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Artigo | Honduras: resistência popular e a vitória da esperança

O caminho para a construção de um percurso que enfrente os graves problemas do povo ganha um forte impulso de esperança

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Xiomara Castro assume Presidência de Honduras e faz discurso em Tegucigalpa - LUIS ACOSTA / AFP

Hoje é o dia histórico esperado desde aquela manhã de 28 de junho de 2009. Desde então foram milhares de atos, marchas, lutas, trancamentos de estradas, mobilizações e muita luta popular. O caminho para o reestabelecimento da democracia e da construção de um percurso que enfrente os graves problemas do povo hondurenho ganha nesse dia um forte impulso de esperança.

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Um longo percurso de resistência

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O pequeno país centro-americano tem uma história que não difere muito do quadro daquela região. A independência da Espanha foi logo substituída pela presença dos Estados Unidos (EUA) e a doutrina Monroe. Ocupação por “filibusteiros”, aventureiros impulsionados por Washington e em busca de mais terras, metais e outros para a velha rapinagem.

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O século XX foi de alternância entre grupos oligárquicos em regimes ditatoriais em alternância com governos de dois partidos que se rodiziavam no poder. A luta popular sempre estrangulada com mão de ferro e muito apoio dos gringos.

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:: Com 1ª presidenta mulher, esquerda volta ao poder em Honduras e pode influenciar região ::

Os anos após a vitória em Cuba foram ainda mais duros. Os governos dos EUA criaram políticas específicas para sustentar a alternância entre o Partido Nacional e o Partido Liberal, e entre eles sempre sobrando uma ditadura militar. Os anos de 1970 a região literalmente pegou fogo: lutas revolucionárias se espalharam desde Guatemala, El Salvador, Nicarágua e tornando a região um espaço importante de luta, rebeldia e luta pela revolução social. Nesse tempo o papel de Honduras foi de servir de área de contenção e apoio ao trabalho de contra revolução organizado pelo Departamento de Estado dos EUA. Com duas bases militares dentro do país, o permanente envio de tropas, agentes e o financiamento de grupos paramilitares para treinamento em território hondurenho definitivamente converteu esse país em uma área de atuação estratégica da contra-revolução. A criação e financiamento de grupos paramilitares para treinamento no território hondurenho e incursões na Guatemala, El Salvador e Nicarágua deram a tônica dos duros anos 1980.

Um golpe patrocinado por Washington

A onda revolucionária dos anos 1960-1990 resultou em um intenso processo de lutas na região. Em Honduras foram centenas de exilados, presos, torturados e mortos para conter a resistência e a luta. O país foi inundado de armas para a contra revolução, centenas de pessoas eram pagas para atuar nos grupos mercenários. Um país devastado pela ação “estratégica” dos EUA na região e que custou muito caro.

Nos anos 1990, pós queda do Leste Europeu e da URSS, seguida de um período de arrefecimento da luta revolucionária na América Latina e uma dura onda neoliberal, o papel de Honduras deixa de ser o campo estratégico da contra-revolução. Uma das bases militares é retomada pelo país (região norte em Aguan), com o desfecho da luta armada na região e a ação dos grupos contra-revolucionários deram um impulso para uma imigração camponesa, indígena e de setores populares das áreas urbanas expulsos de EL Salvador, Guatemala e Nicarágua, setor que foi importante para a luta popular dentro de Honduras. Os efeitos contraditórios da ação na região foi permitir uma presença de centenas, milhares, de lutadores com experiência na luta revolucionária e na resistência desses países.


Com a eleição de Xiomara Castro, a esquerda volta ao poder após 12 anos do golpe de Estado / Orlando Sierra / AFP

Esse quadro resulta também no retorno de exilados, retomada de direitos básicos como a liberdade de expressão, organização e a atividade sindical combinada com a conformação de movimentos populares de luta por terra, moradia, trabalho, direitos dos povos originários, artistas e outros. Nesse quadro nasce o Copinh (conselho cívico de organizações populares e indígenas de honduras), a Ofraneh (Organização Fraterna Negra Hondurenha), o movimento estudantil, os sindicatos (especialmente o STIBYS – Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de bebidas e similares) e um destaque especial para o movimento de mulheres em um país com um machismo que consegue ser ainda pior do que o temos.

Um destaque que merece ser mencionado é que assim como o país foi uma área estratégica da contra-revolução com linha direta com o Pentágono, também foi uma região importante para as lutas na região. Foram centenas de pessoas que se somaram na luta em El Salvador, Nicarágua e Guatemala, assumindo posições de luta e solidariedade, construindo caminhos para o apoio concreto e de retaguarda para todo tipo de apoio. Mesmo sob uma asfixia política intensa, tutela militar e dois partidos completamente anti-nacionais e anti-populares se “alternando”, com mão de ferro para lidar com as lutas, não puderam controlar e conter a luta popular. Ela florescia nas entranhas de um regime brutal de força e intolerância.

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O esforço em construir espaços unitários de luta também merece um destaque. Nos duros anos do neoliberalismo e da ofensiva imperialista sem precedentes na região as forças populares conformaram instrumentos de luta unitários na luta sindical, movimentos camponeses e indígenas, de mulheres e de cultura. Nos anos 2000 conformaram a Coordenação Nacional de Resistência Popular, embrião do que seria a Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP) após o golpe e a construção do Partido Libre – Liberdade e Refundação.

Duas eleições e um golpe

Manuel Zelaya foi eleito pelo Partido Liberal e representava uma fração dentro desse partido e ousou divergir de Washington e buscar apoio na região. O ingresso na ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas), impulsionada pela Venezuela e Cuba, foi o sinal de que o caminho não seria tão dentro dos planos dos gringos.

A sinalização de ruptura com a relação de subserviência com Washington e a abertura para a defesa dos interesses nacionais resultou na articulação de forças conservadoras desde a Embaixada dos EUA em Tegucigalpa. Formado o comitê do golpe sob o patrocínio direto da embaixada.


Xiomara Castro celebra vitória para a corrida presidencial ao lado do seu esposo e ex-presidente Manuel Zelaya / Luis Acosta / AFP

A gota d'água teria sido o anuncio da presidência de fazer uma consulta à população se deveria incluir uma pergunta nas eleições gerais de novembro de 2009 com o seguinte conteúdo: “"Concorda com a instalação de uma quarta urna nas eleições gerais para decidir sobre a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte?". O golpe ocorreu horas antes do início dessa votação que apenas decidiria se deveria conter uma pergunta direta ao povo na eleição geral. Não é despropositado que tudo tenha sido monitorado e articulado pela Embaixada e a que nesse dia 27 de janeiro toma posse como presidenta foi surpreendida pouco depois das 5 da manha daquele domingo por militares com a ordem de levá-los para a Base militar de Palmerola, dos Eua (que a chamam de Soto Cano Air Base) e de lá para a República Dominicana.

Antes do golpe o embaixador dos EUA tranquilizou Zelaya de que não havia golpismo em curso. Hugo Llorens, um ex-cubano levado aos EUA pela Operação Peter Pan, com experiência na área de segurança e golpes. Foi da NSA para a América Latina, transferido para Honduras em 2008 para arquitetar o golpe de Estado, passando um tempo depois de férias nos EUA antes de ir para a missão seguinte em Kabul. Um grande articulador da contra-revolução e do aparato paramilitar dos EUA.

Desde aquela manhã de domingo de junho de 2009 foram mais de 150 dias de marchas diárias só interrompidas aos domingos para Assembleias locais. Muita luta, organização e resistência. O golpismo resultou em agravar a crise econômica no país, agravou a situação da violência com grupos de jovens (Maras em San Pedro Sula e Tegucigalpa) e com uma sociedade altamente armada e com muito desemprego uma parte foi recrutada para atuar na segurança privada e também em grupos paramilitares. Honduras se tornou um dos 5 países mais violentos do mundo, com a situação agravada pelo golpismo que perseguiu, prendeu e executou centenas de lideranças populares.


No dia 28 de novembro, cerca de 5,1 milhões de hondurenhos foram convocados a renovar os poderes Legislativo e Executivo / Orlando Sierra / AFP

Mas a resistência não arrefeceu. Percorreu mais de uma década por todos os caminhos da luta popular. Marchas multitudinárias, organização popular nos bairros, no campo e na cidade, de jovens, mulheres, trabalhadores, artistas; atos, ocupações, centenas de assembleias desde a base, programas de rádio e uma forte ação na batalha ideológica (dois dos programas com maior audiência eram da resistência: Rádio Progresso, com o programa Noti Nada e o de entrevistas com Felix Molina).

Desde 2009 foram muitos os percursos do golpismo. Eleições fraudulentas, violência sistêmica a partir do aparato repressivo estatal e com apoio dos grupos paramilitares privados, patrocinados pela oligarquia local. Entre diatribes inconsequentes de partidos claramente anti-nacionais e anti-populares, os grupos de grandes proprietários e milionários de Honduras se regozijavam em uma farra cotidiana com os piores salários pro povo, a força para reprimir as pequenas ações de organização popular, a execução regular de lideranças, com destaque para a figura histórica de Berta Cáceres, executada em março de 2016 a mando da DESA, conforme reportagem do Intercept e a implação de uma distopia centro americana radical, brutal e que o povo só cabia pagar toda a conta.

Um percurso longo alcança as eleições de 2021. A vitória foi a demonstração de acúmulo de forças e a derrota explícita do golpismo fracassado e que arruinou o país. Os intentos tradicionais de fraude sucumbiram. A ampla maioria de um pais mergulhado na crise, com décadas de resistência, com centenas de mártires caídos na luta, com uma violência profunda e os indicadores sociais mais duros não fizeram o povo baixar o ânimo de luta e resistência. Foi esse ânimo e disposição de luta que foram vencedores em novembro e tomam posse nesse histórico dia 27 de janeiro.

Não nos esqueçamos que os EUA seguem com a base militar, uma influência grande na oligarquia e a embaixada já articula ações anti populares desde antes da posse. Nenhuma confiança que Washington mudou a avaliação sobre a América Central e que fará de tudo para destruir essa chama de esperança. A partir de hoje somente com essa energia acumulada da luta popular para sustentar um governo popular e que consiga construir um caminho autônomo em relação ao imperialismo dos EUA e em aliança com os demais povos da América Latina.

Que as organizações populares, partidos do campo progressista em especial o Libre, a força contundente dessa resistência popular consigam construir uma relação de pressão para as mudanças, sustentação contra os esforços golpistas já atuantes e tenham muita capacidade de forjar um futuro que combine a luta popular, a iniciativa das massas, a unidade da resistência e a combinação das lutas de massa com a atuação eleitora. Que o povo hondurenho nos ajude a encontrar caminhos de resistência e luta popular pelo exemplo e disposição de luta. Que a esperança se faça matéria e ação. Viva esse dia da vitória do povo de Honduras!

*Ronaldo Pagotto é advogado. Integra o Projeto Brasil Popular e a Consulta Popular – Um Passo a Frente. Em 2010 e 2011 acompanhou em quase 80 dias a resistência popular hondurenha.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

 

 

Edição: Vivian Virissimo