Coluna

Por que pagamos por absorventes?

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Qual escolha você faria? Comprar água e comida ou garantir um cuidado básico com sua saúde íntima? - Maurício Lima / AFP
Os inimigos da classe trabalhadora nos brutalizam e torturam das maneiras mais torpes e insidiosas

Por Rayane Andrade*

O recente veto do presidente Bolsonaro ao projeto de lei de iniciativa de Marília Arraes (PT), que previa a distribuição de absorventes para pessoas em vulnerabilidade através do Sistema Único de Saúde (SUS), provocou uma grande reação social. Lideranças dos mais variados campos políticos se insurgiram contra a já esperada negativa do governo, dada sua orientação política misógina e conservadora.

Ocorre que o debate sobre a menstruação em si, como tabu vinculado às bases patriarcais da sociedade brasileira, e a distribuição gratuita do item de higiene e saúde íntima é uma janela para uma discussão mais profunda: por que pagamos por absorventes?

Faço a provocação no sentido de percebermos como o capitalismo patriarcal racista opera. Um item tão básico à dignidade sexual e reprodutiva de todas as pessoas que têm ciclo - mulheres, homens trans e não binários - é uma mercadoria. Ou seja, para se ter um desses é preciso ter dinheiro, ao invés de ser um elemento de acesso livre por sua centralidade cotidiana.

Enquanto a ministra Damares Alves busca justificar o veto, usando sua posição de mulher para legitimar a opção política de vetar a proposição legislativa, tem muita gente sofrendo com problemas sérios de saúde por não terem acesso ao item. Meninas deixam de ir às escolas por não conseguirem acessar o absorvente. Presas usam miolo de pão para estancar seu sangue mensal. E as pessoas em situação de rua? Como ficam aqueles sujeitos que são vulnerabilizados e não tem acesso as condições mínimas para uma vida digna?

::Entrevista: "A pobreza menstrual é um problema de saúde pública"::

Todos esses exemplos se relacionam com o problema maior, do qual derivam todas essas consequências. Vivemos em um país cujo povo morre de fome, com 19 milhões de desempregados e que a misoginia impera soberana, violentando mulheres e população LGBTQI+.

Um pacote de absorvente simples custa em média 4 reais. Pode parecer pouco, mas, segundo o IBGE é considerada em situação de extrema pobreza quem vive com 1,90 dólar por dia, o que dá em torno de 5 reais. Agora faça as contas: são 13,6 milhões de pessoas nessa situação deplorável e entre essas, muitas menstruam todos os meses. Qual escolha você faria? Comprar água e comida ou garantir um cuidado básico com sua saúde íntima?

Só um modo de produção tão bárbaro quanto o capitalismo patriarcal racista é capaz de colocar a milhares de seres humanos uma escolha tão torpe sobre sua própria dignidade. Sabemos que a iniciativa de Marília Arraes não resolve o problema estrutural, mas é uma medida fundamental no enfrentamento a essa condição de indignidade, por isso temos que mobilizar a luta política para garantir a derrubada do veto.

Contudo, não podemos perder o horizonte estratégico da questão: enquanto vivermos sob a dinâmica da mercadoria, tudo que for essencial à vida será privado. Ao debatermos a questão do acesso aos absorventes não podemos nos limitar achando que a maior distribuição do acesso ao item significa universalização do cuidado à saúde íntima.

É um passo numa caminhada que tem que nos colocar no rumo de uma transformação radical dessa sociedade, pois os inimigos da classe trabalhadora nos brutalizam e torturam das maneiras mais torpes e insidiosas, como negando acesso a absorventes a quem não possa pagar por eles.

 

*Rayane Andrade, coordenadora do setorial de Direitos Humanos do PT/RN, advogada e professora.

**Leia outros textos da coluna Direitos e Movimentos Sociais. Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Anelize Moreira