Drama

Refugiados LGBTQIA+ no Brasil enfrentam discriminação, violência e desemprego

Embora se sintam mais seguros no Brasil, com relação às suas identidades, pessoas LGBTQIA+ relatam os desafios no Brasil

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Refugiados venezuelanos são registrados na Polícia Fedral de Boa Vista para emissão e regularização de documentos. - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Oficialmente, 69 países condenam relações amorosas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo, e em pelo menos cinco deles, a pena de morte é a punição para a prática, segundo dados do Acnur (Alto Comissariado da ONU para Refugiados).

Por isso, muitas vezes, a liberdade para a população LGBTQIA+ desses lugares só é possível através da fuga. Nesse processo, no entanto, a sexualidade disputa o protagonismo com outros dramas, num mundo que enfrenta também inúmeras crises humanitárias.

Em 14 de agosto, por exemplo, o Haiti registrou um intenso terremoto, com mais de 2 mil mortes confirmadas. O desastre natural piora a já fragilizada situação do país que assistiu a um presidente ser assassinado e ainda se recupera das consequências de outros tremores, registrados no ano de 2010, em que mais de 200 mil pessoas morreram. Mais recentemente, o Afeganistão controlado pelo Talibã mergulha em um regime ultraconservador e com visão distorcida do islamismo.

As crises humanitárias e a perseguição da comunidade LGBTQIA+ se somam e se interseccionam, não faltando possíveis justificativas para um pedido de refúgio. Nesse cenário, raramente, alguém dá entrada em um pedido de refúgio no Brasil com a justificativa LGBTI+. Em paralelo, não existem números atualizados sobre a entrada destes imigrantes no país.

Na fronteira com a Venezuela

Segundo dados do Ministério da Justiça, divulgados em junho, é na região norte do Brasil onde se concentra o maior número de pessoas em busca de refúgio no país. Cerca de 60% dos 29 mil pedidos ao Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), em 2020, foram feitos na base da Polícia Federal em Roraima, e outros 10%, no Amazonas.

Um desses pedidos é o da venezuelana Sílvia Fernadez. Desde setembro do ano passado, a imigrante vive em Boa Vista, capital roraimense, e, hoje, está morando nas instalações da Operação Abrigo, organizada pelo governo federal.

“Sem transporte e sem gasolina”, ela conta que atravessou a fronteira com o Brasil caminhando.

A saída da Venezuela aconteceu alguns meses depois de ela ter sofrido um ataque transfóbico em uma festa, enquanto dançava com o namorado. “Um homem nos atacou. Levei dois tiros”, conta. No seu país de origem, Fernadez se sentia discriminada por ser travesti.

No Brasil, embora se sinta “mais segura”, a jovem enfrenta outros tipos de violência. Por necessidade, já precisou trabalhar “duas, três vezes na prostituição” desde que chegou a Roraima.

No abrigo onde vive, há um banheiro de uso exclusivo para as pessoas LGBTQIA+, mas, por outro lado, já foi impedida de participar de um curso para mulheres. Como justificativa, a organizadora afirmou que “o curso era apenas para mulheres”, desconsiderando a identidade da imigrante.

Enquanto aguarda a regularização de seus documentos e o processo de interiorização (a ida dos imigrantes para outros estados brasileiros), Fernadez sonha em trabalhar com restaurantes e se mudar para São Paulo. Só que sem contatos locais ou uma rede de apoio, precisará ir “de abrigo a abrigo” até se estabelecer.

Acolhida no Amazonas

Fundada em 2018 e mantida sem apoio do poder público, a Casa Miga, em Manaus (AM), é o primeiro espaço na região norte do Brasil a acolher tantos LGBTQIA+ refugiados quanto brasileiros expulsos de casa pela própria família. Em três anos de atuação, o grupo já auxiliou mais de 55 pessoas refugiadas.

Com a pandemia da covid-19 e o fechamento das fronteiras do Brasil, o atendimento da Casa Miga, atualmente, está mais voltado para os brasileiros, mas, na maior parte de sua existência, foi o inverso, conta o enfermeiro Lucas Brito, coordenador geral da ONG.

Através do projeto, as pessoas podem passar um período de 90 dias na casa, onde recebem assistência e orientações necessárias para a sua regularização, no caso dos refugiados.

“A maioria das pessoas refugiadas [atendidas] foi de mulheres trans. Elas chegam violentadas, agredidas, com documentos queimados ou perdidos. É uma situação bem precária. Até em situação de vulnerabilidade extrema, em que a gente não conseguiu nem ajudar”, detalha o enfermeiro Lucas Brito, coordenador geral da Casa Miga.

Segundo ele, grande parte dos acolhidos, tanto as mulheres trans quanto os homens gays, trabalhava com prostituição.

“Alguns ainda trabalham, mesmo indo para outros estados.”

Por mais que o governo brasileiro ofereça abrigos e alojamentos para refugiados e migrantes venezuelanos em Manaus, “os gestores [desses espaços] são extremamente despreparados” para questões básicas do respeito a identidade de gênero e orientação sexual, como a diferenciação entre os termos cis e trans, explica Brito.

O acesso ao banheiro, diferente da exceção apresentada por Sílvia Fernadez, é um problema recorrente, de acordo com o coordenador. Isso porque, diz ele, no feminino, mulheres e crianças têm “medo de serem violentadas” e impedem o uso. Já, no masculino, as mulheres trans sofrem diferentes níveis de violências. “Ninguém faz nada”, afirma Lucas Brito. A Casa Miga chegou a acolher uma refugiada que não tomava banho havia quatro dias, “porque ela não podia entrar no banheiro”.

“Por mais direitos e conquistas que a população LGBTQIA+ tenha, a religião ainda é uma justificativa [para desrespeitar] e não tem ninguém lá para questionar. A própria pessoa, que já está em situação de vulnerabilidade, não vai brigar pelo direito dela”, critica Lucas Brito. “A Igreja Católica atua fortemente nesse processo de acolhimento”, conta o coordenador, mas há também “influência da igreja evangélica nos profissionais que atuam”.

Com a pandemia, diz Brito, a situação de LGBTIs piorou e muitos imigrantes saíram do Amazonas e foram para outros estados, como Santa Catarina. Outros se mudaram novamente de país.


Casa Miga, em Manaus, é o primeiro espaço de acolhimento para LGBTIs refugiados na região Norte. / Foto: João Machado/Acnur

Fronteiras fechadas

“A ideia de que o Brasil é amigável com os imigrantes, historicamente, não é bem verdade. A gente é amigável com aqueles que nos interessa ser. O Brasil é um país formado historicamente por imigrantes, mas são contextos históricos diferentes dos atuais”, afirma Marcelo Haydu, diretor-executivo e fundador do Instituto Adus, ONG de São Paulo que promove a integração social de refugiados no Brasil.

“O país ainda tem uma política de portas abertas. O problema é quando as pessoas entram. Uma coisa é permitir que as pessoas entrem, mas, uma vez dentro, é um grande desafio, porque muito pouco é feito”, explica Haydu. Além disso, há inúmeros preconceitos que se somam, como o racismo.

Além das dificuldades esperadas com a pandemia da covid-19, os refugiados, de modo geral, sofrem com falta de assistência do poder público e os reflexos das medidas sanitárias impostas para o controle do coronavírus. Inclusive, as fronteiras foram fechadas, como destaca o padre Paolo Parise, coordenador da Missão Paz, projeto paulistano que atende refugiados.

“Sabemos que o governo brasileiro publicou várias portarias interministeriais, desde março de 2020, que foram limitando, impedindo a entrada no Brasil, de todo tipo de pessoa pela fronteira terrestre, migrantes e solicitantes de refúgio”, explica Parise.

“Isso dificultou, mas não impediu a entrada das pessoas. Porque se criaram rotas alternativas, com pessoas se aproveitando para receber dinheiro para passar esses imigrantes”, acrescenta, se referindo aos chamados coiotes, os atravessadores ilegais. Nesse caso, muitos dos imigrantes que entraram no Brasil se encontram em uma situação de extrema vulnerabilidade, porque não conseguem os documentos, com exceção do CPF.

No caso de LGBTIs, Parise relembra que além de todas as dificuldades comuns aos imigrantes, como a falta de emprego e moradia e a demora para obter documentação, essas pessoas ainda precisam lidar com o medo do preconceito.

“Tem uma certa insegurança em encontrar a coragem para incluir no pedido de refúgio a verdadeira motivação”, conta o padre. “Tivemos um grupo da Venezuela bastante conscientes — que acolhemos. Eles tinham a solicitação de refúgio por questões de violação de direitos humanos e não colocaram a questão sexual, apesar de se inserir no grupo LGBTI+.”

De Moçambique para o Brasil

Vinda de Moçambique, Lara Lopes, chegou à cidade de São Paulo em 2013, quando a homossexualidade ainda era crime no seu país natal. Apenas em julho de 2015, o código penal moçambicano foi revisto. No entanto, mesmo após a descriminalização, o debate público sobre a causa LGBTQIA+ pouco avançou, conta a refugiada. No Brasil, além de casar, ela se tornou mãe e proprietária de uma oficina mecânica.

Segundo Lopes, Moçambique “é um país onde a questão da homossexualidade é muito complexa e que não se fala sobre sexualidade nem sobre gênero. É um país em que há um tabu enorme e a homossexualidade está sempre associada a questões espirituais. Também há quem diz ser algo que os brancos trouxeram, o que a gente sabe que não corresponde a verdade”. No território moçambicano, existe forte presença da religião cristã tanto católica quanto evangélica.

Por ser lésbica, Lara Lopes foi agredida na rua, alvo de inúmeras piadas e ameaçada por membros de sua própria família. “Já sofri violências físicas e psicológicas por causa da minha sexualidade. É uma coisa comum que as pessoas homossexuais sofrem [no país]”, afirma. Lá, ela integrou uma ONG moçambicana que trabalhava em prol de ajudar as minorias sexuais, a Lambda Moçambique.

A ideia de se mudar para São Paulo surgiu através da novela brasileira “Senhora do Destino” (Globo), exibida pela primeira vez aqui em 2004. Uma das histórias da trama era o do relacionamento de Jenifer (Bárbara Borges) e Eleonora (Mylla Christie). “Assistir a essa novela despertou um interesse em querer conhecer um mundo onde as pessoas vivem a sua sexualidade, sem medo”, lembra a moçambicana.

Da novela para o Brasil, passaram-se alguns anos. Para desembarcar no país, Lopes entrou com um visto de turismo e, somente aqui, solicitou o refúgio, sem citar explicitamente o fato de ser lésbica. Ao longo desse processo, ela recebeu apoio da Missão Paz e também entendeu a necessidade de falar sobre a questão LGBTQIA+ publicamente.

Para Lopes, o fato de os refugiados ainda terem medo de falar sobre orientação sexual e identidade de gênero, mesmo já estando no Brasil, está ligado à “comunidade a que a pessoa pertence”. No caso específico dos seus conterrâneos, ela explica que “a gente sai da África, mas carrega preconceitos como o machismo e aquela vergonha de que na África não existe homossexualidade”.

Mas essa questão não se limita apenas a um continente ou a uma região específica, já que é também presente dentro de outras comunidades, como a de haitianos. “Só conheci um haitiano que assumiu ser homossexual até hoje. Mesmo assim, ele voltou atrás e, em suas últimas postagens, ele falava que se converteu e não ia mais continuar com essa ‘opção sexual’”, conta uma voluntária que trabalha há mais de oito anos com a causa dos refugiados. Para ela, não é possível afirmar se a mudança ocorreu por “alguma ameaça" ou por uma redescoberta de sua sexualidade.

Histórico das refugiados LGBTI+ no Brasil

Segundo dados do relatório “Refúgio em Números”, do Conare, em 2020, cerca de 57 mil pessoas foram reconhecidas como refugiados pelo Brasil. No mesmo ano, houve mais de 28 mil novas solicitações da condição de refugiado no país. Diante desses números, é possível acreditar que haja uma parcela considerável de membros da comunidade LGBTI+.

No entanto, não há números atualizados sobre o número de LGBTQIA+ refugiados no Brasil. O último relatório sobre esse grupo social foi divulgado em 2018, em uma iniciativa conjunta entre o Conare e a Acnur. De acordo com o levantamento, de 2010 a 2016, 369 solicitações de refúgio tiveram como motivo o temor de perseguição por questões relacionadas à orientação sexual e/ou identidade de gênero (OSIG).

Segundo a pesquisa, 89% das solicitações foram feitas por pessoas vindas de países africanos, sendo os cinco primeiros da lista: Nigéria, Gana, Camarões, Serra Leoa e Togo. No entanto, os responsáveis destacam que “o número de refugiados LGBTI no Brasil é maior do que o total de casos” relatados no documento, "uma vez que a maior parte das pessoas não revelam sua identidade de gênero e/ou orientação sexual”.

A ausência desses dados oficiais também não é resolvida pelas instituições que atendem esse público.

“Quando as pessoas chegam na Adus, a gente não pergunta o motivo pelo qual essas pessoas solicitaram refúgio. Para nós o que conta é se você é um solicitante de refúgio”, comenta Marcelo Haydu. “Tem muitas pessoas que não se identificam como parte do público LGBTI, as pessoas simplesmente chegam e pedem apoio. Isso é uma questão que cabe ao governo, ao Conare julgar”, complemente. A Missão Paz também não realiza contagens do tipo.

“A questão de pertencimento a um grupo social é um dos motivos que leva as pessoas a solicitarem refúgio. É aí que entram as mulheres, por exemplo. Em muitos países, ser mulher significa ter menos direitos que os homens e pode significa correr risco de algum tipo de mutilação. Tanto mulheres quanto o público LGBTI fazem parte dessa definição a pertencimento de grupo social”, explica Haydu sobre onde os refugiados da comunidade são enquadrados nos números oficiais.

“Não acho que seja um apagamento, mas essa motivação divide espaço com outras várias. Nesse sentido, o termo está maquiado dentro desse contexto mais geral”, completa.

Por outro lado, o Brasil tem um histórico no atendimento de refugiados da comunidade no mundo. No livro “Imigração e Sexualidade”, o antropólogo Vítor Lopes Andrade afirma que o primeiro caso público de refugiado por motivos LGBTI+ no Brasil foi o de um casal de homens colombianos, em 2002. Na Colômbia, o casal vivia em uma região controlada por um grupo paramilitar e havia perseguição aos homossexuais.

Outra dificuldade para se realizar um levantamento de refugiados LGBTQIA+ é a identificação com a sigla da população.

“Em nenhum momento se vislumbra o fato de, por exemplo, nos países de origem os termos utilizados serem completamente distintos daqueles correntes no ocidente. Ou ainda, não se pensa no fato de que em seus países de origem tais solicitantes terem passado toda a sua vida apenas em contato com palavras opressoras ou vexatórias que identificassem sua sexualidade e/ou sua identidade de gênero”, comentam os pesquisadores Natalia Cintra de Oliveira Tavares e Vinicius Pureza Cabral, em artigo.