Novas regras

Ofensiva regulatória chinesa pode antecipar nova relação com super empresas

Regulação do setor de tecnologia e educação afeta empresas bilionárias e jogo do poder em Pequim

São Paulo (SP) |
Trabalhador do aplicativo de entregas Meituan espera por pedido em restaurante de Pequim. - Greg Baker/AFP

Com algumas canetadas, o governo chinês fez parte das maiores empresas do país perderem bilhões em valor de mercado nas bolsas de valores ao redor do mundo. As medidas, todavia, não demonstram uma suposta irracionalidade dos dirigentes do Partido Comunista da China, mas podem ser sintoma de novos rumos na relação entre Estado e iniciativa privada, segundo estudiosos ouvidos pelo Brasil de Fato.

Talvez como sintoma dos novos tempos, a oferta pública de ações (IPO, na sigla em inglês) do Ant Group, conglomerado do setor de tecnologia, foi cancelada em 2020 após o então controlador da empresa, Jack Ma, criticar publicamente a regulação estatal do setor financeiro na China. De acordo com o jornal Wall Street Journal, o próprio presidente Xi Jinping tomou a decisão de suspender o IPO.

Novos episódios do maior apetite regulatório chinês aconteceram nos últimos meses. A Administração do Ciberespaço da China ordenou que o aplicativo Didi Chuxing parasse de cadastrar novos usuários citando preocupações com dados digitais e iniciou uma investigação sobre as práticas da companhia. A decisão foi anunciada dias depois da empresa, que também é dona do 99 no Brasil, fazer seu IPO na Bolsa de Nova York e levantar US$ 4,4 bilhões (cerca de R$ 23 bilhões). No dia 6 de julho, as ações da empresa caíram mais de 20%.

A Administração do Ciberespaço da China anunciou que empresas que pretendem fazer IPO precisam passar por uma revisão de segurança digital.

O setor de educação também está na mira. As escolas privadas agora deverão ser entidades sem fins lucrativos e foram proibidas de abrir o capital. O investimento estrangeiro no setor também foi restringido.


Estudantes em Pequim. O gaokao, espécie de Enem da China, é um dos processos seletivos mais concorridos do mundo/ Li Xin/Xinhua

China pode estar criando novas formas de propriedade, diz pesquisador

Autor de livros sobre a economia chinesa, o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Elias Jabbour avalia que há um evento de grandes proporções históricas em andamento no país, comparável com a Revolução Russa e a própria Revolução Chinesa de 1949.

“No capitalismo existe uma lógica que diz too big to fail, ou seja, uma empresa é muito grande para quebrar, porque se ela quebra, ela leva todo o sistema junto. Então as empresas usam isso como forma de chantagear governos, derrubar governos, fazer tudo isso que você já sabe. A China é o contrário. Na China, quanto maior a empresa, maior os controles sobre ela. Você pode ter uma empresa privada na China, mas você vai ter que aceitar um grau de regulação sobre a sua propriedade que inclui, por exemplo, ter um CEO do Partido Comunista interferindo nas decisões de investimento dela”, avalia Jabbour. 

O professor da UERJ também destaca que o Estado chinês está aumentando sua participação em empresas privadas e que Pequim está construindo “novas formas históricas de propriedade que não estão em nenhum manual do Marx, Engels ou Lenin.”

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Em documentos oficiais e em discursos, existem elementos que reforçam a possibilidade de uma reformulação na relação entre as grandes empresas chinesas e o Estado.

Em seu último plano quinquenal, documento que estabelece as metas do governo chinês para os próximos cinco anos, é colocado como objetivo fortalecer a “supervisão econômica das plataformas de internet”. O plano também determina que as regras para identificar monopólios deverão ser melhoradas e a concorrência desleal e os monopólios deverão ser reprimidos.

No Global Times, jornal diário próximo ao Partido Comunista da China, uma coluna de opinião afirmou que a regulação da Didi e as ações contra o Ant Group "podem ser apenas a ponta do iceberg" e que a batalha de Pequim "para erradicar práticas comportamentos monopolistas e proteger a cibersegurança" dos gigantes da internet chinesa "apenas começou".

O próprio presidente Xi Jinping abordou o assunto em discurso de maio de 2020, na Comissão Central de Assuntos Financeiros e Econômicos.

“A economia online da China é líder mundial e desempenhou um papel positivo durante a prevenção desta pandemia e o período de controle. Trabalho de escritório online, compras, educação e medicina estão florescendo e se integrando profundamente à economia offline”, afirmou Xi. “Ao mesmo tempo, deve-se reconhecer que a economia real é a fundação e as várias indústrias manufatureiras não podem ser abandonadas. Como um grande país com uma população de 1,4 bilhão, o foco da alimentação e da economia das indústrias reais deve estar em nós mesmos, e este ponto não deve ser abandonado.”

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O presidente chinês Xi Jinping está no cargo desde 2013 / Xie Huanchi / XINHUA / AFP

Membro do Núcleo de Estudos e Negócios Asiáticos e professor no curso de relações internacionais da ESPM, Alexandre Uehara avalia que as empresas chinesas de tecnologia podem terem sido consideradas “grandes demais”, o que poderia criar dificuldades para a gestão do estado chinês, daí a ofensiva regulatória.

Uehara destaca que essas companhias tiveram um crescimento significativo nos últimos anos, assim como o resto da economia da China. “O problema é que agora talvez esse crescimento tenha começado a divergir daquilo que o estado chinês entenda que seja interessante para sua política, para seu planejamento nos próximos 30 anos pelo menos.”

Desigualdade e direitos trabalhistas

Em outra frente, o governo chinês determinou que trabalhadores de aplicativos de entrega devem ter vencimentos superiores ao salário mínimo do país, acesso a serviços de seguridade social e a um sindicato. De acordo com o South China Morning Post, uma das maiores empresas deste setor, a Meituan, emprega cerca de 3 milhões de pessoas e entregou uma média de 27 milhões de refeições por dia em 2020.

Para Elias Jabbour, a escolha de regular o trabalho dos empregados de aplicativos é uma espécie de sinal de Pequim já que esta modalidade de trabalho “virou símbolo de precarização”. O professor da UERJ também analisa que outro elemento relevante na discussão é uma decisão política de enfrentar as desigualdades já que a China tem 626 bilionários, número inferior somente ao encontrado nos Estados Unidos, de acordo com ranking da revista Forbes.

“A China é uma sociedade cuja característica da sua formação é um campesinato igualitarista, então se existe algo que incomoda muito a China profunda é essa desigualdade social que foi gerada durante os processos de reformas econômicas. Esse é um ponto, tanto é que o Mao Tse-Tung, que é o maior camponês igualitarista, ele volta, a imagem dele volta com muita força na China. A resposta que o Xi Jinping dá com essa medida é uma resposta política a demandas populares”, avalia Jabbour.

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Na visão de Uehara, os últimos acontecimentos de Pequim levantam uma discussão sobre competitividade e concorrência. O professor da ESPM considera que a menor concorrência no mercado chinês, que foi tolerada até recentemente, permitiu a competitividade global de companhias que hoje são gigantes no setor da tecnologia.

“No Ocidente, a gente tentou manter uma maior concorrência e isso acabou restringindo a competitividade das empresas, porque já que elas têm que concorrer com outras, elas acabam concentrando menos parcelas do mercado, ainda que existam, no caso dos Estados Unidos, uma concentração significativa. Mas as [empresas] chinesas cresceram muito mais, então hoje, se você pensar em termos de investimento, capacidade de investimento, as chinesas, por serem grandes, conseguem competir, investir em tecnologia, investir em inovações com maior capacidade competitiva do que algumas empresas, tanto é que algumas delas foram compradas pelas chinesas”, observa Uehara. 

Edição: José Eduardo Bernardes