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Pandora Papers: qual é o problema com empresas offshore?

Prática é considerada legal em muitos países, mas a prática é encarada cada vez mais como problemática. Entenda

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Presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto, e ministro da Economia, Paulo Guedes, mantêm empresas offshores em paraísos fiscais - Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Cinco anos após a revelação dos Panama Papers, em que informações internas do escritório de advocacia e consultoria Mossack Fonseca, no Panamá, expuseram empresas offshore de centenas de milhares de pessoas, um novo vazamento de documentos, os Pandora Papers, lança luz sobre uso de paraísos fiscais por políticos e empresários para escapar de impostos e ocultar riqueza.

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Possuir contas ou empresas offshore e conduzir transações financeiras por meio de paraísos fiscais é perfeitamente legal em muitos países – mas a prática é encarada cada vez mais como problemática.

Muitas pessoas que usam essas empresas dizem que elas são necessárias para operar seus negócios com eficiência. Os críticos, no entanto, apontam que os paraísos fiscais, muitos dos quais trabalham com empresas de fachada, e as operações offshore devem ser monitorados mais de perto para combater a corrupção, a lavagem de dinheiro e a desigualdade global. 

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Segundo a Agência Pública, que participou das investigações dos Pandora Papers no Brasil, "os registros que vazaram vêm de 14 firmas de serviços offshore de todo o mundo, que abriram empresas de fachada e outros esquemas offshore para clientes que geralmente buscam manter suas atividades financeiras às escuras". 

Christoph Trautvetter, da ONG alemã sobre justiça tributária Netzwerk Steuergerechtigkeit Deutschland, afirma que, embora usar uma empresa de fachada, em geral, não seja ilegal, a desconfiança é apropriada – afinal, pessoas investem muito dinheiro e tempo para esconder seus bens em tais empresas.

"Há muito poucas razões legais e ainda menos razões legítimas para usar uma empresa de fachada", diz.

"Temos, por exemplo, o serviço secreto da Alemanha tentando apoiar a oposição na Síria e utilizando empresas de fachada para isso. Ou, inversamente, membros da oposição que organizam a resistência da Síria ou de países onde não é possível realizar tais atividades com o próprio nome. Mas estes são casos muito raros", aponta.

Na verdade, afirma, trata-se quase sempre de disfarçar, permanecer anônimo, e principalmente de contornar as leis de alguma forma.

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A legislação brasileira permite ter empresas offshore, desde que elas sejam declaradas à Receita Federal e, caso o patrimônio delas supere 1 milhão de dólares, também ao Banco Central.

Em geral, as empresas são registradas em paraísos fiscais como as Ilhas Virgens Britânicas e o Panamá por escritórios especializados em oferecer esse serviço, e não precisam recolher impostos a esses países nem são alvo de auditoria contábil. As contas dessas empresas, porém, ficam em bancos de nações mais estáveis, como na Suíça.

Medidas pós-Panama Papers

Há anos, trabalha-se a nível político para deter ou pelo menos descobrir fluxos financeiros ilegais. Por exemplo, alguns países introduziram os chamados registros de transparência, nos quais os verdadeiros proprietários de empresas devem ser registrados.

"Isso está em vigor em toda a União Europeia (UE) desde 2017", assinala Trautvetter. Assim, na Alemanha, pode ser identificado o responsável por cada empresa que tenha sede registrada no país e também para cada empresa que deseja comprar imóveis na Alemanha.

Além disso, mais de 100 países acordaram entre si o intercâmbio automático de informações para contas financeiras. Isso significa que os bancos nestes países devem reportar automaticamente os verdadeiros proprietários das contas a seus países de origem.

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Portanto, se um alemão possui uma conta na Suíça através de uma empresa de fachada caribenha, o banco suíço reporta automaticamente este fato às autoridades fiscais alemãs. Alguns países proibiram por lei até mesmo os políticos de comprar empresas offshore.

Mas, então, qual é o problema?

Algo parece estar dando errado se, até hoje, fluxos financeiros fluem para uso ilegal e só são descobertos de forma seletiva através de vazamentos de dados.

"Nem todos os paraísos fiscais mudaram as regras do jogo da mesma maneira e nem todas as regras foram implementadas de forma consistente", reclama Benedikt Strunz. Ele é um dos 600 jornalistas que analisaram os Pandora Papers.

Christoph Trautvetter também acha que existe uma falta de implementação das regras. Nos registros de transparências, há, por exemplo, um limite de 25%. Isso significa que se alguém dividir suas ações em várias empresas e, assim, não possuir 25% de uma firma, ele pode fugir das obrigações no registro de transparência.

Padrões duplos

Há ainda a questão do intercâmbio internacional de informações sobre contas financeiras. A UE, por exemplo, não está agindo de maneira particularmente exemplar em relação a paraísos fiscais. 

Em 2017, o bloco elaborou uma lista de países que promovem práticas fiscais abusivas e minam a receita tributária dos Estados-membros. Com isso, a UE quer assegurar que os países europeus possam exercer pressão conjunta por uma reforma. No entanto, paraísos fiscais na própria UE, como Malta, Irlanda ou Chipre, não aparecem na lista.

Os Estados Unidos, outro grande player do mercado financeiro global, também não agem de forma impecável. Em 2013, os EUA impulsionaram o intercâmbio automático internacional de informações, especialmente no que diz respeito aos bancos suíços.

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Estes só cederam após a ameaça de Washington de reter juros como penalidade sobre as transações americanas de bancos suíços, caso eles não passassem informações sobre suas contas.

A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) acabou conseguindo estabelecer um intercâmbio automático de informações em nível global. "Contudo, os EUA ainda não retribuíram", critica Trautvetter.

Isso significa que, embora todos os países do mundo agora reportem informações sobre cidadãos americanos e suas contas para os EUA, os Estados Unidos repassam informações apenas de forma muito limitada sobre contas e empresas de cidadãos estrangeiros no país.

Não é de se admirar que os EUA e, em particular, o estado de Dakota do Sul, tenham se tornado um local popular para empresas de fachada. Trautvetter já suspeitava que isso aconteceria, pois ficou muito mais arriscado e problemático operar empresas de fachada no Caribe.

No que diz respeito ao combate à compra ilegal de imóveis, já aconteceu muita coisa na Alemanha, por exemplo. Desde 2021, não é mais possível comprar imóveis na Alemanha através de empresas de fachada sem que o verdadeiro proprietário dessa empresa esteja registrado no país europeu.

Mas isso não é suficiente, porque pessoas de alto poder aquisitivo ainda podem comprar outras empresas através de empresas de fachada, que, por sua vez, tenham imóveis.

Portanto, Gerhard Schick, do Movimento dos Cidadãos para uma Mudança nas Finanças, exige: "Devemos proibir as empresas das quais verdadeiros proprietários não são conhecidos de fazer negócios na Alemanha." Além disso, se o dono de um imóvel não for rastreável, deveria ser possível confiscar a propriedade, defende.

Segundo ele, os bancos também devem ser investigados e responsabilizados, pois fazem a maior parte do negócio. "No que diz respeito à luta contra a lavagem de dinheiro, percebemos nos últimos anos que a autoridade de supervisão financeira deveria ser um pouco mais dinâmica", ressalta Schick.

Troca de informações não basta

Trautvetter também argumenta que não apenas dados sobre contas financeiras devem ser trocadas, mas também informações sobre os proprietários de imóveis, iates e outros objetos de valor.

Acima de tudo, transações já feitas têm de poder ser investigadas posteriormente, apela Schick. Ele também acha que faria sentido se os bens de fontes ilegais fossem confiscados com mais frequência.

Para descobrir onde é preciso agir, a Alemanha teria que fazer muito mais controles, diz Trautvetter. Segundo ele, é necessário que equipes especializadas da polícia, autoridades fiscais e promotores públicos especializados investiguem estruturas corporativas internacionais complexas, identifiquem os verdadeiros proprietários e depois punam os prestadores de serviços e os bancos que não tenham reportado adequadamente.

Talvez os Pandora Papers deem agora outro empurrão para impor regras mais estritas em nível internacional. Schick enfatiza:

"É muito importante ter um jornalismo bom e independente que coopere internacionalmente. Isso é útil para criar transparência. Sou extremamente grato por termos mais uma vez conseguido mostrar ao público o que está indo mal e, assim, exercer pressão sobre os políticos que utilizam tais empresas de fachada."