cultura negra

Reimaginando amanhãs: conheça quem constrói o afrofuturismo brasileiro

Da ficção científica às artes visuais, obras propõem pensar o futuro a partir da perspectiva de pessoas negras

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Para o ilustrador Johnatan Marques, o afrofuturismo é uma fusão de presente, passado e futuro - Johnatan Marques
É pensar o caos de futuro de pessoas negras, e ao mesmo tempo lidar de forma positiva com isso

O que o free jazz de Sun Ra, o filme “Pantera Negra” e a ficção científica da escritora Octavia Butler têm em comum? Os três são exemplos de afrofuturismo, um movimento estético que busca pensar o futuro a partir da perspectiva das populações negras.

O conceito nasceu nos Estados Unidos, mas vem ganhando terreno aqui no Brasil.

“As preocupações de falar sobre afrofuturismo surgiram ali no contexto da ficção especulativa, que é um conceito que eu gosto de usar também, que são histórias de ficção científica, fantasia e horror sobrenatural", explica  o escritor e mestre em literatura Waldson Souza.

"São gêneros que falam sobre preconceito, desigualdade, encontro com o outro, mas na maior parte das vezes na perspectiva de autores brancos. Então os primeiros questionamentos de afrofuturismo foram nesse sentido: onde estão pessoas negras construindo histórias a partir dessa perspectiva”, acrescenta. 

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Waldson conta que, no Brasil, um marco da produção afrofuturista foi o livro “Ritos de Passagem”, de Fábio Kabral, lançado em 2014. E aponta que, mesmo que ainda seja cedo para falar em uma cara do afrofuturismo brasileiro, muitas obras dentro do gênero guardam uma característica em comum: mesmo que se passem no futuro ou em terras fantásticas, elas tratam de questões ligadas ao presente.

É esse o caso do livro “Ìségún”, da escritora Lu Ain-Zaila. Moradora da baixada fluminense, ela criou um cenário futurista para falar de um problema que conhece bem: o lixo. 

“Então as cidades são suspensas. Na parte de baixo, você tem um grande mar de lixo, e aí eu lido com o tema do racismo ambiental. É uma experiência de pensar o caos de futuro de pessoas negras, e ao mesmo tempo lidar de forma positiva com isso: como você faz o embate, como muda essa realidade. porque senão não faria sentido os personagens simplesmente atravessarem uma realidade de caos e viverem nela”.


A escritora Lu Ain-Zaila lida com temas como racismo ambiental e resistência / Paulo Santos

É uma problemática geral que a gente só pode mudar com imagem de futuro

O afrofuturismo brasileiro não fica só na literatura. Na música, temos as viagens de Jorge Ben Jor no disco “Tábua de Esmeralda”; no cinema, um exemplo é o filme “Branco sai, preto fica”. E nas artes visuais, tem muita gente nova surgindo: como o ilustrador Johnatan Marques, também conhecido como Johncito. 

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“Eu não gosto muito de pensar no afrofuturismo como uma coisa distante, que envolve somente uma tecnologia com raio laser, carro voador... Eu gosto de pensar no afrofuturismo como essa fusão entre presente, passado e futuro, e que eu estou vivendo o afrofuturismo hoje aqui também, no presente. Quando eu desenho um casal negro de dois homens se beijando, eu acho que isso também é uma arte afrofuturista, porque isso no passado era uma coisa impossível de acontecer. Então tem essa utopia, esse sonho, essa imaginação”. 

A artista multidisciplinar Nazura também mistura passado, presente e futuro em suas obras. Muitas ilustrações dela trazem corpos negros cobertos por circuitos eletrônicos, ao mesmo tempo em que usam búzios. 

“Quando coloco os búzios eu também estou falando de tecnologia, também estou falando de um elemento que cria essa conexão, não é só um elemento estético que está sendo jogado lá. E os circuitos também são elementos que criam conexões, só que outros tipos de conexões. Então em vez de trabalhar isso como elementos distintos, eu tento pensar eles atravessando o mesmo corpo”.  

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Independente da linguagem artística ou da maneira como cada um trabalha com afrofuturismo, uma coisa atravessa todas essas obras e artistas: a ideia de que é preciso imaginar novos futuros possíveis, como aponta Lu Ain-Zaila. 

“Acho que é um problema genérico e geral na população brasileira: o imaginário é muito cortado. Você tem que viver, tem que sobreviver, então você só pode pensar no agora, você não pode ter a experiência do amanhã, porque não há onde você se apegar pro amanhã. Essa é uma problemática geral que a gente só pode mudar com imagem de futuro”. 

Quem quiser se aprofundar no assunto, em 2020, a revista eletrônica Ponto Virgulina lançou uma edição temática sobre afrofuturismo com textos teóricos de autores estrangeiros traduzidos para o português. A revista é gratuita, é só baixar no site: traducaoliteraria.wordpress.com.

Edição: Douglas Matos