FAIXA DE GAZA

Sob Bennet, ocupação israelense da Palestina se intensificará, diz Reginaldo Nasser

Professor da PUC-SP explica que Naftali Bennet e Yair Lapid representam a extrema direita e são próximos de Netanyahu

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Para o professor da PUC-SP, novo governo é próximo a Benjamin Netanyahu e ocupou cadeiras nos últimos 12 anos - Reprodução
Bennet é um milionário e da geração envolvida com a ocupação de território palestino.

A nova composição do governo israelense, que derrubou – após 12 anos – o ex-primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, não deve alterar as relações  de opressão com os palestinos, segundo Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ao contrário, alguns dos problemas que hoje afligem a vida dos palestinos, devem se intensificar, como as ocupações da Cisjordânia.

Uma grande coalizão de oito partidos, de direita, centro, esquerda e até árabes, deu a Naftali Bennet e Yair Lapid, a chance de governar Israel pelos próximos quatro anos – os dois primeiros serão comandados por Bennet e os dois últimos por Lapid. 

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Segundo Nasser, todas as principais figuras do novo governo representam grupos de extrema direita “e todos eles, de alguma forma, participaram do governo de Netanyahu. Eles têm uma origem em comum”, explica.

No BDF Entrevista desta semana, o professor explica que “Bennet é mais jovem que o Netanyahu, teve sucesso atuando como empresário, é um milionário, faz um discurso econômico mais neoliberal, mas também é uma geração envolvida diretamente com a ocupação de território palestino”. 
 

Desde a Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967, a ocupação do território palestino se intensificou. Hoje, somente cerca de 16% da Cisjordânia está sob o controle da Autoridade Palestina. A tomada das residências de palestinos por israelenses, inclusive, foi o epicentro do recente conflito, que deixou 256 palestinos e 13 israelenses mortos. 

Colonos, como são conhecidos os invasores israelenses que reivindicam na justiça o direito de ocupar casas de famílias palestinas, por entenderem que ocuparam aquele local no passado, retiraram famílias do bairro de Sheik Jarra, na Jerusalém Oriental. 

“A criação dos dois estados foi inviabilizada pelas ocupações. Se a gente olhar o mapa da Cisjordânia, ele é todo retalhado. Somente por volta de 16% ou 17%, daquilo que seria o estado palestino, é hoje comandado pela Autoridade Palestina. Não chega a 20% e mesmo nesse território ele não tem poder sobre a questão econômica”, aponta Nasser.

Confira alguns trechos da conversa:

Brasil de Fato: Antes de falarmos sobre a composição do novo governo, talvez seja importante retomar a questão palestina e a situação de Gaza hoje, muito mais delicada que a Cisjordânia.

Reginaldo Nasser: “Quando se fala a questão palestina, tem uma questão principal? Tem, e começa a partir da criação do estado de Israel. Mas a partir de lá, ela se desdobra em quatro questões. E cada uma tem uma dimensão importante e não pode ser esquecida. 

Em primeiro lugar, os palestinos da diáspora. São aqueles que foram expulsos na criação do estado de Israel e seus descendentes e aqueles que foram expulsos na Guerra dos Seis Dias e seus descendentes, e não podem voltar para lá. Hoje, um judeu que nunca teve família que nasceu lá, ele pode ir pra lá. Um palestino, não.

Gaza, que é uma coisa inédita no mundo

A outra realidade é de um apartheid dentro de Israel, contra 20% da população que é palestina. E é um apartheid que também se estende para a Cisjordânia. Nos lugares ocupados, eles já são expulsos mesmo e nos lugares onde os palestinos ainda estão, são afetados em seu dia a dia, desde saúde, educação e tudo mais.

E tem Gaza, que é uma coisa inédita no mundo. É uma das maiores densidades demográficas do mundo, com mais de 2 milhões de habitantes. É do tamanho de Parelheiros (bairro do extremo-sul de São Paulo), cercada por mar e terra. Pequena fronteira com o Egito fechada e o entorno de Israel, cercado pelo ar. 

Gaza é o único lugar do mundo que não tem como ter refugiado, porque não tem como sair. E é semelhante ao que acontece nas periferias do Brasil, das grandes cidades. A gente só olha na hora que tem um grande acontecimento, um confronto. No Jacarezinho morrem 15, 20, 30 pessoas, e a gente olha, na hora que acaba, a gente pensa que voltou ao normal. Mas esse normal é violento.

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Em Gaza, 70% das pessoas vivem abaixo da linha da miséria: problema de água, problema de energia elétrica, problema de saúde, absolutamente tudo. Sem a mínima condição.

E como vai resolver? Vai matar 2 milhões de pessoas? Hoje, no mundo, é difícil fazer isso, mas tornar a vida deles – e essa é a ideia de Israel – tão insuportável, que todos fossem lutar para abandonar. Mas eles estão lá e aumenta a população, porque não desistem de viver e lutam bastante. E a comunidade internacional não faz absolutamente nada. 

A composição do novo governo israelense pode alterar as bases que hoje comandam um apartheid contra os palestinos?

O primeiro ministro, Naftali Bennet, o ministro de Relações Exteriores, Yair Lapid, o ministro de Finanças, que é o [Avigdor] Liberman, e o ministro da Justiça [Gideon Saar], todos eles nesses cargos são da extrema direita. E todos eles, de alguma forma, participaram do governo de [Benjamin] Netanyahu. Estou falando isso porque eles têm uma origem em comum. 

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O Bennet é mais jovem que o Netanyahu, teve sucesso atuando como empresário, é um milionário, faz um discurso econômico mais neoliberal, mas também é uma geração envolvida diretamente com a ocupação de território palestino. O colono anda armado, ele anda com fuzil e metralhadora. Então ele vai na frente e o exército vai atrás. Para mim, o perfil dele [Bennet] é mais de colono.

Em 1948 e 1967, as duas guerras, são estritamente militares. Foi criado o estado de Israel, aconteceu, em 1967, a Guerra dos Seis Dias, o exército ocupou a Cisjordânia e Gaza. De lá para cá, foram aparecendo [nos governos israelenses] pessoas que eram do sistema de inteligência, ou do lado militar. 

A criação dos dois estados foi inviabilizada pelas ocupações

Essa outra perspectiva [dos colonos] foi ocupando terra não por guerra, são pequenas ações de ocupação que contam com o apoio militar e o apoio empresarial. É um perfil um pouco diferente. Eles vão, como se diz no popular, comendo pelas beiradas. 

Você tem um movimento de ocupação da Palestina que é crescente nos anos 1990 e 2000, sem guerra. Eu já não sei mais se vai se intensificar, porque não tem mudança nenhuma, mesmo de governos trabalhistas. Tem um gráfico que mostra, durante anos, o processo de ocupação da Cisjordânia e da criação de Gaza, ele é crescente. Tiveram governos trabalhistas, considerados à esquerda, que são a mesma coisa. 

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Durante todos esses anos foi retórica. Hoje, uma atitude realista, não fala mais em dois estados. Quem não fala em dois estados, e crítica é para que tenha apenas um estado e dois povos, que é a esquerda em Israel, que é pequena e também a grande maioria dos povos palestinos. 

A criação dos dois estados foi inviabilizada pelas ocupações. Se a gente olhar o mapa da Cisjordânia, ele é todo retalhado. Somente por volta de 16% ou 17%, daquilo que seria o estado palestino, é hoje comandado pela Autoridade Palestina. Não chega a 20% e mesmo nesse território ele não tem poder sobre a questão econômica.

Então, quando Netanyahu falava em dois estados, era uma questão de retórica. Eles usam, e provavelmente o Bennet vai voltar a falar, porque isso não tem influência nenhuma. Ele aparece bem para a comunidade europeia e para os Estados Unidos, vai falar que quer o diálogo, que quer tirar o Hamas e a ocupação continua. 

Com a eleição de Joe Biden, nos Estados Unidos, é provável que Israel volte a ser pressionado para a criação de dois estados?

Retoricamente é uma mudança clara em relação ao [Donald] Trump, que abandonou explicitamente a ideia de dois estados, adotou Jerusalém como capital de Israel, coisas que nenhum outro presidente norte americano fez. Essas questões o Biden vai retomar, vai se diferenciar do Trump e vai continuar falando em dois estados

Mas como já ficou claro nesse início, quando começou esse último conflito, ele deu carta branca ao Netanyahu e depois refreou um pouco. Não pelo [Joe] Biden, mas pelo partido Democrata americano. 

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O partido elegeu pessoas mais à esquerda, e gente que tem vinculação com movimentos no mundo inteiro. E a relação dos movimentos dos negros dos Estados Unidos, sempre foi historicamente ligada aos palestinos, desde a década de 1960 com os Panteras Negras e a OLP (Organização para Libertação da Palestina). E hoje ainda são muito ligados.

E esses movimentos cresceram dentro do partido Democrata, o Bernie Sanders é um dos representantes desse pessoal. Mas deputadas negras [entre elas, a congressista Alexandra Ocasio Cortez] foram encontrar com o Biden e pegaram pesado com ele. E colocaram uma moção, dentro do partido Democrata, pela primeira vez, que foi aprovada com pequena maioria – isso vai para o Congresso e não deve passar –, que é não ajudar militarmente o estado de Israel.

Isso pode crescer. Vi uma pesquisa mostrando que aumentou para 54% os democratas que condenam as ações de Israel. Em 10 anos, uma mudança de 20%.

Após os últimos conflitos, como fica a situação de Gaza e principalmente do Hamas. O grupo se fortaleceu?  

O Hamas surge na década de 1990 no contexto da Intifada, dos movimentos populares de revolta. É uma organização religiosa e que nessa miséria por qual passa Palestina e Gaza proporcionava um assistencialismo de organização religiosa, como acontece em qualquer lugar do mundo. E com isso ele começou a obter apoio popular contra a Autoridade Palestina, que era um momento, e com razão, de denúncias de corrupção.

Não é fato que os palestinos devem ser vistos a partir do Hamas

Quando Gaza ganha autonomia, em 2005, tem eleição e o Hamas ganha, legitimamente. Mas de lá para cá o Hamas se desgastou muito frente aos palestinos na organização econômica, política, social de Gaza e por vários motivos.

Só que toda vez que tem um conflito ele volta à tona e cresce, porque é a organização armada dentro de Gaza e quer falar pelos palestinos. E como nós só olhamos pra lá quando tem um conflito bélico, quando aparece Gaza aparece o Hamas.

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Mas não é fato que os palestinos devem ser vistos a partir do Hamas. Às vezes tem umas manchetes muito paradoxais. Paz com os palestinos é como se fosse paz com o Hamas e os palestinos. E essa narrativa interessa a Israel. Parece que o Hamas existe desde 1947, porque tudo é o Hamas. 

É interessante que antes do Hamas era o [Yasser] Arafat que era o terrorista, depois ele passou a ser alguém do diálogo. O Hamas é uma organização importante, mas não representa os palestinos que estão em Israel, na diáspora, nem os que estão na Cisjordânia e olha lá se representa em Gaza.

Portanto, ele quer se colocar como defensor dos palestinos. Tanto é que o início do conflito como foi: o Hamas disse "olha parem de ocupar Sheik Jarra, senão nós vamos reagir", ou seja, tem um ação inicial de Israel. Daí lançou um foguete e ele aparece como liderança.

Os palestinos têm uma capacidade, legitimidade de organização que vai além do Hamas

Eu entendo também que o Hamas não representa os palestinos e isso ficou claro em 2018, quando houve aquela marcha dos palestinos na Faixa de Gaza, a Marcha do Retorno. Não houve nenhuma ação do Hamas. Os palestinos não usaram armas, eles faziam a fumaça dos pneus para não serem vistos, pedra pau e etc. O número de pessoas mortas foi semelhante ao de agora. 

Eu estou falando tudo isso, porque agora vem a justificativa do Hamas, mesmo os chamados sionistas de esquerda dizem "nós defendemos os palestinos, mas o Hamas...". Em 2018 não teve Hamas e quem organizou aquilo não foi o Hamas, então isso também expressa que os palestinos têm uma capacidade, legitimidade de organização que vai além do Hamas.

Agora o Hamas é que tem os foguetes, então ele joga os foguetes que não tem repercussão militar alguma. Interessante que as pessoas falam números, não falam da capacidade do impacto, 6 mil foguetes morreram cinco pessoas. Não tem o que fazer com Israel na parte bélica. Embora seja um ator importante para se discutir, eu entendo que ele não deve assumir esse protagonismo como se quer fazer.

Edição: Marina Duarte de Souza