Pernambuco

Balanço de 2021

Em meio às crises, movimentos populares comemoram retomada das ruas e vitória da vacinação

Em meio ao aumento da carestia, luta por vacina foi vitoriosa e esquerda “saiu das cordas” na disputa política nacional

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Manifestantes em marcha na Avenida Conde da Boa Vista pelo Fora Bolsonaro - Olívia Godoy

Em janeiro o ano de 2021 já se desenhava como mais um ano de grandes desafios para as organizações da sociedade civil. Muitas mortes pela pandemia, um governo negacionista, a piora das crises ambiental, econômica e social, mas tudo isso sem que os movimentos pudessem reagir nas ruas, já que isso representava o aumento no risco de contágio. As campanhas de solidariedade já estavam à toda, mas era necessário – e estas foram as principais metas – conquistar a vacinação pública, gratuita e para toda a população, além de forçar o governo Bolsonaro a manter o “Auxílio Emergencial”, que evitou uma tragédia ainda maior no quadro de miséria.

O presidente da Central Única dos Trabalhadores em Pernambuco (CUT-PE), professor Paulo Rocha, lembra que pairava uma incerteza, já que no início daquele janeiro ainda nem havia vacina autorizada pela Anvisa. “O grande desafio que era a vacinação, mas ainda nem tínhamos vacina. Precisávamos estancar o processo de mortes. Fizemos inúmeras mobilizações pela vacinação”, lembra ele, mencionando ainda o envolvimento da CUT e outros sindicatos em campanhas de solidariedade e nas lutas para evitar retrocessos legislativos, como a retirada de direitos trabalhistas.

Jaime Amorim, experiente dirigente do MST em Pernambuco, acrescenta que a batalha pelo imunizante precisou ser acompanhada do combate às notícias falsas e da luta pela gratuidade da vacina, já que o governo Bolsonaro tentou aprovar a compra por empresas. “Apesar de tudo o que Bolsonaro fez contra a vacinação e apesar da corrupção na compra dos imunizantes, mesmo que tardiamente o povo se vacinou e continua se vacinando. A população brasileira tem tradição de se vacinar”, comemora Jaime. No momento em que esta matéria é escrita, 66,8% de toda a população brasileira está imunizada com pelo menos duas doses.

Diretora da União Nacional dos Estudantes (UNE), Isa Gabriela lembra da importância das organizações estudantis na ampliação da mobilização. “Conseguimos fazer uma campanha grande, que foi a ‘Vida, pão, vacina e educação’, reivindicando coisas que estão na ordem do dia: manter nosso povo vivo, vacinado; dar conta da fome do povo através da renovação do auxílio emergencial; e o combate ao sucateamento das instituições de educação e pesquisa”, destaca. A estudante lembra que o slogan acabou incorporado pelo conjunto de organizações populares.

Renda e comida

Como destacou a campanha encabeçada pela UNE, o “pão” também estava (e ainda está) na pauta de reivindicações do povo brasileiro e suas organizações. Os levantamentos têm apontado que mais de 10% da população do país está vivendo abaixo da linha da pobreza, sofrendo de insegurança alimentar grave. No total chega a 50% do país com algum nível de insegurança alimentar, vivendo diariamente com a incerteza se conseguirá fazer as três refeições diárias.

Por isso os movimentos lutaram pela continuidade do Auxílio Emergencial. O programa surgiu em abril de 2020, resultado de pressão popular e parlamentar por um programa de renda que permitisse à população se alimentar, mesmo sem ir trabalhar (em especial os trabalhadores informais). Foram parcelas de R$600 e R$300 até dezembro e, com pressão da sociedade, acabou renovado para 2021 com valores entre R$150 e R$350. “A população brasileira está numa situação muito difícil, de caos social, as pessoas estão passando fome. O governo não garantiu nem o mínimo necessário para as pessoas comerem. Nesse ponto Bolsonaro derrotou a população brasileira”, lamenta Jaime Amorim.

Fernanda Rêgo, dirigente da Marcha Mundial das Mulheres, destaca os avanços locais do movimento na tentativa de gerar renda para as mulheres nas periferias da região metropolitana do Recife. “Conseguimos consolidar uma fábrica de vassouras ecológicas em Brasília Teimosa, toda tocada por mulheres”, diz ela, destacando o apoio “fundamental” do Fundo Casa. “Também arrecadamos recursos para a compra de oito máquinas de costura e fizemos um curso de costura básica em Peixinhos (Olinda). Essas mulheres passaram a produzir máscaras em parceria com organizações comunitárias”, diz Rêgo.

Com o mesmo objetivo, o movimento levou mulheres do bairro da Várzea para curso de gastronomia e empreendedorismo. O movimento também participou do cultivo em hortas comunitárias em duas periferias da capital. Mas a “mão na massa” foi acompanhada do estudo e debate sobre o direito a uma renda básica: a Marcha levou dezenas de militantes para fazerem curso sobre o tema em parceria com a UFPE. “Foi um grande desafio tocar tudo isso enquanto contribuímos com a campanha Mãos Solidárias”, diz ela.

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) também criou ações de combate à fome. Na Vila Santa Luzia, favela no bairro da Torre, o movimento construiu uma cozinha solidária e tem distribuído refeições diariamente. “Temos 26 no país e aqui consolidamos uma”, diz Vitória Genuíno, dirigente dos sem teto. “Também construímos e ampliamos as hortas comunitárias – temos uma na ‘8 de Março’ e outra na ‘Aliança com Cristo’, mas queremos ampliar, levando o debate da segurança alimentar. São espaços em que o combate à fome vai além da reivindicação: é uma construção concreta”, pontua.

Isa é estudante de Rádio, TV e Internet na UFPE e militante do Levante Popular da Juventude. Ela destaca que em 2021 a juventude participou ativamente de ações de solidariedade, algumas em parcerias com instituições de ensino. “Conseguimos construir projetos de extensão pautando a questão da solidariedade, visando garantir alimentação e cuidados com a saúde nas comunidades. A juventude reivindicou ao mesmo tempo em que construímos concretamente nos territórios”, completa.


Moradores de Peixinhos se envolvem na construção de uma horta urbana na comunidade / PH Reinaux

Ela lembra os constantes ataques de Bolsonaro às universidades, mas avalia que o saldo das lutas foi positivo. “Vimos muitas de nossas universidades serem tomadas por interventores nomeados pelo presidente, a exemplo da Univasf aqui em Pernambuco. Ele quer transformar as nossas universidades num aparato ideológico deles”, reclama, mencionando ainda a mudança no ProUni, retirando a prioridade dos estudantes de escolas públicas. “Mas também conseguimos o adiamento do Enem, a aprovação do Fundeb no Congresso Nacional”, lembra Isa.

As ruas e a esquerda de volta ao ringue

Em janeiro de 2021 a candidatura do ex-presidente Lula ainda era um sonho improvável de se realizar. Sem uma liderança popular e impedida (pela pandemia) de levar suas bandeiras e reivindicações às ruas, a esquerda passava dificuldades no diálogo e apontamento de caminhos junto à população das periferias urbanas. Mas no mês de março o STF julgou a Vara Federal de Curitiba incompetente para julgar os casos envolvendo Lula, além da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro. Os processos contra o líder petista voltaram à estaca zero, já não havendo impedimentos jurídicos a uma candidatura.

A volta de Lula, o avanço da vacinação e – após muito debate na esquerda – a retomada dos atos de rua ainda no primeiro semestre colocaram as forças populares de volta na disputa, liderando a oposição ao governo Bolsonaro e seu programa econômico. “É nítido que recuperamos nossa capacidade de mobilizar, de construir na esquerda um mínimo de unidade. Isso conseguimos este ano. Nós saímos das cordas e estamos no centro do ringue, disputando o projeto de sociedade. Demos passos importantes, mas ainda não podemos cantar vitória”, diz Jaime Amorim. E Lula, que em janeiro não poderia ser candidato, encerra o ano como candidato de 48% dos eleitores brasileiros, com possibilidade de vencer a disputa já no 1º turno.

Vitória Genuíno, do MTST, também coloca a retomada das ruas como uma grande conquista. “Mesmo sem a vacina os movimentos sociais já estavam na rua, combatendo a fome através das campanhas de solidariedade. E a conjuntura pedia essa movimentação, mas precisávamos fazê-lo de forma segura diante do quadro sanitário”, lembra ela. “Conseguimos construir a unidade para a retomada dos atos de rua. Começamos em maio e fizemos atos até dezembro”, comemora.

Na esteira das grandes mobilizações, a dirigente sem teto comemora a retomada das ocupações de propriedades urbanas que estavam sem uso. “Foi muito importante para o MTST. No Recife tivemos a ocupação ‘8 de Março’ [iniciada em setembro, em Boa Viagem] e a jornada de lutas em que levamos centenas de sem teto às ruas para tentar barrar a reintegração – e vencemos”, diz ela.


Thalia é mãe solo e após ficar desempregada e sem fonte de renda, a saída para a situação da sua família foi se inserir na ocupação / Maria Lígia Barros

Genuíno destaca ainda a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 828, construída pelo MTST e pelo PSOL e acatada pelo Supremo Tribunal Federal, impedindo o prosseguimento de pedidos de reintegração de posse enquanto durar a pandemia. “Foi uma vitória importante de 2021, fruto da campanha ‘Despejo Zero’. Em Pernambuco avançamos num diálogo mínimo com o PSB, mas o que nos deu uma segurança jurídica foi a ADPF”, avalia.

A volta das mobilizações também trouxe resultados para as lutas sindicais. “Conseguimos recuperar o Fundeb e impedimos uma nova reforma trabalhista”, lembra Paulo Rocha, presidente da CUT Pernambuco. “Mas foi um ano muito difícil, ainda com pouca capacidade de mobilização. Estamos num período mais de reação de nossa parte do que de proposição”, pondera.

Outra pauta importante foi o Projeto de Emenda à Constituição que propõe uma “reforma administrativa” (PEC 32/2020), permitindo entre outras coisas o fim da estabilidade do servidor público. A proposta foi aprovada na Câmara Federal, mas não foi votada no Senado. “Se ela for aprovada no Senado será uma derrota enorme não só para os servidores públicos. Bolsonaro e seus apoiadores falam como se fossem retirar ‘privilégios’, mas na verdade eles estão retirando serviços da população”, diz o professor e sindicalista.

“Fora Bolsonaro” – mas ele ficou

O dirigente do MST lembra que o impeachment do presidente Jair Bolsonaro (PL) era uma das metas de 2021. Apesar de todos os atos de rua, de maio a dezembro, terem esta reivindicação, o Congresso Nacional comandado por Arthur Lira (PP) e Rodrigo Pacheco (DEM) – aliados de Bolsonaro – não levou a questão adiante. “Não conseguimos criar condições em Brasília e nem levar o povo para as ruas numa quantidade que criasse as condições para o impeachment. Não conseguimos criar um clima na sociedade para impedir Bolsonaro de continuar governando”, diz Amorim.

A escolha das esquerdas de suspender mobilizações de rua por mais de um ano favoreceu Bolsonaro, mas Jaime não mudaria a decisão. “Nosso foco foi na preservação de vidas e isso foi muito importante. Mesmo nas manifestações tivemos muitos cuidados”, avalia. Ele classifica o presidente da República como “insano” e diz que se fosse qualquer outro na posição de Bolsonaro, teria feito melhor gestão. “Se tivéssemos retirado Bolsonaro no início de 2021, teríamos evitado metade das mortes por covid. Qualquer presidente teria garantido recursos para salvar as pessoas e para o povo ter o que comer”, acredita.


Presença rara nas manifestações de rua nos últimos anos, o PSB reapareceu nos atos da campanha "Fora Bolsonaro" deste ano / Vinícius Sobreira/Brasil de Fato Pernambuco

Mas ele acredita que o ano foi de uma vitória parcial neste quesito. “Era fundamental derrotar Bolsonaro em 2021 – com ou sem impeachment. Derrotar significa fazer com que os militantes deles fossem derrotados socialmente. Isso conseguimos: eles voltaram a se sentir minoria”, diz Jaime. “A maioria da população já não o segue mais. Só quem o segue são aqueles radicais, os militares, uma base da burguesia radicalizada e alguns pastores evangélicos – mas a massa evangélica também está sofrendo com a fome”, analisa.

Amorim considera que do ponto de vista ideológico o bolsonarismo encerra 2021 derrotado. “Espero que em breve recoloquemos eles no ‘armário’ da direita e, mais que isso, tenhamos conquistas importantes para a classe trabalhadora”, vislumbra, otimista. “Mas temos que estar atentos, porque o fascismo é como um vulcão que a qualquer momento pode entrar em erupção novamente”, alerta.

 

Edição: Rani de Mendonça