estarão, por lei, sob autoridade do petista.

“Se Bolsonaro não ganhar as próximas eleições, as Forças Armadas vão ficar em uma situação constrangedora diante do próximo governo, principalmente se ele for do viés político oposto”, finaliza Silva.

Edição: Rebeca Cavalcante