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Amaremos outra a vez a camisa da seleção brasileira?

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Sócrates, que foi capitão desta seleção, estava nos palanques pelas Diretas Já, assim como outros jogadores. E eles usavam o verde-amarelo que a ditadura havia se apropriado por duas décadas - Museu do Futebol
Da mesma forma, hoje, os jogadores da seleção não são indivíduos alheios e separados da realidade

O dia 7 de setembro foi escolhido para manifestações tanto pelas organizações do Fora Bolsonaro quanto pelo bolsonarismo. Como é feriado da independência do Brasil, é provável que o verde e amarelo esteja presente em ambas. Por outro lado, camisetas da seleção brasileira devem ser vistas apenas em uma das mobilizações, afinal, desde 2016, o uniforme tem sido apropriado ou identificado com manifestantes de direita. A esquerda voltará a usar as camisas da seleção brasileira em algum momento?

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É provável que sim. A identidade nacional não é algo congelado no tempo. Ao contrário, está em constante transformação e atualização. E os seus sentidos dependem de uma série de fatores e não apenas da vontade do Estado ou do governo.

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Em 1978, a Ditadura Militar já tinha perdido apoio na classe média, era incapaz de controlar a crise econômica ou de desenvolver o país. A oposição crescia nas eleições e havia pressão pela Anistia e pelo fim da ditadura. Os militares tentaram utilizar a seleção brasileira para recuperar prestígio. Um brigadeiro dirigia o Conselho Nacional de Desportos, um almirante era o dirigente da Confederação Brasileira de Desportos, o técnico da seleção era um capitão e toda a comissão técnica era formada por militares. O atacante Reinaldo, que defendia a anistia e eleições diretas publicamente, foi proibido de expressar suas opiniões e todos os jogadores eram submetidos à normas de controle e vigilância. Mas, mesmo chegando ao terceiro lugar, a imagem que ficou da Copa e da seleção foi da farra que os dirigentes esportivos e os militares fizeram, ostentando com dinheiro público. Mais do que isso, a torcida concluiu que os militares, com a sua tecnocracia, destruíram o futebol arte que caracterizava a seleção. Para realmente ser a seleção brasileira, era preciso jogar bonito e para isso, era preciso tirar os militares.

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Em 1982, sem militares na Comissão Técnica e nem na gestão da recém-fundada CBF, os jogadores não eram tratados como soldados ou como cidadãos de segunda classe. O técnico Telê Santana ouvia sugestões dos atletas, o samba era permitido na concentração e até um pouco de cerveja após os jogos. Os jogadores casados não precisavam dormir na concentração e era permitido até ir em shows durante a Copa. O time recuperou o futebol arte e mesmo sendo derrotados pela Itália, esta seleção recuperou a identificação da sua torcida. Dois anos depois, Sócrates, que foi capitão desta seleção estava nos palanques pelas Diretas Já, assim como outros jogadores, e os manifestantes usavam o verde-amarelo que a ditadura havia se apropriado por duas décadas.


Sócrates brilhou no Corinthians e na Seleção Brasileira / Reprodução / Site oficial da CBF

Os jogadores e a seleção não iniciaram o processo de redemocratização. Mas se alimentaram deste momento e também se tornaram símbolos da luta pela democracia. Da mesma forma, hoje, os jogadores da seleção não são indivíduos alheios e separados da realidade. O episódio mais recente do divórcio entre a seleção e a esquerda foi a disputa da Copa América, notoriamente sediada no Brasil pelos interesses políticos de Bolsonaro e do presidente afastado da CBF Rogério Caboclo. Há críticas de que os jogadores não fizeram greve. É verdade. A mobilização interna dos atletas tinha mais a ver com as férias europeias do que a covid. Mas qual categoria mesmo fez greve no Brasil contra a pandemia? Os jogadores de futebol são criados, desde a infância, em um ambiente de super-exploração de trabalho, isolamento social e exigência produtiva. Milionários como Neymar e Daniel Alves são menos de 1% dos jogadores profissionais. Os demais são verdadeiros boias-frias. E espontaneamente, ninguém desenvolve consciência. Muito menos em um ambiente assim. Nem jogador de futebol, nem operários, nem bóia-frias.


Milionários como Neymar são menos de 1% dos jogadores profissionais / Lucas Figueiredo / CBF

Para que o jogador saia do seu status de subcidadão, como todo trabalhador, é preciso que a sociedade brasileira saia desta onda conservadora e reacionária. Quando discurso do empreendedorismo e do individualismo der lugar às preocupações coletivas, quando o feijão e o arroz na mesa sejam mais importantes que o fuzil e quando os debates estejam em torno do futuro e de um projeto do país ao invés da saudade que os militares e policiais sentem dos porões. Aí sim, teremos oxigenado o debate e os espaços, como escolas, fábricas e vestiários de clubes. E aí, pode ser que a esquerda se reconcilie e procure no fundo do armário, aquela camisa verde e amarela que deixou guardada para este momento.

 

*Miguel Stedile é Doutor em História pela UFRGS e editor do Ponto Newsletter

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo