Atraso

MBL recua 32 anos no debate sobre redução de danos e denuncia doação de seringas na Cracolândia

Craco Resiste é alvo de inquérito após ação do vereador Rubinho Nunes (PSL), desinformação assusta especialistas

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Vereador eleito, Rubinho Nunes nunca apresentou projetos para a região da Cracolândia - Foto: Reprodução/Youtube

Em 28 de setembro de 2020, durante a campanha à vereança de São Paulo, o então candidato Rubinho Nunes (PSL), coordenador do Movimento Brasil Livre - que acabou eleito para o cargo, anunciou que processaria a Craco Resiste, coletivo que assiste à população que circula pela região da Cracolândia, por distribuir seringas e cachimbos aos usuários de drogas.

A ameaça ocorreu em um vídeo típico de campanha em que Nunes aparece andando pela Cracolândia, com uma música triste ao fundo. Nas imagens, ele entrevista usuários de crack que confirmam ter recebido insumos da Craco Resiste. “A ONG distribui cachimbos e seringas para usuários de drogas, para que eles possam usar. Sob o argumento de defender eles, fazem justamente o contrário, mantém essas pessoas reféns da criminalidade”, disse Nunes.

A Polícia Civil acatou a denúncia e o grupo passou a ser alvo de um inquérito por apologia ao uso de drogas. O caso está na Divisão Estadual de Narcóticos, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo.

De acordo com Centro de Convivência É de Lei, organização que desde 1998 atua na promoção da redução de danos na região da Cracolândia, essa prática consiste em “uma abordagem ao fenômeno das drogas que visa minimizar danos sociais e à saúde associados ao uso de substâncias psicoativas.”

Em linhas gerais, significa que ao entregar uma seringa nova ao usuário de droga, evita-se que ele se contamine com outras doenças, já que não precisará compartilhar o insumo com outras pessoas.

O movimento confirma que é favorável à doação de seringas e cachimbos aos usuários como forma de redução de danos. “Eu sinto que voltei 20 anos no tempo, eu tenho que ficar defendendo uma coisa que já estava superada. Não distribuímos porque de fato não temos dinheiro, poderíamos distribuir”, conta Rafael Escobar, integrante da Craco Resiste.

Espanto

A denúncia de Nunes escancara o desconhecimento do vereador paulistano sobre o assunto e assustou especialistas escutados pelo Brasil de Fato. “Me espanta muito. Eu enfrentei esse problema em 1991, porque eu fui fazer distribuição de seringas e a polícia veio me intimidar. Aí, eu expliquei para eles, em 1991, que esse programa era novo no Brasil. Mas que isso já era praxe no resto do mundo. Em 1991, já era motivo de riso. Trinta anos depois, eu me deparo com essa história. Que absurdo”, diz, rindo, o psiquiatra Dartiu Xavier, um dos maiores especialistas do país em psicodélicos e ex-consultor da Secretaria Nacional de Drogas do Ministério da Justiça.

A psicóloga Maria Angélica Comis, que coordena o Centro de Convivência É de Lei,  explicou que a doação de seringas e cachimbos é, inclusive, prevista em lei. “Entendemos que a distribuição de insumos nunca deveria ser questionada, pois é política pública, tendo em vista que está prevista na na Portaria de Consolidação nº5, de 28 de setembro de 2017 do Ministério da Saúde. A Lei Estadual 9758/1997 também discorre sobre a entrega de insumos no estado de São Paulo"”, aponta Comis, que foi vice-presidente do Conselho Municipal de Política de Drogas e Álcool de São Paulo entre 2017 e 2019.

Escobar conta que se espantou quando soube do inquérito. “Me assusta, um vereador se propor a entrar nesse debate sem conhecimento. Pouco se fala sobre política pública nesse momento, é sobre moralismo. É a imagem desse bolsonarismo que foi inventado, até do Doria, é a criminalização de um movimento social por fazer uma coisa que está na lei que deve ser feito”, encerra.

Histórico

Há 32 anos, em 1989, o Brasil teve sua primeira experiência com redução de danos. Em Santos, no litoral paulista, a prefeitura distribuiu seringas aos usuários de drogas injetáveis para evitar o compartilhamento do insumo.

Desde então, há diversas ações do poder público para promover e ampliar políticas de redução de danos. A portaria 1.028, de julho de 2005, atualizada pela Portaria de Consolidação nº5, de 28 de setembro de 2017, prevê a distribuição de insumos aos usuários de drogas. Em seu artigo 2º, a norma definia as diretrizes de atuação do Estado.

“Definir que a redução de danos sociais e à saúde, decorrentes do uso de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência, desenvolva-se por meio de ações de saúde dirigidas a usuários ou a dependentes que não podem, não conseguem ou não querem interromper o referido uso, tendo como objetivo reduzir os riscos associados sem, necessariamente, intervir na oferta ou no consumo.”

No âmbito estadual, o governo de São Paulo, dirigido então pelo tucano Mário Covas, criou a Lei 9.758, em 17 de setembro de 1997. Nela, autoriza a distribuição de insumos pelo estado. “Fica a Secretaria de Estado da Saúde autorizada a adquirir e distribuir seringas descartáveis aos usuários de drogas endovenosas, com o objetivo de reduzir a transmissão do vírus da AIDS por via sanguínea em São Paulo.”

Sete meses depois, em 13 de março de 1998, foi publicado o decreto nº 42.927, também assinado por Mário Covas. Em seu primeiro artigo, a legislação determina: “A Secretaria da Saúde fica autorizada a adquirir e distribuir seringas descartáveis aos usuários de drogas injetáveis, nos termos do artigo 12 da Lei n.° 9.758, de 17 de setembro de 1997, com o objetivo de prevenir, controlar e reduzir a transmissão do vírus da AIDS.”

A primeira experiência de redução de danos no mundo está às vésperas de completar um século. Em 1926, na Inglaterra, médicos passaram a prescrever opiáceos, droga obtida do ópio, para dependentes desta mesma droga, em dosagens menores, para controle do paciente. A medida foi adotada após a publicação do Relatório Rolleston, que previa uma combinação de normas determinadas por uma equipe interministerial presidida por Humprey Rolleston, ministro da Saúde inglês.

Retaliação

Em abril deste ano, a Craco Resiste divulgou o dossiê “Não é confronto, é massacre”. Nele, havia imagens de agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM) e da Polícia Militar do Estado de São Paulo cometendo abusos contra a população que vive na região da Cracolândia.

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As imagens foram capturadas por câmeras escondidas pelo movimento em dezembro de 2020, na região da Cracolândia. Os vídeos mostram policiais militares e guardas municipais avançando contra os usuários de drogas em horários distintos e atirando bombas. De acordo com a Craco Resiste, essas operações são comuns na região, sem aviso prévio do poder público.

“Não acreditamos que seja coincidência que os militantes da Craco Resiste sejam intimados pela polícia após a divulgação do dossiê”, explica o movimento em nota. “Para disfarçar essa falta de resultados, as estruturas da polícia estão sendo usadas em uma tentativa de silenciar as vozes que apontam para esses problemas. Não vão conseguir. Seguiremos com as denúncias e exigindo políticas que acolham as pessoas, como feito em várias partes do mundo”, conclui o coletivo.

Alvo da direita

Além de Rubinho Nunes, do MBL, outra personagem da direita mirou na Cracolândia. No dia 7 de agosto, a deputada estadual Janaína Paschoal (PSL-SP) atacou o padre Julio Lancelloti por distribuir refeições aos usuários de drogas que circulam pela região, dizendo que essa prática “só ajuda o crime”.

Três dias depois, em 10 de agosto, voltou a criticar o religioso. “O cidadão tem 5 reais no bolso. É dependente químico. Vive no lugar onde a droga é vendida. Se não precisa gastar nem 2 reais no almoço, quanto ele vai usar em droga? É caridade alimentá-lo ali? Entendo que não! Respeito quem pensa diferente, só não compreendo a reação.”

A promessa, vereador

No final do vídeo de campanha, em que anuncia que processará a Craco Resiste, Nunes afirma. “Não é dever do Estado dar segurança para usuário. Não é dever do Estado dar segurança para traficante. É dever do Estado recolher essas pessoas e devolver elas para o seio da família.”

Após oito meses de mandato, Rubinho Nunes apresentou 32 Projetos de Lei. Nenhuma das matérias trata da Cracolândia ou propõe alternativas para a região ou aos usuários de droga.

O Brasil de Fato entrou em contato com a assessoria do coordenador do MBL e fez três perguntas: “O vereador tem provas que a Craco Resiste distribuiu seringas e cachimbos na região da Cracolândia?”; “O que o vereador pensa sobre a política de redução de danos?”; e “Qual o projeto o senhor para a região da Cracolândia? Após eleito, o senhor apresentou alguma solução para a região?”

Até o fechamento desta matéria, o vereador Rubinho Nunes não havia respondido às dúvidas da reportagem. Caso o faça, esse texto será atualizado.

Edição: Vivian Virissimo