Coluna

A luta por direitos da população trans: do velho ao novo Estado clerical

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As demandas da população trans no Brasil, a partir da abertura política se ancoram na luta por acesso à saúde, educação, ao mercado de trabalho e de viver uma vida digna - EBC
O atual discurso neofascista "Deus, Pátria e Família" se apropria de velhos preconceitos estruturais

Por Leona Lopes*

 

A história da população trans no Brasil é a história de sua perseguição, seja por vias estatais, por esquadrões da morte ou pela transfobia estrutural construtora de nossa sociabilidade. No século XVI, o Código das Ordenações Manuelinas — e depois o Código de Ordenações Filipinas — proibia qualquer forma de “inversão” sexual, incluindo o travestismo e a sodomia. O ato de “inversão” era considerado "crime de lesa majestade”, e a pena prescrita era a execução na fogueira.

Foi nesse contexto que, em 1591, o Estado clerical português fez a primeira vítima oficial de transfobia, executando Xica Manicongo, uma mulher trans congolesa escravizada que trabalhava como sapateira na Cidade Baixa, em Salvador, e que foi acusada de sodomia e de se negar a usar roupas masculinas.

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Até os anos de 1970, as travestis eram presas por andar nas ruas com “roupas de mulher”. Em 1987, diante da pandemia do HIV, o então prefeito de São Paulo, Jânio Quadros, ordenou à Polícia Civil que prendesse travestis para combater a Aids, na chamada “Operação Tarântula”. A ação durou pouco tempo, mas o estigma social de “agente transmissor” levou a ondas de pânico social e à organização de grupos de extermínio.

Entidades e representação parlamentar

Foi nesse momento — com o abandono do poder público perante um vírus que matava “indesejáveis”; com a violência policial, legada da ditadura militar; e com grupos de extermínio — que se formaram as primeiras casas de acolhida e os primeiros movimentos de dunúncia contra violências e ligados ao trabalho sexual, a exemplo da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), que atua até os dias de hoje.

A rede de organizações de pessoas trans em busca do acesso a direitos negados não parou de crescer. Em meio a anos turbulentos de aumento de perseguições, assassinatos e discriminação, conquistamos direitos e representação parlamentar, a exemplo das deputadas Erika Hilton, Erica Malunguinho e Carolina Iara, que atuam na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. 

As demandas da população trans no Brasil a partir da abertura política se ancoram na luta por acesso à saúde, à educação, ao mercado de trabalho e na luta por viver uma vida digna sem discriminação e exposição à violência.

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Discurso fundamentalista

A partir da última década, temos visto um aumento gradual da violência contra pessoas trans. Ela acompanha o crescimento de um discurso fundamentalista religioso que adentra o espaço público e o Estado. Sua expressão simbólica pode ser resumida na expressão de posse de Damares Alves como ministra de Jair Bolsonaro, “uma nova era em que menina veste rosa e menino veste azul”.

A existência das populações trans, as tentativas de projetos de educação contra a LGBTfobia implantadas a partir do governo Lula — iniciado em 2003 —, os projetos focais visando à educação e à empregabilidade da população trans como transcidadania implantado na prefeitura de São Paulo na gestão Haddad, são vistos por fundamentalistas religiosos como imposição de uma ideologia que buscaria "destruir a família".

O discurso familista da nova direita brasileira foi mobilizado para conseguir adesão ideológica ao golpe parlamentar contra a presidenta Dilma Rousseff — deslegitimada enquanto mulher e com homenagens a seu torturador —, promovendo, em seguida, a ascensão política de Jair Bolsonaro. Com tal discurso, Bolsonaro obtém a adesão de setores religiosos, que vêem políticas de não discriminação como cerceamento de sua liberdade religiosa.

A defesa do direito de discriminar e o retorno à “velha era” — em uma renovação do discurso de “Deus, Pátria e Família” — são as marcas do neofascismo, que toma um segmento da população como bode expiatório, apropriando-se de preconceitos estruturais e produzindo adesão a um governo de caráter explicitamente antipopular, ancorado na precarização de acesso a serviços públicos e na retirada de direitos da classe trabalhadora e das populações mais vulneráveis.

 

*Leona Lopes dos Santos (Leona Wolf) é psicanalista, cientista social, especialista em Direitos Humanos, Diversidade e Violência e mestranda em Economia Política Mundial pela Universidade Federal do ABC (UFABC), na qual coordena o Coletivo LGBT PRISMA — Dandara dos Santos.

**Leia outros textos da coluna Direitos e Movimentos Sociais. Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Durão Coelho