ENTREVISTA

"Bolsonaro completou entrelaçamento das Forças Armadas ao seu governo"

Desfile da Marinha no dia da PEC do voto impresso mostra que presidente ampliou submissão de militares a seus interesses

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Presidente acena para militares que desfilam em Brasília em dia de votação da PEC do voto impresso - Evaristo Sá/AFP

A liderança da Marinha na organização do desfile de tanques e veículos de guerra na Praça dos Três Poderes nesta terça-feira (10), mesmo dia em que o plenário da Câmara deve votar a proposta de emenda à Constituição sobre a adoção do voto impresso, mostra que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ampliou a submissão das Forças Armadas aos seus interesses políticos, e é um resultado visível da troca do ministro da Defesa e dos três comandantes militares, realizada em março.

A análise é do cientista político Octavio Amorim Neto, especialista em Forças Armadas e professor titular da FGV-Ebape, no Rio de Janeiro. Ele cita que o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Batista, já era reconhecidamente bolsonarista, e que o Exército não puniu o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, por ter participado em ato político ao lado do presidente em maio.

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"A Marinha era considerada, até há pouco, a força mais distante politicamente de Bolsonaro. Com o desfile de hoje, essa distância se perde. (...) Bolsonaro completou o seu trabalho de entrelaçamento das Forças Armadas ao seu governo", afirma Amorim Neto.

Ele projeta que as Forças Armadas não conseguirão sair desse "imbróglio" sozinhas, devido à ascendência do presidente sobre os três comandantes, e que elas precisarão do apoio da classe política para que não sejam ainda mais instrumentalizadas pelo bolsonarismo. 

Amorim Neto critica o "silêncio profundo" dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), sobre o tema, e afirma que um gesto eficaz do Congresso seria a aprovação de uma proposta de emenda à Constituição, já apresentada, que proíbe militares da ativa de assumirem cargos do governo.

"A aprovação dessa emenda é fundamental não apenas para os partidos políticos de centro, centro-esquerda e esquerda, mas também para os partidos de centro-direita e direita que querem a preservação das eleições de 2022 e da ordem democrática", diz.

Ele afirma que Bolsonaro executou desde o início de sua gestão uma eficiente "manobra de envolvimento" das Forças Armadas, que incluiu chamar oficias da ativa para cargos-chave do seu gabinete, nomear mais de seis mil militares, metade dos quais da ativa, para postos da administração federal, e conceder benefícios salariais, previdenciários e orçamentários a essa categoria.

Amorim avalia que os comandantes das Forças Armadas hoje andam "numa corda bamba, muito estreita, entre a rejeição ao golpe e a lealdade a Bolsonaro", e que o espaço para se manter nessa situação ambígua ficará cada vez mais estreito até as eleições de 2022. "Em algum momento, eles terão que optar por algum lado."

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DW Brasil: Qual é o significado do desfile militar na Esplanada dos Ministérios no dia em que a Câmara vota a PEC do voto impresso?

Octavio Amorim Neto: É o momento supremo de utilização das Forças Armadas para a intimidação do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Isso já tinha acontecido outras vezes [no governo Bolsonaro], mas agora tivemos um desfile de tanques.

O que é surpreendente é que sejam blindados da Marinha. A Marinha era considerada, até há pouco, a força mais distante politicamente de Bolsonaro. Com o desfile de hoje, essa distância se perde aos olhos das elites políticas e da opinião pública.

Aparentemente, havia expectativa de que [Arthur] Lira conseguiria moderar Bolsonaro. Não é isso que se viu. Semana passada, houve o vídeo postado nas redes sociais, o presidente xingando um ministro do Supremo Tribunal Federal [Luís Roberto Barroso], e nesta semana um desfile de tanques.

É a radicalização de algo que existe desde janeiro de 2019, a manipulação da ambiguidade do papel das Forças Armadas no seu governo, com o fim de intimidação dos Poderes e de elevação da tensão política.

O sr. menciona o alinhamento da Marinha ao presidente. O Exército já não havia punido o ex-ministro Eduardo Pazuello por sua participação em um ato político no Rio. E a Aeronáutica, onde se insere hoje?

A Aeronáutica, sobretudo a partir da posse em março do brigadeiro [Carlos de Almeida] Batista, passou a ser vista também como uma força intimamente ligada ao bolsonarismo. O brigadeiro Batista vinha sendo muito ativo nas redes sociais apoiando as manifestações de deputados bolsonaristas.

Havia sobrado a Marinha. A minha impressão é que a maioria dos almirantes no Alto Comando não gostou do que aconteceu hoje. Porém, o novo comandante da Marinha, almirante [Almir] Garnier, também se revelou bastante bolsonarista. Bolsonaro completou o seu trabalho de entrelaçamento das Forças Armadas ao seu governo.

As Forças Armadas não conseguem mais sair dessa situação sozinhas, é um dilema. O outro dilema é que os comandantes, mesmo sendo bolsonaristas, têm rechaçado a ideia de golpe de Estado. Eles têm andado numa corda bamba, muito estreita, entre a rejeição ao golpe e a lealdade a Bolsonaro. O espaço para andar nessa corda bamba está ficando cada vez mais curto. Em algum momento, eles terão que optar por algum lado. Bolsonaro está forçando essa opção, e o que ele quer é que os comandantes saiam da corda bamba e se alinhem plenamente a ele.

A oposição também quer que os comandantes saiam dessa corda bamba e ajam como agiu o chefe do Estado Maior conjunto das Forças Armadas norte-americanas, em janeiro deste ano, e afirmem publicamente que não é papel das Forças Armadas participar de eleições ou arbitrarem conflitos com a Justiça Eleitoral.

A situação vai continuar tensa até o final do governo Bolsonaro. Essa é uma marca indelével. Que haja tensão política em uma democracia é normal. O que há no Brasil hoje é tensão política e militar, o que torna tudo extremamente complicado e arriscado.


Bolsonaro acompanhou o desfile ao lado do ministro da Defesa e dos comandantes das três Forças / Agência Brasil

Qual é o papel do ministro da Defesa, Braga Neto, que foi convocado para falar em uma comissão da Câmara na próxima terça sobre supostas ameaças dele às eleições se não houver voto impresso?

Braga Neto é o Bolsonaro. Ele não tem a autonomia que o ministro Fernando Azevedo tinha, ele é um instrumento eficiente dos desígnios políticos de Bolsonaro. Por isso, a análise da ação política das Forças Armadas tem que recair sobre a ação dos comandantes, que são o vértice das três forças, que são organizações baseadas na hierarquia e na disciplina. Braga Neto se confunde com o presidente da República.

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O desfile militar desta terça é reflexo das trocas do ministro da Defesa e dos comandantes das Forças Armadas feitas em março?

Eu havia interpretado a saída do ex-ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, e dos outros três comandantes como um gesto de ruptura deles com Bolsonaro. Eles tentaram estabelecer uma separação institucional entre Forças Armadas e governo.

Bolsonaro não aceitou, demitiu Fernando Azevedo e nomeou Braga Neto. E reiterou a não aceitação da separação institucional entre Forças Armadas e governo no episódio da participação do general Pazuello, ex-ministro da Saúde, em um evento flagrantemente político no Rio de Janeiro, quando não aceitou a punição.

As Forças Armadas e a democracia no Brasil estão em um dilema terrível, porque o apoio das elites militares à governança democrática é uma condição necessária à estabilidade da democracia. E as Forças Armadas não têm mais condições de sair desse dilema sozinhas, elas precisam do apoio da classe política. Esse apoio se materializaria, sobretudo, com a aprovação da emenda constitucional, proposta pela deputada Perpétua Almeida [PCdoB-AC], que proíbe a participação de militares da ativa em cargos do governo, com raríssimas exceções.

A aprovação dessa emenda é fundamental não apenas para os partidos políticos de centro, centro-esquerda e esquerda, mas também para os partidos de centro-direita e direita que querem a preservação das eleições de 2022 e da ordem democrática. Falo isso porque estamos diante de um silêncio profundo do presidente da Câmara, Arthur Lira, e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Seria fundamental que eles se manifestassem.

Por que as Forças Armadas não conseguem sair desse dilema sozinhas?

As Forças Armadas são organizações baseadas na disciplina e na hierarquia. O presidente é o comandante em chefe das Forças Armadas, e Bolsonaro tem se valido desse poder constitucional para fazer algo que não é plenamente constitucional, a utilização política das Forças Armadas.

No artigo 142 da Constituição há algumas palavras que geram ambiguidade. Está lá que as Forças Armadas servem para a defesa nacional e para a garantia da lei e da ordem. O que é garantia da lei e da ordem e dos poderes constitucionais? O bolsonarismo alega que o Brasil vive uma ditadura do Judiciário, e várias vezes Bolsonaro quis utilizar as Forças Armadas como poder moderador. Isso não existe. Agora, essa ambiguidade permite que um presidente extremista se valha dela para submeter os comandantes e, ao submeter os comandantes, submete toda a organização militar aos seus desígnios políticos. Nenhum presidente havia feito isso desde o retorno à democracia.

Desde a promulgação da Constituição, as Forças Armadas passaram a se conformar como nunca antes na nossa história republicana ao seu papel constitucional. Isso se perdeu sob Bolsonaro. As Forças Armadas aceitaram de forma passiva a nomeação de vários ministros que são oficiais da ativa, como o general Pazuello, o almirante Bento, ministro de Minas e Energia, a nomeação do general Ramos, que logo depois passou para a reserva, e a nomeação de mais de seis mil militares, metade dos quais da ativa, para postos eminentemente civis da administração federal, além de receberem uma série de benefícios salariais, previdenciários e orçamentários.

Essa manobra de envolvimento, muito bem feita da perspectiva do Bolsonaro, emaranhou as Forças Armadas na rede do governo. E as Forças Armadas não conseguem mais sair sozinhas. Há generais, almirantes e brigadeiros no alto comando das três forças que não querem isso, e que devem estar envergonhados de verem o que aconteceu hoje de manhã.

O sr. mencionou que as Forças Armadas estão numa corda bamba entre a rejeição ao golpe e a lealdade política a Bolsonaro. O que seria um sinal claro de que elas desceram da corda bamba para o lado do Bolsonaro?

O sinal claro e óbvio seria, caso Bolsonaro venha a ser derrotado na eleição de 2022 e insistir que a eleição foi fraudulenta, as Forças Armadas apoiarem isso. Aí vai ser claro o movimento de se jogarem para o lado do bolsonarismo. E aí se instalaria uma crise de proporções muito maiores e com riscos muito mais elevados do que aquela que houve nos Estados Unidos no dia 6 de janeiro de 2021.

O sr. vê alguma chance de isso acontecer?

As chances são baixas. Eu acredito nas manifestações dos oficiais da ativa e da reserva segundo as quais as Forças Armadas não apoiam nenhuma tentativa de golpe à Constituição. O problema é a manipulação da ambiguidade da posição delas pelo Bolsonaro. E pode chegar o momento em que algum ator político relevante cometa um erro.

Erros não têm faltado à política brasileira desde 2013. Os governos e os partidos têm errado frequentemente ao responderem aos desafios que têm enfrentado. Logo depois as consequências vêm, e são duríssimas. Não é à toa que chegamos ao dia de hoje, desfile de tanques no dia de uma das votações mais importantes que o Congresso Nacional vai ter nesta legislatura. Isso é sinal de uma decadência política enorme.

Ainda há espaço para reação, e a reação tem que ser sábia. O Congresso e a classe política têm que ajudar as Forças Armadas a saírem desse imbróglio em que elas se meteram. E que não estão aí apenas como vítimas, vários oficiais importantíssimos tiveram participação muito ativa na repolitização das Forças Armadas e na reinserção delas no centro da arena política.