PESCA ARTESANAL

Pesca da tainha: a tradição que inspirou Exupéry em Florianópolis e ainda resiste

Laços da amizade entre autor de 'O Pequeno Príncipe' e pescador nativo permanecem vivos, assim como a vida nos ranchos

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Conforme a tradição, pescadores dividem tainhas com a comunidade da praia após a puxada da rede - Pedro Stropasolas
Viver de algo, de uma cultura, não é necessariamente a questão financeira. É uma questão emocional

Enquanto o frio aperta em Florianópolis, uma tradição é celebrada: é a pesca artesanal da tainha, peixe que transborda entre os meses de maio a julho nas águas do litoral de Santa Catarina.

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A prática, tombada como patrimônio imaterial do Estado, não representa apenas uma diversão ou um ofício, mas uma relação afetiva que atravessa gerações.

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"É uma forma de viver. A gente espera o ano todo para o mês de maio, mês de junho. São os meses mais aguardados. Para tu ver que envolve tanta gente, que a maioria das pessoas nativas aqui, que são empregadas, deixam para tirar as férias não no verão e sim no inverno, para pescar tainha", conta Hugo Adriano Daniel, que desde criança se envolve com a pesca artesanal na ilustre comunidade do Campeche, no Sul da Ilha.

Trabalho em equipe

Por lá, presenciar um lanço de tainha é um atrativo, apesar da Safra não estar das melhores em 2021. Para os pescadores e amantes da tradição, a rotina envolve sair ao rancho diariamente à espera dos cardumes.

Quem avista os peixes são os olheiros, o grupo que permanece de vigia, geralmente no alto das dunas de areia. É nesse momento que a calmaria dos pescadores dá lugar a agitação.

Isso porque, eles precisam correr para empurrar o barco até o mar, soltar a rede que contorna o cardume, e depois puxá-la para a praia em mutirão.  

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No rancho da família de Hugo são em torno de 80 pescadores. No fim do trabalho, as tainhas são divididas entre o grupo e a comunidade da praia.

"A metade do peixe capturado fica para a rede, que é para manutenção do rancho, para os equipamentos, que a gente chama de apetrechos. A outra metade é dividida entre os camaradas. Na nossa rede são oitenta camaradas. E também a gente separa uma parte do quinhão para distribuir para as pessoas que estão ali na praia, que a gente chama de ajudantes. Todo mundo que ajudou, que se envolveu", explica. 

A tainha é um peixe conhecido por ser migratório e se desenvolver principalmente em lagoas que misturam a água salgada com a doce.

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O maior estuário da espécie no Brasil é a Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul. Nesta época do ano, os peixes sobem em busca das águas quentes do oceano para desovar. É quando se tem início a Safra da Tainha para os pescadores.

Por conta disso,  há algumas regras definidas  para preservar a espécie e a própria tradição da pesca artesanal, que hoje divide o mar com as pequenas embarcações motorizadas, os conhecidos botes, e os grandes barcos da pesca industrial, que tem em Itajaí, a 77km de Florianópolis, um dos principais polos do país. 

A definição de datas para o início das atividades e o limite de cotas máximas para cada tipo de pesca são definidas por lei, mas muitas vezes ignoradas - ainda mais no governo de Jair Bolsonaro. 

Seu Deca e Zéperri

A tradição da pesca da tainha no Campeche ainda preserva outros laços simbólicos, entre eles a relação com a literatura.

A comunidade  é marcada pela passagem do escritor francês Antoine de Saint Exupéry e por sua amizade construída com os pescadores nativos, entre eles Manoel Rafael Inácio, o  Seu Deca, que batizou o francês com o apelido carinhoso de Zé Perri. A história é ainda hoje viva na memória de seu filho Pedro Inácio.

"Ele contava essa história para os familiares, para os filhos, para os netos, e depois teve uma homenagem na nossa avenida principal, que passou a ser chamar Pequeno Príncipe", lembra o pescador. 

Autor do clássico 'O Pequeno Príncipe', traduzido em 250 idiomas, apenas atrás da Bíblia e do Alcorão, Exupéry era chefe da companhia francesa de correspondências Aeropostale, que entre a década de 1920 e 1940, usava a praia do Campeche como ponto de parada para os pilotos.  

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O Rancho de Pesca Manoel Rafael, que homenageia o seu Deca, foi construído há pelo menos 70 anos e é tido hoje como um dos principais pontos de resistência cultural da cidade. O pescador morreu em 1983 e seu filho Getúlio Manoel Inácio, irmão de Pedro, eternizou a amizade de seu pai no livro intitulado Deca e Zé Perri (2001).

"É relembrar as nossas histórias, o nosso passado, que vem de geração, vem do meu bisavô, do meu avô, do meu pai, que me ensinou a pescar, e de todos os moradores do Campeche que vão lá na praia ver a gente cercar um lanço de tainha, pessoal que vem de fora e que acabam também participando e se chegando junto com os pescadores e gostando da tradição, então isso aí é muito importante", finaliza Pedrinho, como é conhecido.

 

Edição: Douglas Matos