VERGONHA

Leonardo Sakamoto: "Irrelevante na ONU, Bolsonaro viajou a Nova York para fazer live de luxo"

O problema é que, por lá, ninguém está interessado nessas verdades. Só o público dele no Brasil

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"A garantia de que Bolsonaro vai mentir na ONU é a mesma de que o sol nascerá a cada novo dia." - Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Jair Bolsonaro afirmou que vai falar umas "verdades" na Assembleia Geral das Nações Unidas. O problema é que, por lá, ninguém está interessado nessas verdades. Só o público dele no Brasil. Ou seja, vai ser, como em anos anteriores, uma versão de luxo das lives que ele faz às quintas-feiras, paga com o dinheiro do contribuinte.

O mundo quer nossas matérias-primas, nosso mercado consumidor e nossos serviços ambientais, mas não está interessado no que pensa (sic) esse chefe de Estado na ONU porque já entendeu que ele não tem o que dizer. A menos que defenda com todas as letras sua política de genocídio de povos indígenas ou que avise que vai criar entraves a investidores internacionais, o seu discurso na abertura da Assembleia Geral, nesta terça (21), será mais um factoide a ser consumido pelos fãs.

Vai deixar alguns jornalistas e diplomatas envergonhados? Vai. E, no máximo, confirmar se ele está em uma fase de recuo ou de avanço em suas aproximações sucessivas contra as instituições democráticas. E só.

Um factoide tão bizarro quanto ele comer pizza na rua para vender a ideia de que não se importa em entrar em restaurantes de Nova York desde que mantenha seus "princípios" - o protocolo da cidade obriga vacinação para frequentar o interior desses estabelecimentos. E o naco negacionista de seus seguidores pira com a necropolítica de Jair.

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Como já disse aqui em anos anteriores, ao contrário do que circulam em grupos bolsonaristas, abrir a Assembleia Geral não é sinal de prestígio deste atual presidente, mas tradição inaugurada na fundação da ONU. Uma homenagem ao Brasil, em reconhecimento a uma época em que a diplomacia brasileira fazia diferença no mundo.

Além disso, o discurso de um chefe de Estado é, na grande maioria das vezes, voltado mais a seu público interno do que à comunidade das nações. Mesmo quando ele vomita nacionalismo e teorias conspiratórias contra nossa soberania, está influenciando a sua plateia, não o mundo.

Com isso, o presidente excita aquela camada de 11% a 15% da população, segundo o último Datafolha, que pula no abismo se ele mandar ou acredita em tudo o que diz. Ou seja, vai usar mais uma vez a política externa para fortalecer o bolsonarismo-raiz, base de sua militância e seu escudo de proteção.

É, por exemplo, para os ruralistas que o apoiam que ele falava quando defendeu na Assembleia Geral do ano passado que os incêndios na Amazônia são culpa dos indígenas e não de pecuaristas, madeireiros, grileiros de terra.

Como explica um diplomata que vários anos de ONU, o discurso na AG é um cartão de visitas para o mundo. Mas, no caso de Bolsonaro, o mundo já sabe o que vai encontrar. A elite política e econômica do Ocidente talvez faça cara de nojinho e realize alguns protestos.

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A maioria sabe, contudo, que tanto imagens de satélites com fogo e desmatamento quanto uma montanha de quase 600 mil mortos por covid não mentem. Bolsonaro conta com o desprezo de uma boa parte dos líderes das democracias ocidentais por seu comportamento biocida, suas políticas piromaníacas, terraplanismo sanitário e sua incompetência econômica.

A garantia de que Bolsonaro vai mentir na ONU é a mesma de que o sol nascerá a cada novo dia. Ele aposta que a construção da realidade para os seus seguidores não brota de fatos, mas da narrativa que sai de sua boca. E, para eles, palavras firmes de seu líder no exterior representam que ele peita o mundo - mesmo que o mundo o veja como um covarde.

Quem fica agradecido com isso é o presidente norte-americano Joe Biden, que discursa após o brasileiro.

Após o desastre que representou a forma como tirou as tropas do Afeganistão, é bom que ele tenha Bolsonaro logo antes. Primeiro, para lembrar aos democratas nos Estados Unidos que Donald Trump, de quem o governo brasileiro era vassalo e cópia mal-ajambrada, pode voltar. E, segundo, qualquer líder mundial ganha a envergadura de um estadista falando depois de Jair.