Análise

Leonardo Sakamoto: Silêncio do STF sobre direito indígena a terras é música ao bolsonarismo

O presidente deixa claro seu incômodo com a reivindicação dos povos originários a suas terras desde que era deputado

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Indígenas se encontram na frente do STF para assistirem a votação da tese do Marco Temporal: foi adiada - Foto: Luan Castro Tremembé

Jair Bolsonaro ameaçou, neste sábado (28), que pode descumprir decisão judicial do Supremo Tribunal Federal sobre o marco temporal caso os ministros garantam direitos dos povos indígenas às suas terras. "Se aprovado, tenho duas opções, não vou dizer agora, mas já está decidida qual é essa opção, é aquela que interessa ao povo brasileiro, aquela que estará ao lado da nossa Constituição", declarou.

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Vale ressaltar que Bolsonaro chama de "povo" o conjunto de brasileiros que concordam com ele. Também afirmou que uma decisão favorável aos indígenas inviabilizará o agronegócio e as exportações do país e a população passaria fome, o que é mentira.

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A tese do marco temporal defende que indígenas só podem reivindicar terras que já eram ocupadas por eles no dia da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, ou áreas que já disputavam judicialmente naquele momento, apesar de nada disso estar escrito em nossa Carta Magna.

Considerando que parte desses povos estavam expulsos de seus locais de origem naquele momento, na prática, isso é uma tremenda de uma sacanagem.

Ironicamente, o STF vem empurrando com a barriga a decisão que pode garantir aos indígenas o direito a seus territórios ou trata-los mais uma vez como cidadãos de segunda classe

A corte vem sendo um contraponto importante ao golpismo do presidente,mas o seu silêncio sobre o assunto, a torna cúmplice do bolsonarismo. Pois indígenas continuam passando fome, sofrendo violência e sendo assassinados por conta de conflitos fundiários. Se o intuito dos ministros era evitar o acirramento de tensões, a ideia não deu muito certo pelo visto.

Adiada por pedidos de vistas, a ação está para ser analisada pelo plenário da corte. Apesar dos repetidos protestos dos povos tradicionais em Brasília, não eram poucos os que apostavam que os ministros não decidiriam no curto prazo. E, com isso, o bolsonarismo já discutia projetos que transformassem a tese em lei. Isso não livraria o STF de analisar a constitucionalidade, mas seria mais uma pedra no meio do caminho.

Agora, a ameaça de Bolsonaro pode tornar o caso uma questão de honra entre os ministros. Isso se "bombeiros" não aparecerem na corte para mais uma vez pedir vistas e empurrar a decisão para frente.

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'Ele devia ir comer um capim ali fora para manter as suas origens'

Bolsonaro prometeu não demarcar "um centímetro quadrado" em seu governo, e a seus apoiadores da banda anacrônica do agronegócio. Excitados com as falas do mito (sic), muitos prometeram ajudar a atropelar a democracia com "tratoraços" no 7 de setembro.

O presidente deixou claro seu incômodo com os direitos das populações indígenas aos seus territórios desde que era deputado federal. No controle do Poder Executivo, deu início a uma ofensiva que tem tudo para ser lembrada como as ações de consequências genocidas levadas a cabo na ditadura militar. Nega-lhes terras, força sua aculturação, dificulta acesso a alimentos e medidas de proteção à covid-19, permite a exploração econômica de suas áreas, mesmo à revelia.

"Ele devia ir comer um capim ali fora para manter as suas origens", foi a resposta do então deputado Jair Bolsonaro após um indígena jogar água em sua direção, em maio de 2008, num bate-boca em uma audiência pública, na Câmara, para discutir a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.

Quatro anos antes, durante outra reunião sobre o mesmo tema, Jair havia dito: "O índio, sem falar a nossa língua, fedorento, é o mínimo que posso falar, na maioria das vezes, vem para cá, sem qualquer noção de educação, fazer lobby".

Criadores de gado e fazendeiros de soja que operam na ilegalidade, madeireiros, garimpeiros e grileiros de terra sentiram-se empoderados pelos discursos de Bolsonaro, de que as terras indígenas devem ser exploradas por não-indígenas. O resultado é que a invasão de aldeias tem sido informalmente tolerada, causando violência e assassinatos.

Não só: Bolsonaro foi além e, diante dos incêndios na Amazônia, culpou os indígenas pelas queimadas em discurso na ONU. Diante das reclamações por causa de invasões de garimpeiros a territórios indígenas ocorridas em seu governo, como aquelas contra a etnia Waiãpi, no Estado do Amapá, e os Yanomami, em Roraima, Bolsonaro tem dito que há um complô internacional para a transformação dessas áreas em países independentes a fim de que suas riquezas possam ser exploradas.

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Os territórios indígenas (que são responsáveis pelas mais altas taxas de conservação ambiental do país) nunca realizaram um plebiscito ou montaram uma campanha de guerra contra Brasil, ao contrário do que faz o presidente diariamente. Pelo contrário, querem é mais atenção do governo federal, querem se sentir efetivamente brasileiros através da conquista de sua cidadania, o que inclui o direito à sua terra.

Coisa que o país nunca garantiu totalmente a eles. E, se depender do atual presidente, não vai garantir.

Ao demorar para agir para evitar tensões, STF acirra tensões entre fazendeiros e indígenas

Uma pesquisa realizada pelo centro de estudos Supremo em Pauta da FGV Direito SP em parceria com a WWF Brasil, revelou em outubro do ano passado que havia 72 ações pendentes de julgamento no STF na categoria "terras", que envolve demarcação de territórios indígenas e quilombolas, comunidades tradicionais e reforma agrária, de 1988 a 2020.

Segundo o estudo, a posição do Supremo para lidar com estes conflitos tem sido a de não decidir. Não são raros os casos em que pedidos de desintrusão - retirada dos não indígenas das terras - são negados por receio de acirramento do conflito. Na prática, a indecisão do Supremo transfere aos particulares intrusores e aos indígenas a resolução do conflito por seus próprios meios.

O resultado, obviamente, é o aumento de violência. Além disso, em 2019, a União, que antes aparecia ora como garantidora, ora como violadora de direitos socioambientais, assume definitivamente o papel de vilã: o perfil dos litígios em 2019 e 2020 na matéria socioambiental coloca o governo federal no banco dos réus.

As ações questionam mudança de governança dos órgãos ambientais, alteração de políticas públicas protetivas, desmonte de fundos, ataques a organizações não governamentais e discriminação contra povos indígenas e quilombolas. Ainda que se reconheçam as importantes decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal para a garantia de direitos indígenas nos últimos 33 anos, é preciso dizer que, neste momento, o silêncio da corte chancela o bolsonarismo.

O que é um paradoxo: a batalha não é por manter a Constituição Federal para ela ser um livro bonito na estante, mas palavra viva no cotidiano. Caso contrário, para que serviu o fim da ditadura?