Luta por moradia

10 anos do Pinheirinho: memória está viva às vésperas de centenas de despejos agendados

Terreno de Naji Nahas onde viviam as 1.843 famílias violentamente removidas em São José dos Campos (SP) hoje está vazio

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Operação para remover o Pinheirinho em 22 de janeiro de 2012 foi com 2 mil policiais militares, cavalaria, helicópteros e tratores - Roosevelt Cássio / Sindicato dos Metalúrgicos de SJC

Elisângela não conseguia dormir. Depois de 15 dias sem pregar o olho e meses de preparação de um batalhão popular de autodefesa para resistir à iminente reintegração de posse, no dia 21 de janeiro de 2012 os moradores da Ocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), baixaram a guarda. 

Naquela noite chegou a notícia de que, em acordo com o então presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), Ivan Sartori, o despejo estava suspenso para que se buscasse um entendimento entre as partes. As cerca de 6.500 pessoas que viviam no Pinheirinho havia oito anos se permitiram relaxar e comemorar.

"Mas eu não conseguia confiar naquela vitória", narra Elisângela. Mal amanhecido o 22 de janeiro de 2012, a operação de guerra montada pela Polícia Militar (PM) anunciava que o dia ficaria marcado por um dos despejos mais brutais da história recente do estado de São Paulo.

Como na história do cavalo de Troia, o território foi tomado pegando as pessoas de surpresa. Diferentemente do encontro entre os exércitos gregos e troianos, no entanto, esse foi mais um caso de guerra unilateral das forças do Estado contra sua própria população. "A gente não esperava aquela barbaridade", narra Elisângela Silva, que foi coordenadora do Pinheirinho e viu, ali, nascerem seus netos.

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O aparato, montado pelo então governador Geraldo Alckmin e o prefeito de São José dos Campos Eduardo Cury, ambos do PSDB, contou com dois mil policiais militares, guardas civis, dois helicópteros, tratores e cavalaria. 

O evento completa uma década pouco antes do fim da vigência de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) proibindo remoções forçadas, por conta da pandemia de covid-19. A partir de 31 de março, reintegrações de posse estão agendadas contra ao menos 123 mil famílias no país, de acordo com a campanha Despejo Zero.

Especulação imobiliária: terreno do Pinheirinho hoje é vegetação 

Dez anos depois, as árvores e o mato no terreno que um dia foi um bairro explicitam que a área de 1 milhão de m² voltou a ter como única função a especulação imobiliária.


Imagem aérea do terreno onde era, 10 anos atrás, o acampamento / Documentário "Pinheirinho dos Palmares: a luta contra injustiças"

O terreno é da massa falida Selecta S.A, que tem como proprietário o investidor do mercado financeiro Naji Nahas, conhecido por seu envolvimento em escândalos de corrupção no Brasil. Em 2004, chegou a ser preso na Operação Satiagraha.

Everton Rodrigues é diretor do documentário Pinheirinho dos Palmares: a luta contra injustiças, lançado nesse sábado (22). De acordo com a equipe de pesquisa do filme, a desocupação do Pinheirinho custou aos cofres públicos R$416 milhões. 

A construção do conjunto habitacional que abriga, desde 2016, boa parte das famílias que foram removidas custou, por meio do programa Minha Casa, Minha Vida, R$140 milhões.

"Com R$416 milhões daria para construir 3 bairros, somando 4.383 unidades habitacionais. Isso resolveria o problema da habitação em São José dos Campos", calcula Everton.

Enquanto isso, a Selecta S.A segue sem pagar impostos ao município. Relatório de devedores da prefeitura de São José dos Campos mostra que, em 5 de maio de 2021, a dívida da empresa somava R$190 milhões. 

Mas nem por isso Naji Nahas parece estar em situação desconfortável. Em setembro do ano passado, em um vídeo viralizado nas redes sociais, o empresário aparece rindo de uma imitação do presidente Jair Bolsonaro (PL), junto com Michel Temer (MDB) e Gilberto Kassab (PSD), entre outros. 

Onde estão as famílias do Pinheirinho

Depois da remoção, as famílias do Pinheirinho seguiram fazendo assembleias com cerca de três mil pessoas, todos os sábados, em um campo ao lado de onde viviam. "Não paramos a luta, foram seis anos de organização até conseguirmos as casas", conta Valdir Martins, mais conhecido como Marrom, integrante do Movimento Urbano Sem Teto (MUST).

Das 1.843 famílias despejadas do Pinheirinho, 1.461 vivem hoje no Residencial Pinheirinho dos Palmares, no bairro Emha 2, na zona sul de São José dos Campos. Outras 167 foram alocadas em apartamentos.

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"Mesmo com seu pedaço de chão e teto", descreve Everton Rodrigues, "moradores do Pinheirinho dos Palmares vivem problemas como os de qualquer outra periferia do Brasil". 

"A região é distante do centro, o transporte público não é de qualidade e no bairro ainda não tem posto de saúde nem praça pública", ilustra o diretor do documentário.

Entre as cerca de 200 famílias que, por questões burocráticas, não foram contempladas no programa habitacional, algumas vivem em outras ocupações urbanas. 

É o caso de Elisângela, que hoje é uma das coordenadoras da Ocupação Quilombo Coração Valente, organizada pelo movimento Luta Popular em Jacareí (SP) desde 2018. 

Emblemático

Autor de Movimento social, cotidiano e política: uma etnografia da questão identitária dos sem-teto, o antropólogo Inácio Dias de Andrade fez sua dissertação sobre o Pinheirinho. 

Entre os fatores que explicam a dimensão que o caso alcançou, Inácio elenca dois que lhe parecem principais.

O primeiro é a magnitude do acampamento. "São José dos Campos tem hoje cerca de 730 mil habitantes. Ali viviam aproximadamente oito mil pessoas. Estamos falando de mais de 1% da cidade só nessa ocupação", ressalta.

"Desde o início a comunidade foi organizada de acordo com o que precisavam e gostariam de ter. Nos lotes de 10m por 25m, muitos plantavam mandioca, tinham pomares", descreve Dias. "Dividem ruas, separam praças, rotatória, tinha uma área de proteção ambiental", rememora. 


A ocupação do Pinheirinho, antes de ser removida / Roosevelt Cássio / Sindicato dos Metalúrgicos de SJC

Distribuído em 14 setores - cada um com uma coordenação própria, composta majoritariamente por mulheres - o Pinheirinho manteve ao longo de seus oito anos uma dinâmica organizativa de cerca de três reuniões semanais.

"Nas terças-feiras cada um dos setores se reuniam. Nas quintas era formação política. E aos sábados, assembleia", relata Marrom. "Politicamente, quem vivia no Pinheirinho ficou muito bem informado. A gente recebeu visita de pessoas de mais de 48 países", conta. 

Para além de seu tamanho e organização, Inácio destaca a relevância do acontecimento num momento de virada dos debates políticos nas redes sociais naquele início de 2012.

"O Pinheirinho foi um dos primeiros eventos no Brasil que teve essa repercussão polarizada na internet. Foi um experimento do que viria a ser 2013", avalia Dias, se referindo às jornadas de junho do ano seguinte quando, tendo como estopim a luta contra o aumento da tarifa do transporte, centenas de milhares de pessoas tomaram as ruas em todo o país.

O despejo

Por meio do Facebook, a mídia social mais usada na época, era possível acompanhar a escalada da tensão com as idas e vindas judiciais em torno da iminência da desocupação. 

Entre os fatos que tiveram repercussão, houve o sobrevôo de um helicóptero da PM que jogou cinco mil panfletos sobre o Pinheirinho, cerca de uma semana antes da reintegração. Nele, a polícia orientava os moradores a saírem por conta própria. Os panfletos foram queimados em ato público.

A imagem prévia de maior ressonância, no entanto, foi a que estampou a capa da Folha de S. Paulo e que mostrava, com escudos de plásticos e capacetes de moto, a preparação comunitária para a resistência. 


“De repente, dois helicópteros da Polícia Militar começaram a jogar bombas e a cavalaria entrou por trás", lembra coordenador da ocupação / Foto: Reprodução/CMI

Realizado de forma ilegal num domingo - reintegrações de posse, por lei, só podem acontecer em dia útil - o despejo pegou os moradores desprevenidos. Quando, às 4h, Elisângela avistou o cerco policial, saiu correndo e gritando. "Acorda gente, a polícia está tomando o Pinheirinho", conta. 

Sua pressão subiu e os joelhos dobraram. Recobrou as forças quando outro morador botou as mãos no seu ombro. "Ele disse que ia derrubar as cercas para a gente ter saída e levar os idosos para a igreja. Corri para casa, meus filhos já estavam com a mão para cima e a casa toda virada".

"As pessoas foram puxadas pelo cabelo de dentro de suas moradias. Cercaram a igreja, a nossa sede. Bomba de gás, bala de borracha. Depois queimaram nossa secretaria com toda a documentação. Foram derrubando e queimando tudo", relata Marrom.

"Aqueles cavalos levantando as patas na frente da igreja... Olha... foi terrível", lembra Elisângela, fechando os olhos. "Foram oito anos para construir nosso bairro, para perder tudo em oito segundos". 


Durante a remoção, os tratores passaram por cima das casas com todos os pertences dos moradores dentro / Sindicato dos Metalúrgicos de SJC

Ivo Teles, um morador de 70 anos, foi espancado, hospitalizado e, meses depois, morreu. Senador na época, Eduardo Suplicy (PT) colheu denúncias de estupros contra três jovens que teriam sido cometidos por policiais da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, tropa de elite da PM de São Paulo).

Acusados de abusos, tortura e omissão durante a reintegração de posse, 14 policiais foram indiciados e afastados pela Corregedoria da Polícia Militar. 

O risco de repetição

Até hoje não são raras as vezes em que, diante do risco de serem removidas, ocupações de moradia expressam, em faixas e gritos de ordem, que não querem ser um novo Pinheirinho. 

Ouvidos pela reportagem, os que viveram a experiência não descartam a possibilidade de que ela se repita, mesmo que em outras proporções, a partir do dia 31 de março. 

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"O risco existe e vai sempre existir enquanto a gente não conseguir resolver o problema fundiário do Brasil", sintetiza Inácio Dias. "Ainda mais agora, em que não há programa consistente de moradia, o desemprego e a pobreza agravados pela pandemia e uma crescente militarização da sociedade", analisa. 

Com um sorriso, Elisângela aponta para a Ocupação Quilombo Coração Valente, de onde concedeu a entrevista. "Eu sou meia maluca mesmo, porque se não fosse, depois da experiência terrível daquele despejo, eu não estaria aqui de novo", brinca: "Mas é o seguinte, enquanto houver pessoas injustiçadas sem casa, a gente segue".

 

Edição: Marina Duarte de Souza