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Bolsonaristas são sempre os outros?

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O que parece ter se configurado ao longo do tempo é um deslocamento do bolsonarismo do governo para a sociedade - Guilherme Gandolfi
Grande programa do governo federal é o extermínio da democracia

Um espectro ronda o Brasil: o bolsonarismo. Para grande parte da sociedade, parece impossível entender como o presidente mantém um nível de aprovação popular, na casa dos vinte e poucos por cento, mesmo em meio a uma escalada de ignorância, grosserias, vexames e crimes. Não parece haver razão possível capaz de manter um núcleo-raiz depois de tanto descalabro. No entanto, o fantasma se mantém não apenas vivo, mas chutando.

 Bolsonarismo tem invadido todos os espaços

Por muito tempo se defendeu a explicação de que Jair Messias estava autorizado a cometer sua cota de estupidez e defender suas pautas reacionárias, desde que atendesse aos interesses do mercado que o colocou no poder. Assim, seus parceiros ideológicos, com evangélicos e milicianos à frente, se contentavam com as promessas de mais preconceito, mais violência, mais armas e menos diversidade. Faziam a festa dos costumes para garantir a hegemonia do capital. Olavo de Carvalho era a caução para Paulo Guedes.

Nesse consórcio, entravam além dos empresários em suas variadas vertentes, da Faria Lima ao agronegócio, a imprensa dita profissional e até mesmo o poder Judiciário. A mídia fingia que não via o monstro para não ser vista, ela mesma, em suas vicissitudes (como o cenário de oligopólio alérgico à regulação) e a dependência de verba pública. Já o Judiciário afirmava uma visão teórica de liberdade e democracia, jogando lenha na fogueira do combate à corrupção, que lhe deu um protagonismo até então inédito na vida republicana. 

Autorização para agir além da ética, não é um desvio, é um método

O jogo se completou com a chegada do Centrão ao time, sempre do lado do poder, qualquer que seja ele.

Tudo parecia andar bem até que Bolsonaro começou a desagradar os dois lados. Não cumpriu os desejos do mercado, mergulhando o país numa crise em que todos estão perdendo; não respondeu à sua base orgulhosamente reacionária com as armas reais e simbólicas prometidas na campanha. A inflação segura a retomada da economia e o presidente trucou um golpe que prometeu a seu gado, arregando com uma cartinha de Temer na manga.

Para completar a tendência de queda, detectada em todas as pesquisas, ampliou a toxicidade de sua figura até o nível internacional, depois da passagem patética pelo púlpito da ONU. Os patrocinadores de primeira hora, que achavam que Bolsonaro era controlável, entubaram certa vergonha doméstica, mas ficaram incomodados quando o vexame ganhou manchetes internacionais. 

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Uma coisa é ser criticado por intelectuais, outra é ser considerado ridículo a partir da metrópole de seus sonhos vira-latas.

A CPI da Covid se tornou um paradigma desse paradoxo entre o derretimento e a persistência. A cada dia, o que parecia ser o limite dos laços mínimos de civilização é rompido. 

O que era uma investigação sobre negacionismo e incompetência técnica foi se revelando um esquema gigantesco de corrupção, ocupação espúria da máquina pública, criação de poder paralelo e, num limite impensável, patrocínio do genocídio, inclusive com experimentos com vidas humanas, com objetivo de gerar lucro para empresas. Mesmo assim, o presidente se sentiu à vontade para defender o indefensável perante os olhos do mundo.

Essa história pode ser considerada um modelo do governo federal em outras áreas da administração pública, como a educação, o meio ambiente, a segurança e os direitos humanos. Bolsonaro começa sempre por atacar as políticas existentes para depois abrir caminho não para um novo projeto, mesmo assumidamente de extrema-direita, mas para uma destruição do Estado e das instituições. 

O grande programa do governo federal é o extermínio da democracia, da política e do interesse público. Nem mesmo os militares têm o que defender nesse governo além de suas sinecuras cada vez mais espalhadas pelos ministérios civis.

Na educação, com o ataque à escola pública, à liberdade de cátedra e ao saber; no meio ambiente, por meio da entrega do comando aos setores tradicionalmente destrutivos e pulverização das normas e fiscalização. Na segurança, com a chancela armamentismo e às práticas repressivas sem constrangimento da lei. Nos direitos humanos, pela promoção do racismo, da homofobia, do machismo, em nome da chamada família tradicional e da visão teocrática do Estado.

Bolsonarismo na sociedade

Tudo isso é conhecido. No entanto, o que parece ter se configurado ao longo do tempo é um deslocamento do bolsonarismo do governo para a sociedade; do público para o privado. O que mantém ativo o programa não é apenas a defesa feita pelos partidários mais orgânicos, mas um certo caldo de cultura que tem invadido todos os espaços. Como não existe lei, no sentido psicanalítico, muitos se acham autorizados a seguir o exemplo que vem de cima.

O machismo vai além das fileiras do presidente e seus asseclas. O preconceito parece liberado para o cidadão comum, que se sente estimulado para expressar o que de pior ele traz por dentro como sendo uma anistia ao politicamente correto e afirmação de sua liberdade. O assédio moral se tornou o ar que se respira nas empresas. Os direitos trabalhistas são confrontados até mesmo pelos trabalhadores que laboravam sob sua proteção.

Mais que uma cota de bolsonarismo no universo da população, os tais 20% parecem ter invadido 20% da alma das pessoas e organizações. O que era horizontal corre o risco de se verticalizar. Esse é um inimigo muito mais difícil de combater. Uma coisa é se confrontar com adversários na arena da disputa de ideias, outra é perceber, até mesmo entre eventuais parceiros, que a mancha da contradição está presente. Como se não fosse um erro de origem, mas um exagero de percurso.

No discurso vexatório proferido na ONU, por exemplo, Bolsonaro, ao defender o tratamento precoce contra todas as evidências científicas mundiais, fez questão de nomear a parceria do “nosso Conselho Federal de Medicina”. Além da triste verdade do apoio da atual direção da autarquia, há uma metáfora nessa afirmação, que pode ser estendida a outros campos. O que começa como defesa da liberdade de consciência se torna autorização para agir além da ética. Não é um desvio, é um método.

O que leva a pensar em muitas atitudes com as quais as pessoas se deparam todos os dias. Como o desrespeito às mulheres, às pessoas LGBTQIA +, a incorporação do autoritarismo nas relações de trabalho, a arrogância para descumprir as normas de defesa coletiva e afrontar a fiscalização, e até a relativização de direitos conquistados pela história de lutas sociais. Ninguém está livre dessa tentação. Nem mesmo os que se julgam humanistas e de esquerda.

De nada adianta denunciar as relações estruturais de injustiça e ser injusto no dia a dia? Ou defender direitos trabalhistas e deixar de contratar uma mulher por estar grávida, burlando a lei da vida e a lei dos homens? Qual o sentido de lutar por uma sociedade fraterna e promover a luta de classes dentro de casa? Ou repudiar o autoritarismo e oprimir as pessoas em razão de privilégios, agindo como militares obtusos em linha de comando, transferindo a opressão que vem de cima? Essas não parecem atitudes assim tão distantes da vida real.

Os bolsonaristas, tragicamente, não são sempre os outros.  

 

Edição: Elis Almeida