Autoritarismo

Especialistas explicam como projeto de lei contra "terrorismo" ameaça liberdades políticas

Em nota técnica, ONG Terra de Direitos elenca problemas com proposta de bolsonaristas que tramita na Câmara

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
Protesto em São Paulo contra estátua do bandeirante Borba Gato que levou à prisão o ativista Paulo Lima, conhecido como "Galo" - Thais Haliski

Uma análise feita por especialistas da ONG Terra de Direitos concluiu que a proposta do governo Bolsonaro que trata de crimes de terrorismo afronta as normas constitucionais e fere acertos internacionais já referendados pelo Brasil. Prevista no Projeto de Lei (PL) 1595/2019, a medida tramita atualmente na Câmara dos Deputados, onde está sendo discutida em uma comissão especial e pode ser votada na segunda quinzena de setembro.  

Defendido por parlamentares mais conservadores e vinculados à chamada “bancada da bala”, o PL estipula ações a serem adotadas pelo Estado para lidar com eventuais atos terroristas no país. O texto é de autoria do deputado bolsonarista Major Victor Hugo (GO), ex-líder do governo na Câmara e atual líder da bancada do PSL, sigla de extrema direita que elegeu o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

::Em meio a avanço conservador, pauta do "combate ao terrorismo" ressurge no Congresso::

Em primeiro plano, os especialistas da Terra de Direitos defendem que o aparato legal já representado na Lei Antiterrorismo (nº 13.260/2016) torna dispensável a aprovação de outra legislação que verse sobre o tema. É o que sustenta a coordenadora de incidência política da ONG, Gisele Barbieri.

Ela resgata que a norma de 2016 tem forte caráter repressivo e abriu espaço para o cerceamento das liberdades, principalmente ao direito de manifestação, uma característica que foi insistentemente apontada por especialistas de perfil garantista durante a tramitação do texto que resultou na legislação.  

“A lei de 2016 já foi equivocada e, na época, as organizações estavam envolvidas com preocupações que seguem até hoje porque, naquele momento, a gente conseguiu retirar algumas coisas do texto, mas todos os PLs que foram apresentados depois buscando alterações nessa lei tentam reinserir as questões que haviam sido excluídas”, destaca, ao sinalizar que a entidade considera também inoportuna a apreciação do PL 1595.

A nota técnica da ONG pontua que uma pesquisa no relatório do Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP) e nos Dados Nacionais de Segurança Pública mostra que houve somente “dois eventos de operações vinculadas à Lei de Terrorismo” no país desde a aprovação da norma.

“E nenhum deles pode ser rigorosamente caracterizado como efetivo planejamento de ato terrorista em curso. Nos dados listados no relatório do BNMP, entre as tipificações mais encontradas no sistema prisional até agosto de 2018, por exemplo, que dão conta de 97,21 % de todos os crimes imputados a pessoas privadas de liberdade, a Lei de Antiterrorismo não é sequer citada”, sublinha o documento.  

“Nós entendemos que o crime de terrorismo é gravíssimo e realmente precisa de previsão dentro de uma legislação. O problema é se partir do princípio de que a gente não tem registro desse tipo de crime no Brasil, que temos essa lei de 2016 e até hoje não foi feita uma análise sobre se ela é eficaz ou não pra combater o terrorismo da forma como eles esperam, e aí você propõe uma lei que é pior que a lei aprovada”, avalia.

Lacuna

Para a ONG, o texto também seria vago na conceituação da prática de terrorismo. O problema vem sendo apontado ainda por parlamentares de oposição desde a chegada do PL à Câmara dos Deputados, em 2019.

Na visão dos especialistas, isso abre margem para eventuais manobras de cunho ideológico que possam enquadrar equivocadamente na definição de terrorismo segmentos populares que atuam na luta social. A eventual ocorrência disso caracterizaria, para a Terra de Direitos, uma criminalização indevida desses grupos, facilitando perseguições políticas.  

A ONG destaca, por exemplo, que a preocupação diante desse risco está fundada também em manifestações já feitas pelo autor da proposta. Durante audiência pública na Câmara no ultimo dia 12, Major Vitor Hugo fez um aceno nesse sentido.

“Eu até faço um apelo ao relator pra que a gente avance, sim, no conceito, na modificação e no aperfeiçoamento do conceito de terrorismo porque a Lei 13.260 deixou algumas lacunas que precisam ser superadas, como, por exemplo, não existe a motivação política pra que um crime seja terrorismo no Brasil”, disse o parlamentar, na ocasião.  

Entre outras coisas, o PL 1595 diz, por exemplo, que a norma “será aplicada também para prevenir e reprimir a execução de ato que, embora não tipificado como crime de terrorismo, seja perigoso para a vida humana ou potencialmente destrutivo em relação a alguma infraestrutura crítica, serviço público essencial ou recurso-chave”.

“[Isso] deixa [espaço] pra interpretação da autoridade do sistema de Justiça, e aí cada um interpreta da sua forma, que é o que a gente tem visto agora com a aplicação da Lei de Segurança Nacional, por exemplo. Vários casos que foram enquadrados nela são o que está previsto na lei? Podem até ser, mas a lei é tão vaga que ela faz com que qualquer autoridade interprete como um crime contra o Estado”, argumenta Gisele Barbieri. 

A nota técnica da ONG afirma ainda que a lacuna conceitual afronta os princípios elementares do direito penal e bate de frente com a jurisprudência dos tribunais superiores do país. Isso porque a interpretação do crime de terrorismo se baseia na ideia de que a ação seja praticada por motivos de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião.  

Outra preocupação apontada na análise da ONG é o fato de o PL autorizar, também de forma vaga, a adoção das técnicas contraterroristas em ato que “seja perigoso para a vida humana”, entre outras coisas.

“O projeto contraria igualmente o entendimento adotado pela Relatoria Especial das Nações Unidas, para a qual os meios utilizados num ato terrorista devem ser potencialmente letais, a intenção do ato deve ser causar temor à população ou obrigar o governo ou organização internacional a fazer ou deixar de fazer algo e o objetivo deve promover um objetivo ideológico”, assinala a nota da entidade.

Edição: Vinícius Segalla