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Artigo | E-commerce com a China pode ser via de mão dupla?

Magalu X Alibaba: concorrência entre gigantes do varejo local e big techs abre novo capítulo das relações entre países

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
A Magazine Luiza, por exemplo, visando tornar-se um super app, inspirada nas Big Techs chinesas, fez mais de 20 aquisições desde 2017, envolvendo e-commerce - Foto: Divulgação/ Magazine Luiza

A pandemia acelerou a digitalização de grandes empresas de varejo brasileiras, que se tornaram “super apps”, integrando outras lojas, serviços, inclusive financeiros, e produtores diversos. A expansão abriu uma nova frente de concorrência internacional com a China e suas Big Techs, como o Alibaba (que estruturou recentemente operação local no Brasil).

A presença chinesa no e-commerce brasileiro fomenta novas esferas de intercâmbio entre Brasil e China e proporciona mais escolhas ao consumidor, mas também reforça o déficit comercial do Brasil no setor de manufaturados e a assimetria das trocas entre os países.

A digitalização pela qual vem passando as empresas de varejo no Brasil transformou suas plataformas de vendas online em “super apps”, a partir da integração de uma série de processos nos aplicativos.

O modelo de ecossistema de varejo representado pelos “super apps” garante não somente melhor eficiência das vendas, como também a possibilidade de mapear toda a jornada do consumidor, como um importante mecanismo gerador de inteligência de mercado.

A Magazine Luiza, por exemplo, visando tornar-se um super app, inspirada nas Big Techs chinesas, fez mais de 20 aquisições desde 2017, envolvendo e-commerce (Netshoes, Shoestock, Estante Virtual, Época Cosméticos, tonolucro, aiqfome), logística (logbee, GLF, sinclog), serviços financeiros (Hub Fintech), marketing (inlocomedia) e entretenimento (Jovem Nerd, Canaltech, Steal the Look). As aquisições dos últimos anos integram-se às plataformas de serviços Magalupay, Magalu Pagamentos, Magalu Entregas, Magalu Ads, Luizacred, Luizaseg, Parceiro Magalu, Consórcio Magalu, Maga+ e ao Luizalabs.

Contudo, as gigantes chinesas estão fazendo planos para avançar no mercado nacional de forma a reproduzir aqui, pelo menos em partes, elementos importantes de seu poder de mercado.

A AliExpress anunciou que pretende incluir seus serviços financeiros no pacote ofertado a clientes brasileiros, uma vez que reconhece que concorrentes nacionais – a B2W, o Mercado Livre e a já mencionada Magazine Luiza – têm investido pesado nisso.

A chinesa pretende ainda iniciar cadastramento de vendedores locais e criar condições para que empreendedores brasileiros possam construir seus negócios de forma conectada ao marketplace da AliExpress, “abrasileirando” o serviço. 

Enquanto isso não ocorre, do ponto de vista do consumidor, proporcionado por fatores logísticos e produtivos próprios da China, o preço baixo das mercadorias continua como a principal vantagem competitiva oferecida pelos chineses.

Para as empresas brasileiras, vender em suas plataformas um leque maior de produtos vindos do exterior, que seria um caminho para tentar algum nivelamento de preço com as chinesas, ainda é um desafio devido a questões logísticas – essenciais para manter o baixo custo dos produtos – e de confiabilidade de procedência das mercadorias.

Sob a perspectiva dos fluxos gerais entre Brasil e China, esse movimento comercial reforça para o Brasil a característica deficitária do comércio bilateral no setor de manufaturados.

Mais de 99% das importações brasileiras da China nos últimos anos está centrada em produtos da indústria da transformação, o que reflete a grande competitividade do país nesse setor produtivo, seja por ser o local para o qual grandes grupos transnacionais terceirizam sua produção nas últimas décadas, seja pelo desenvolvimento industrial doméstico. Assim, até o momento, essa nova conexão eletrônica entre Brasil e China só opera de um dos lados: traz produtos da China para o Brasil de forma mais rápida e com mais competitividade.

A China atribui grande importância ao desenvolvimento de empresas do setor de tecnologia. As novas regulamentações que o governo chinês tem direcionado às Big Techs do país nos últimos meses comprovam que a área é vista como estratégica; de um lado, limitou-se a possibilidade de realização de IPOs (ofertas iniciais de ações) dessas empresas no mercado financeiro dos EUA; de outro, buscou-se regulamentar melhor questões relacionadas ao acesso e utilização de dados que as empresas podem obter.

A própria entrada do Estado chinês no oferecimento de meios de pagamentos online, por meio do Digital Currency Electronic Payment (DCEP) voltado para a utilização do recém-criado e-RMB, a moeda digital chinesa, juntamente com as mudanças de regulação na área, demonstra maior interesse do Estado em controlar o desenvolvimento do setor.

Enquanto isso, no Brasil ainda há muitos desafios a serem enfrentados. Felipe Zmoginski, gerente do Alipay Brasil, apontou recentemente que o crescimento do e-commerce no país tem como gargalo a infraestrutura física. Para ele, seria preciso melhorar portos, aeroportos, centros de distribuição, estradas e segurança dos transportes.

Destacou ainda que medidas como a popularização de contas digitais para a sociedade, aumento do crédito popular e popularização dos meios de pagamentos digitais e financeiros seriam importantes, além da criação de uma maior infraestrutura digital no país, em especial com o barateamento e capilarização para regiões mais precárias.

Permanece, no entanto, no governo brasileiro e até em instituições promotoras da indústria nacional, como a FIESP, a crença de que a votação de reformas ultra liberalizantes, como a reforma administrativa e privatizações diversas, é o melhor caminho para o país melhorar sua competitividade, o que se choca cada vez mais com as experiências internacionais e a preocupação dos Estados nacionais em atuar de forma mais direta para promover vantagens ao mercado nacional.

Diante disso, e dada a grande competitividade da China, é difícil imaginar que essa via eletrônica aberta entre Brasil e China se torne via de mão dupla, capaz de levar produtos brasileiros ao país asiático; a tendência, assim, é que apesar de aumentar o leque de opções aos consumidores brasileiros, essa via reforce o padrão comercial assimétrico que existe entre os países.

Brasil: um novo horizonte de possibilidades

As incertezas em torno das tensões comerciais EUA-China têm servido como um motivador para a projeção de empresas chinesas de e-commerce em outros mercados, visando reduzir os efeitos negativos advindos das restrições impostas pelo país norte-americano. Além disso, o próprio potencial de crescimento das vendas online proporcionado pela pandemia tem gerado atratividade. No Brasil - um mercado grande em consumidores em que o volume de compras online ainda é baixo (cerca de 11% do total em 2020)-, estima-se haver grande potencial de crescimento.

Nos últimos dez anos, os produtos chineses passaram a estar disponíveis em todo o país por meio de plataformas como o AliExpress (que foi escolhido como a marca de comércio eletrônico internacional em que os brasileiros mais confiavam em 2020, à frente da Amazon). O Brasil se apresentou como o quinto maior destino de produtos do grupo Alibaba, representando aumento de 130% dos pedidos brasileiros na plataforma em 2020.

O potencial de mercado incentivou a empresa a estruturar operação local no país, com a abertura de um escritório próprio, visando melhorar as condições de oferta para o consumidor local. Recentemente, anunciou-se o fretamento de cinco voos semanais para encurtar o tempo de espera dos pedidos online -que demoravam cerca de três meses-, para apenas um mês (ou menos, na Grande São Paulo), aumentando sua competitividade.

Além do grupo Alibaba, atualmente existem outras empresas chinesas que fazem investimentos diretos no Brasil, como: a gigante da internet Tencent, que alocou US$ 180 milhões na startup brasileira Nubank, tornando-a o maior banco digital do mundo, avaliado em US$ 4 bilhões.

 No investimento de US$100 milhões da Ant Financial na empresa Stone Investimentos na oferta inicial de ações da companhia, além de ser uma das empresas participantes no novo aporte financeiro direcionado para o QuintoAndar. A startup 99 foi comprada pela Didi Chuxing, considerada a “Uber chinesa”, avaliando a empresa em US$1 bilhão. Dado o novo cenário, os marketplaces nacionais terão de inovar para não ficarem atrás da concorrência internacional.

Digitalização, um projeto nacional chinês

Comumente vista como a “fábrica do mundo”, a China vem desempenhando um papel cada vez mais relevante em diferentes setores produtivos. Além da oferta de bens de baixa complexidade, a China se torna cada vez mais uma potência inovadora, posicionando-se entre os líderes no desenvolvimento tecnológico em aplicativos, como o 5G, ferramentas e soluções para o comércio eletrônico.

Diante de um cenário de crescentes tensões com os Estados Unidos, da existência de uma enorme comunidade digital brasileira e de novas formas de consumo, reforçadas pela pandemia, empresas do e-commerce da China começaram a ganhar maior presença no Brasil.

A elevada eficiência e competitividade global que o varejo chinês desenvolveu se fez sentir durante a pandemia, quando os governos locais tiveram que restringir o acesso presencial dos consumidores às lojas físicas. Na própria China, dados da pesquisa Marketer revelam que 52,1% das vendas serão feitas por e-commerce esse ano, apontando um crescimento de 20% em relação a 2020, ou seja, o número de vendas online ultrapassará as realizadas em lojas físicas. 

No entanto, mesmo com as restrições impostas pela pandemia, esse enorme crescimento do comércio eletrônico não se deu do dia para a noite. Ao analisar o panorama do país, verificamos que a relevância da tecnologia e do comércio eletrônico chinês foram favorecidos pela imensa competitividade do mercado doméstico, investimento público direcionado à infraestrutura física e digital – visando gerar maior alcance das empresas à população –, e incentivo ao desenvolvimento de empresas de tecnologia.

A China, em matéria de comércio digital (e-commerce), desponta como o maior mercado do mundo, com mais de 50% das transações globais online vindas do país. Ao contrário da grande maioria dos países, onde o e-commerce é principalmente um complemento às tradicionais lojas físicas, na China é comum que os fabricantes vendam produtos online para todo o país sem terem nenhuma loja física.

Isso permitiu que o e-commerce ganhasse popularidade, já que a venda em plataformas digitais é uma maneira mais barata e fácil para pequenas empresas alcançarem um mercado maior. Dentre as principais empresas que compõem o mercado online chinês, estão a Taobao e a Tmall (do grupo Alibaba), que dominam cerca de 55% do mercado, além da JD.com, que detém fatia de 16% do setor.

Exemplos desse sucesso podem ser enxergados nas cifras. Semelhante ao Amazon Prime Day, o Alibaba’s Singles Day é um dia de aumento nas vendas de itens em todo o site, superando em até quatro vezes as vendas da Cyber Monday e da Black Friday. Somente em 2020, o Alibaba gerou mais de U$38 bilhões em vendas contra U$5,8 bilhões do Amazon Prime Day.

* Brenda Neris Gajus, Filipe Porto, José Luis de Freitas e Vitor Hugo dos Santos são do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil da Universidade Federal do ABC (UFABC)

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

 

Edição: Anelize Moreira