AIDS/HIV

ANÁLISE | Financiamento mais curto pode ser ameaça a combate ao HIV na África do Sul

África do Sul deve aumentar investimento em educação sexual em escolas e reforçar subsídio de programas

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Pandemia de HIV/AIDS matou 35 milhões desde os anos 1980; na imagem, pacientes com doenças relacionadas ao HIV aguardam atendimento em Malawi, na África - Marco Longari / AFP

Neste Dia Mundial de Combate à AIDS (1º de dezembro), a África do Sul ainda possui a maior população HIV positivo do mundo, com 7,7 milhões de pessoas vivendo com HIV no país em meio a um orçamento que está encolhendo.

Após declaração de política orçamentária de médio prazo feita em novembro deste ano, organizações da sociedade civil expuseram preocupações de que a diminuição do fundo para as províncias, tanto pela divisão equânime quanto por meio de subsídios condicionais, pode ter como resultado a perda de metas cruciais para o tratamento de HIV/AIDS.

O Tesouro Nacional também falhou em prover informações claras ou planos concretos para assistir as províncias no cumprimento de metas do programa de tratamento do HIV em meio às restrições de orçamento. 

O orçamento nacional para o mês de fevereiro de 2021, tabulado pelo ex-ministro das Finanças, Tito Mboweni, viu a linha de base do subsídio condicional para tratamento do HIV ser reduzido a um total de 5,8 bilhões de rands [moeda sul-africana] (cerca de R$ 2,05 bilhões) para o próximo triênio. Nenhum valor adicional foi alocado na declaração de política orçamentária de médio prazo para o ano de 2022. 

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Preocupações quanto à redução em financiamento para tratamento do HIV e o impacto na capacidade do Departamento de Saúde de prestar serviços de maneira efetiva podem ser identificados desde 2017, quando Jose Antonio Izazola Licea, conselheiro especial para rastreamento de recursos e financiamentos, alertou que “com o apoio de doadores estagnando-se e com provável queda, o sucesso do programa sul-africano de combate ao HIV dependerá de sua capacidade de mobilizar e gerir um fluxo sustentável de recursos domésticos”. 

Subsídio condicional para tratamento do HIV 

Na última década, a África do Sul fez significativos progressos no combate à epidemia de HIV, canalizando investimentos cruciais por meio do subsídio condicional para tratamento do vírus. Grandes avanços foram feitos com as metas de tratamento do 90-90-90, Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS, na sigla em inglês) em colaboração com parceiros de desenvolvimento e agências como o Fundo Global para Combate da AIDS, Tuberculose e Malária e o Plano Emergencial do Presidente dos Estados Unidos para o Combate à AIDS.

A África do Sul adotou essas metas em seu plano estratégico nacional para combate do HIV, tuberculose e doenças sexualmente transmissíveis (DST’s) para o período de 2017 a 2022.

De acordo com os últimos resultados do modelo matemático Thembisa, usado para a epidemia de HIV na África do Sul, em 2020, 92,4% das pessoas vivendo com HIV sabiam da doença, 71,9% dos diagnosticados estavam fazendo tratamento e 91,2% das pessoas em tratamento estavam com carga viral indetectável.

Para além disso, a expectativa de vida das pessoas vivendo com HIV aumentou de 53,5 anos em 2004 para 66,6 anos em 2020, melhora relacionada ao progresso do programa de terapia retroviral e tácticas de prevenção nacionais. Estes são importantes avanços em um país antes famosos pela negação da AIDS.

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Mirando no futuro, para lidar com as causas subjacentes da incidência do HIV, precisamos considerar a melhor forma de superar as lacunas e impulsionar o progresso, inclusive por meio de alocações de financiamento.

Enfrentando o sintoma ou a causa?

Ativistas da saúde tem pedido por maior atenção quanto à efetividade do subsídio condicional para combate do HIV. 

Mesmo antes da pandemia de covid-19 interromper o programa para combate do HIV, a África do Sul já enfrentava desafios sociais, econômicos, de gênero e sanitário, inclusive altas taxas de gravidez na adolescência, violência de gênero, altas taxas de prostituição, falta de qualidade educacional, pobreza generalizada, desigualdade e desemprego. 

Esses desafios são sustentados e piorados por escolhas de políticas ruins e alocação de recursos insignificante para os determinantes sociais e estruturais da saúde que dão origem a novas infecções, baixa aceitação de tratamento e baixas taxas de adesão entre grupos populacionais chave pra o combate do vírus.

Apoio a programas específicos

O modelo Thembisa mostra que as maiores taxas de incidência estão entre profissionais sexuais e homens que têm relações sexuais com outros homens. Apesar dos esforços para distribuir preservativos e profilaxia pré-exposição (PPE) ao vírus, para as profissionais do sexo e alguns dos homens acima citados, ainda há baixas taxas de adesão e retenção dessas intervenções preventivas.

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O modelo Thembisa (versão 4.3) estima a taxa de cobertura de PPE em apenas 3% e 1% em para profissionais do sexo e homens que têm relações sexuais com outros homens, respectivamente. 

“Estes grupos requerem atenção especial com relação `prevenção, além de aumento significativo de acesso ao tratamento”, disse Yogan Pillay, ex-diretor-geral adjunto do departamento de saúde. É essencial que os programas com foco nestes grupos sejam fortalecidos e apoiados por meio de subsídios nacionais e provinciais adequados.

Ainda que o presidente Cyril Ramaphosa tenha lançado, em 2019, um programa de combate ao HIV com foco em trabalhadores e trabalhadoras do sexo, e tenha declarado que “trabalho sexual é trabalho”, as trabalhadoras do sexo continuam vulneráveis a assédio policial e ao estigma.

A relação entre as taxas de trabalho sexual e HIV é uma questão para a qual várias matérias já chamaram a atenção. Trabalho sexual é uma profissão que é desproporcionalmente praticada por mulheres que o fazem por estarem em situação de insegurança alimentar e habitacional.

Estas mulheres também enfrentam maior risco de ter relações sexuais sem proteção e sofrer violência de gênero, portanto, a necessidade de descriminalizar o trabalho sexual ainda é questão urgente. 

Garantir educação sexual

Enfrentar o impacto do HIV não é algo que o setor de saúde possa fazer sozinho. Enquanto o setor de saúde fez grandes avanços na testagem e tratamento do HIV, mais precisa ser feito para evitar novas infecções, encorajar a adesão ao tratamento, educar as comunidades e combater o estigma negativo e a discriminação.

Fornecer preservativos e PPE é uma parte fundamental da solução, como também mudar atitudes, comportamentos e conhecimentos. Isto requer recursos, então precisamos de investimento significativo em determinantes socioeconômicos da saúde para acabar a epidemia de HIV. 

O governo sinalizou o setor de educação básica como crucial nos esforços de prevenção do HIV. O subsídio condicional HIV/AIDS Life Skills financia iniciativas educacionais nas escolas sobre o HIV. Alguns dos objetivos estratégicos do subsídio condicional incluem “enfrentar as causas sociais e estruturais do HIV” e contribuir na prevenção de novas infecções por HIV, STD’s e tuberculose”. 

Mas preocupantemente, o subsídio condicional HIV/AIDS Skills foi cortado no orçamento suplementar de junho de 2020. O corte foi de milhões de rands e mais milhões foram realocados para informes escolares sobre a covid-19, o que significa, dentre outras coisas, que há menos dinheiro para treinar professores na educação sexual ampla.

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Levando em conta essa redução, a revisão do orçamento suplementar esclareceu que “todas as sessões de treinamento planejadas para mais de 20.000 educadores [foram] canceladas” em 2020. 

Pesquisa feita em todo o mundo, inclusive na África do Sul, descobriu que programas efetivos de educação sexual ministrados por professores bem treinados resultam em conhecimento aprimorado acerca do HIV, prevenção de gravidez, redução do risco sexual, evita que os alunos tenham múltiplos parceiros sexuais em um mesmo período, melhora nas atitudes em relação à recusa sexual e ao uso de preservativo, e atraso no início da vida sexual.

Apesar da óbvia necessidade de fortalecer o programa de educação sexual na África do Sul como parte dos esforços para reduzir novas infecções por HIV e enfrentar as atitudes e comportamentos que levam à violência de gênero, isso não parece ser prioridade de investimento para governo.

Os R100 milhões (cerca de 35 milhões de reais) perdidos do subsídio condicional para HIV/AIDS Life Skills não foram recuperados no orçamento de fevereiro de 2021 e preocupa a declaração de política orçamentária de médio prazo do Ministro das Finanças, Enoch Godongwana, que reduziu o subsídio condicional em 860 mil rands (305 mil reais) em termos nominais no período fiscal de 2022-2023.

Oferecer educação sexual nas escolas e treinar professores para ministrar aulas sobre esse assunto será vital caso a África do Sul queira fortalecer o braço de prevenção do programa de combate ao HIV – o que definitivamente deve ser feito. É importante que o subsídio HIV/AIDS Life Skills, como uma das chaves para uma estratégia mais ampla de prevenção do HIV, seja apoiado e fortalecido.

O subsídio condicional também continua sendo um financiamento vital para a prevenção e o tratamento do HIV, mas sua capacidade de atender os vários desafios enfrentados em nossa resposta ao vírus está ameaçada.

Os cortes no subsídio e a falta de investimento em educação sexual e em serviços especializados para populações-chave minam a possibilidade de “um fim à AIDS” e de um futuro onde ninguém será deixado para trás.

Mbali Baduza é pesquisadora jurídica no Programa de Direitos de Saúde na Seção 27; Julia Chaskalson é pesquisadora e oficial de defesa na Seção 27.