MILITARES NO PODER

Qual a relação da absolvição de Pazuello com a impunidade dos crimes da ditadura?

Especialistas analisam decisão inédita do Exército, que não puniu general da ativa por participar de ato com Bolsonaro

Brasil de Fato | São Paulo (SP) | |
A impunidade militar, como no caso de Eduardo Pazuello, acentua a insubmissão dentro das corporações e coloca a sociedade em risco ainda maior. - Alan Santos / PR

Um general da ativa ao lado de um capitão reformado expulso das Forças Armadas por mal comportamento. Juntos, Jair Bolsonaro e Eduardo Pazuello, tidos como os dois principais responsáveis pela má gestão de uma pandemia que já soma mais de 470 mil mortes no país. Os dois sem máscara, aglomerando com apoiadores. 

Para muitos brasileiros, o ato de 23 de maio, no Rio de Janeiro, além de uma grave infração ao Estatuto das Forças Armadas, que proíbe que militares da ativa participem de manifestações políticas, foi uma afronta á sociedade. 

O processo interno para apurar a conduta de Pazuello, que se defendeu publicamente dizendo que o ato não era político, foi aberto um dia após a manifestação. A desculpa convenceu o comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira, que foi condecorado por Bolsonaro por não punir o ex-ministro da Saúde e ainda atribuir um sigilo de 100 anos ao processo disciplinar.

Na visão de especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, a absolvição sem precedentes na história coloca em evidência as fragilidades de uma corporação ainda impune pelos crimes da ditadura, e que hoje atua, em parte, mais para os interesses de Bolsonaro, do que do próprio Estado brasileiro. 

"Isso serve para alimentar a escalada de desmoralização do Exército, uma instituição que declara: 'não tenho contas a prestar'. É mais ou menos isso que o comandante fez e isso desabona a sua figura e da instituição", opina Manuel Domingos Neto, historiador e professor aposentado do curso de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Os crimes da ditadura e a absolvição de Pazuello

Preso e expulso do país por fazer oposição ao Regime Militar,  Domingos Neto analisa que a absolvição do general não é novidade, mas um reflexo da ausência de uma justiça de transição no pós- ditadura, que deriva desde a promulgação da Lei da Anistia, em 1979. Até hoje, não houve uma retratação formal por parte da instituição. 

"Eles estavam convictos de que tinham travado uma guerra justa, que tinham feito certo, não deviam pedir desculpas pelas mortes, pelas posturas. Não tinham pedido desculpas pela quebra da legalidade, pela insubordinação, pela ruptura do princípio hierárquico, pela subversão praticada ao longo de tanto tempo" aponta.

Décadas depois, a impunidade daria lugar aos cargos, e o historiador não imaginava que, tão cedo, o exército voltaria a "mandar" no país.  Hoje, mais de 6,3 mil militares ocupam cargos civis em diferentes áreas do governo federal. 

O próprio Pazuello, que comandou o Ministério da Saúde entre maio de 2020 e março de 2021, foi nomeado por Bolsonaro para atuar na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, já respondendo ao processo no Exército.  

"Instrumentos de força que disputam poder político ninguém segura. É a confusão, é a baderna, é a falta de garantia sobre a preservação da institucionalidade. Quando a corporação militar, a corporação de força, entre a querer patrocinar, a ousar de fundadora da pátria, e deter o monopólio do patriotismo, isso é a maior falta de consideração que pode existir com a sociedade", afirma Neto.

"O processo de construção da nacionalidade é um processo complexo, que deriva sobretudo de forças sociais e não de forças corporativas. De lá pra cá, jamais o poder político ou o poder civil conseguiu orientar efetivamente uma política de defesa", completa o ex-miltante da organização de esquerda Ação Popular.

Anticomunismo e militarização

A tentativa mais efetiva de responsabilização de torturadores do período militar foi encabeçada pela Comissão da Verdade, criada por Dilma Rousseff, em 2011. A condenação dos militares, porém, não foi concluída como ocorreu em outros países da América do Sul. 

O reconhecimento dos crimes e abusos cometidos na ditadura, na visão do cientista político e professor da PUC-SP Pedro Fassoni Arruda, teria sido fundamental para que as Forças Armadas não assumissem o papel de "Poder Moderador da Nova República", e mais do que isso, pudessem reformular seus pilares, ainda hoje antipopulares e marcados pela defesa da propriedade privada e repressão aos movimentos sociais.

"Toda a estrutura não foi desmontada, os serviços de inteligência continuam ativos, e o próprio processo não só de recrutamento, mas de doutrinação dos militares. Aquela ideologia dos tempos da Guerra Fria, de combate do inimigo interno, o anticomunismo visceral. As datas comemorativas da repressão de comunistas continuam sendo celebradas nos quartéis", analisa Arruda.

Para o docente, a impunidade, como no caso de Pazuello, acentua a insubmissão dentro das corporações, especialmente nas forças policiais. O extermínio de pessoas nas periferias mesmo na pandemia, como a operação desastrosa que deixou 27 mortos na Favela do Jacarezinho, além das prisões arbitrárias enquadradas na Lei de Segurança Nacional, que permanece intacta desde 1983, são reflexos desse processo. 

"Não basta mudar de governo, tem que remover completamente o que resta da ditadura ainda, esse entulho autoritário que não foi revogado. Tem que desmilitarizar a polícia imediatamente, por exemplo. O Brasil é um dos campeões mundiais de homicídios, cerca de 70 mil por ano, e pode botar uma grande parte na conta das forças de repressão", conclui.





 

Edição: Isa Chedid