GEOPOLÍTICA

Ucrânia aumenta tensão com Rússia para buscar apoio militar dos EUA e da Otan, diz pesquisador

Construção do gasoduto Nord Stream 2 seria um dos fatores para acirrar disputa de Kiev e Moscou

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Desde 2014, com anexação da Crimeia pela Rússia, governos ucraniano e russo trocam ameaças - Sergei Supinsky / AFP

A Ucrânia está utilizando a recente escalada de tensão com a Rússia em decorrência dos conflitos na região fronteiriça entre os dois países para negociar mais apoio dos Estados Unidos e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Essa é a opinião de Flávio Rocha, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC e membro do Observatório de Política Externa da instituição. 

Em entrevista a Opera Mundi, Rocha afirmou que o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky “tem que escalar a tensão em relação à região de Donbass [na fronteira com a Rússia] para negociar o apoio dos Estados Unidos e Europa nessa queda de braço”. 

Segundo o especialista, estas são as razões “de fundo” para a escalada do conflito, embora ele opine que nem a Rússia nem os EUA devam efetivamente apoiar o uso de força. Donbass é uma região do leste da Ucrânia majoritariamente controlada por grupos separatistas pró-Moscou que reivindicam independência desde 2014, mesmo ano em que a península da Crimeia, até então sob domínio ucraniano, se anexou à Rússia. 

Para Rocha, a Ucrânia já aceitou que a Crimeia não é mais parte do país e que, por isso, será pior se Kiev não pressionar Moscou pelo controle de Donbass, já que o próprio país e seus aliados ocidentais não reconhecem a autonomia da região. 

O ano de 2022 começou com uma escalda de tensão entre a Rússia e países do Ocidente, somada a estreitas ligações entre Zelensky e a Casa Branca, que acusaram Moscou de estar preparando uma "invasão" à Ucrânia. O presidente norte-americano Joe Biden, em conversa com seu homólogo ucraniano no dia 2 de janeiro, deu a garantia de que Washington iria “responder de forma decisiva” caso haja uma ofensiva russa sobre o país europeu. 

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Os EUA têm insistido na tese de que a Rússia planeja atacar o país vizinho, por conta de movimentações de tropas nas fronteiras. Moscou, por sua vez, reiterou em inúmeras ocasiões que nunca ameaçou a Ucrânia e que só irá utilizar a força como forma de defesa contra o expansionismo da Otan. 

"Vocês afirmam que nós temos a intenção de atacar a Ucrânia, por mais que nós já tenhamos explicado que isso não é verdade", disse o ministro das Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov, após reunião com o secretário de Estado norte-americano Antony Blinken na última sexta-feira (21). 


Com apoio da Otan, governo ucraniano militarizou sua fronteira leste com a Rússia / Anatolii Stepanov / AFP

Expansionismo da Otan para o leste


Sobre os interesses de Moscou, Rocha destaca que o Kremlin “sempre quis construir uma série de estados tampão entre a fronteira russa e os países ocidentais, que historicamente representaram uma ameaça ao seu território”. 

Entretanto, argumenta o professor, esse objetivo foi frustrado com o fim da União Soviética, em 1991, que acabou com o pacto de países que até então compunham uma aliança de repúblicas socialistas. O que sobrou foi o compromisso do então presidente George Bush que afirmou, em 1989, que a Otan não se moveria “nem um centímetro” para o leste. 

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“Mas nos anos 1990, aproveitando o enfraquecimento da Rússia, eles fizeram justamente o oposto”, pondera o professor. Desde então, ao menos 13 países passaram a integrar a aliança militar ocidental. 

Segundo Rocha, do ponto de vista estratégico, econômico e agrícola, a Ucrânia era importante para a URSS. Com a queda do bloco socialista, o país ficou abalado, já que “parte do arsenal nuclear e de projetos tecnológicos eram gestados e criados ali”.

“Isso começa a mudar quando [Vladimir] Putin chega ao poder, em 2000”, declara o especialista. Segundo ele, o objetivo do então recém-eleito presidente, aliado a uma burocracia econômica e militar, era o de tirar a Rússia do “atoleiro” e recuperar “parte da influência russa nos negócios locais e mundiais”, colocando o país no mesmo patamar dos EUA e da China. 

Nesse contexto de disputa por influência que a Ucrânia entrou em ebulição em 2014. Conflitos e manifestações pelas ruas da capital Kiev culminaram na deposição do presidente Viktor Yanukovich, próximo a Moscou e a Putin, depois que ele se recusou a assinar um acordo de associação econômica com a União Europeia. 

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A Ucrânia, então, excluiu o idioma russo como uma das línguas oficiais no país e, em resposta, a Crimeia, então península ucraniana, se anexou à Rússia - processo que contou com referendo junto à população local com 96,8% votando pela anexação. 

Processo similar ocorreu na formação das República Popular de Donetsk e República Popular de Lugansk, ambas na região de Donbass. Em 12 de maio de 2014, as duas repúblicas separatistas conquistaram a independência por meio de um referendo em que mais de 80% da população local afirmou seu desejo de não fazer mais parte da Ucrânia. 

“A Rússia reage na Ucrânia com apoio aos separatistas na região de Donbass e na separação da Crimeia'', explica Rocha. 


O secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken se reuniu, na sexta-feira (21), com autoridades russas para debater escalada militar da Otan / Jean-Christophe Bott / AFP

Gasoduto e protestos no Cazaquistão 


Outro aspecto relevante na equação geopolítica da fronteira russo-ucraniana, segundo Rocha, é o gasoduto Nord Stream 2, que foi construído para dobrar a capacidade de transporte de gás natural da Rússia até a Alemanha. O projeto foi concluído em setembro de 2021, com 1,2 mil quilômetros de extensão, desde a cidade de Vyborg, na Rússia, até Greifswald, na Alemanha. 

O atalho criado com o Nord Stream 2 pelo Mar Báltico possibilitaria um desvio de rota para a Rússia, já que com as atuais instalações o país segue dependendo da Ucrânia, da Polônia e de países bálticos, como Estônia, Lituânia e Letônia, para transferir gás para a Europa, além do fato de ter que pagar taxas a Kiev. 

Com essa nova rota de transporte, a Ucrânia poderia perder até US$ 3 bilhões por ano, já considerando as perdas que o país teve com a criação do gasoduto TurkStream, que passou a enviar gás russo para a Turquia e Bulgária.

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Para Rocha, apesar de ainda não estar em funcionamento, o gasoduto representa uma derrota para a geopolítica para Washington. “Não só o governo Trump, mas Biden também se opôs ao gasoduto. A hora que ele começar a funcionar pra valer, ele vai ser um calcanhar de Aquiles não só pra EUA e Europa, mas pra Ucrânia também”, disse. 

O professor da UFABC também elencou as manifestações que aconteceram no Cazaquistão no início do ano como um elemento importante na atual escalada de tensão entre Moscou e Kiev. O estopim para os protestos foi quando o governo do então premiê Askar Mamin anunciou uma alta no aumento do preço do gás liquefeito de petróleo (GLP), que é usado tanto nas residências como para abastecer veículos.

Com a insatisfação que se espalhou pelo país, o governo agiu rápido para tentar conter as centenas de pessoas que saíam às ruas. Algumas das medidas tomadas nesse contexto foram a renúncia do então premiê cazaque, o congelamento do preço do GLP por seis meses e o pedido de ajuda a Moscou, que enviou tropas de paz ao país por meio da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO, na sigla em inglês). 

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Rocha avalia que é importante ao Cazaquistão manter boas relações tanto com a Rússia quanto com a China, pois além da proximidade estratégica, ainda há uma dependência econômica entre os países. 

“É interessante para o Cazaquistão manter boas relações com os chineses e russos, já que o país fica exatamente no meio da rota da seda”, afirma Rocha, em referência a um novo corredor comercial e logístico, marítimo e terrestre, que tem sido desenvolvido pela China. 

Ele afirma ainda que as vantagens desta relação são “questões logísticas”, mas que casos de desestabilização no Cazaquistão como os protestos recentes também podem afetar os países vizinhos.