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Moro e a perda do anel de Giges

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Nossa sociedade historicamente aprendeu a tolerar e premiar a debilidade daqueles a quem custa obedecer aos regramentos constitucionais em nome de uma moral distorcida - Nelson Almeida / AFP
O ex-juiz paranaense tinha a certeza da impunidade

O mito do anel de Giges é provavelmente a melhor metáfora filosófica para indicar personagens do mundo real que se imaginam intocáveis, porque ocultos ao olho nu. Platão mostra, no mito, que o poder da invisibilidade pode ser devastador para quem o utiliza de forma desviada, para parecer justo sem sê-lo, sem qualquer virtude, praticando crimes com a certeza da impunidade e para adquirir mais poder.

Na nossa contemporaneidade, algumas operações ditas de combate à corrupção, por invocarem na sociedade um correto desejo de justiça social contra desfalques de dinheiro público, são utilizadas de forma espetaculosa, contando, em regra, com o apoio de um grande aparato midiático e uma construção de marketing, costumam desempenhar o papel do anel de Giges.

Ao alçar servidores públicos, que apenas deveriam cumprir seu dever, a uma falsa condição de heróis, terminam por ocultar suas facetas obscuras, atos ilegais e condutas ilegítimas. Por seu turno, em vaidade e arrogância extremas, eles passam a se comportar como se suas atitudes desviantes fossem invisíveis aos olhos da sociedade, que a tudo assiste e aplaude, conduzida a uma cegueira indulgente.

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Sérgio Moro foi enaltecido como herói durante a condução da operação Lava Jato, iniciada em março de 2014. Um juiz justiceiro, que na verdade descumpriu os mais elementares direitos de defesa de investigados e réus; praticou um número quase infindo de ilegalidades processuais, chegando ao limite de divulgar o conteúdo da interceptação telefônica ilegal de uma presidenta da República, pelo que recebeu uma “reprimenda” de um ministro do Supremo Tribunal Federal e devolveu um pedido de “escusas”.

Embora não tenham faltado denúncias sobre seus atos e dos seus colegas do Ministério Público Federal do Paraná, Moro passou incólume pelos seus crimes até ver reconhecida sua parcialidade pelo Supremo Tribunal Federal nas ações contra o ex-presidente Lula, no ano de 2021.

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Moro tinha a certeza da impunidade.

Até então, abusou de todos os limites possíveis. Conduziu processos penais tirânicos e fraudulentos, virou ministro de Bolsonaro tendo aceitado o convite ainda no cargo de juiz, se vendendo como fiador moral daquele que lhe devia a própria eleição.

Em seguida, rompeu com seu chefe, foi trabalhar nos Estados Unidos na consultoria responsável pelo processo de recuperação judicial de empresas investigadas na Lava Jato. Ato contínuo voltou ao Brasil, filiou-se ao Podemos e se diz candidato a presidente da República, ainda tentando entoar o canto do combate à corrupção.

Esquecendo-se totalmente da afirmação de que jamais entraria para a política, Sérgio Moro assumiu finalmente, sem precisar de palavras, que sempre foi um político usando toga. Com o inconveniente de não ter mais o poder da caneta, nem de juiz, nem de ministro de Estado, e de estar exposto às regras de qualquer cidadão.

Percebendo elementos contundentes, indicadores de tráfico de influência e conflito de interesses, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União resolveram investigar a porta giratória de Moro. Suas decisões como juiz ajudaram a colocar empresas em situação financeira de derrocada. Alguns anos depois, ele passou a trabalhar na consultoria estadunidense responsável pela condução de várias dessas recuperações judiciais.

As informações oficiais até aqui dão conta de que mais de 75% de tudo o que a consultoria americana Alvarez & Marsal recebe de honorários no Brasil vem de companhias investigadas na Lava Jato. Acreditar em coincidência nesse exponencial crescimento seria tratar cidadãos como imbecis.

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De outro lado, a Alvarez & Marsal, assim como o próprio Moro, se recusam a informar o valor dos pagamentos ao ex-juiz, o que aumenta a suspeita de que as cifras são exorbitantes e não justificáveis para o trabalho feito por alguns meses que, a propósito, também nunca fora devidamente esclarecido.

No site da empresa foi anunciado, em 30 de novembro de 2020, que Moro ingressava como sócio-diretor, enquanto na seção “nossa equipe”, ele aparecia identificado como diretor-gerente. Verbalmente, contudo, a afirmação é de ele fora contratado como consultor.

A pergunta sobre os valores pagos se junta a várias outras sem resposta sobre a verdadeira relação de Sérgio Moro com a empresa de consultoria estadunidense, e foram feitas nesta terça-feira (25) pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) ao Ministério Público Federal no Distrito Federal por meio de uma Representação, solicitando investigação.

A informação é de evidente interesse público, porque pode ser prova de crime de tráfico de influência e corrupção passiva. Qualquer alegação de sigilo nesse caso sucumbe diante da necessidade de esclarecer se a ética de Sérgio Moro só ocorre quando estamos vendo o que ele deseja mostrar.

Nossa sociedade historicamente aprendeu a tolerar e premiar a debilidade daqueles a quem custa obedecer aos regramentos constitucionais em nome de uma moral distorcida.

Sérgio Moro acreditou encontrar-se acima do bem e do mal e que suas práticas fraudulentas seriam sempre tidas por normais. É desse modo que a definição da verdade e da realidade que exibe aparece cheia de justificativas e de regramentos, tais como o benefício da dúvida, que valem para ele, mas nunca valeram para os que julgava e condenava.

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A Lava Jato foi o anel de Giges de Moro. Invisível quando convinha praticou toda sorte de ilegalidades processuais. Desmascarado, resta mostrar que sua bússola moral nada condiz com a virtude que ainda tenta exibir em praça pública.

Se a corrupção do processo penal que promoveu também tinha como fim seu enriquecimento ilícito não haverá surpresas. Afinal, os defeitos de seu caráter, as limitações habituais de sua crueldade, os impulsos desonestos e o cinismo renitente se impuseram na condução da operação, e desvalorizam a dimensão de qualquer responsabilidade com a boa-fé e a moralidade que possa ter tido em princípio.

 

*Tânia Maria Saraiva de Oliveira é advogada, historiadora e pesquisadora. Membra do Grupo Candango de Criminologia da Unb - GCcrim/Unb. Membra da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia - ABJD. Leia outros textos.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante