A atuação de Jair Bolsonaro contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no sul da Bahia contou com a presença do secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Nabhan Garcia, e do presidente do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Geraldo Melo Filho.
Além da equipe federal, Bolsonaro conta com um "soldado" local para executar seu plano na região. Trata-se de Elivaldo da Silva Costa, conhecido como Liva, ex-militante do MST que se tornou aliado de Bolsonaro.
Liva utilizou no acampamento Fábio Henrique o método de aterrorizar e cooptar moradores do MST, o mesmo método já testado por ele em outras duas áreas: os assentamentos Jaci Rocha e Rosa do Prado, ambos no município de Prado, no sul do estado.
Este último, o Rosa do Prado, é onde vive atualmente o ex-assentado do MST, recém-convertido bolsonarista e agraciado com o títuto de domínio (TD) de sua terra, entregue pelas mãos do próprio presidente da República, em cerimônia realizada em setembro de 2021, na Bahia.
Esta é a segunda reportagem de uma série que o Brasil de Fato publica com exclusividade nesta quarta-feira (2). Para ler as outras reportagens da série, clique nos links abaixo:
Reportagem 1: Exclusivo: como Bolsonaro usou o governo para apoiar grupo que abriu guerra contra o MST na BA
Reportagem 3: Conheça o grupo político apoiado por Bolsonaro para atuar contra o MST na Bahia
Nabhan e Incra
Em outubro de 2019, Liva se proclamou presidente da Associação dos Pequenos Produtores Rurais do assentamento Rosa do Prado, destituindo do cargo sua presidenta legítima, Joceli Rocha dos Santos. A entidade responde formalmente pelo assentamento.
Quase um ano depois, em setembro de 2020, Nabhan Garcia realizou visita oficial ao local, representando a Secretaria de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, o que acabou por respaldar a suposta liderança de Liva.
Além do pecuarista, esteve presente na mesma ocasião o presidente do Incra, Geraldo Melo Filho, e o diretor da Câmara de Conciliação Agrária do Incra, João Pedro Ribeiro Sampaio de Arruda Câmara.
Ao chegar ao Rosa do Prado para falar com os assentados, a comitiva do governo federal procurou Liva e ignorou Joceli Rocha dos Santos, que disputa, com ele, a presidência da associação.
Diante dos moradores, Garcia discursou: “Estamos aqui para trabalhar dentro da lei e da ordem, no sentido de proporcionar a segurança que todos merecem. Mas não podemos permitir que os domínios do Estado brasileiro sejam suplantados com a ingerência de quem quer que seja, quando, de fato, a administração do local é de responsabilidade do Incra. Afinal, a gestão dos assentamentos da reforma agrária é única do governo federal e exclusiva da instituição Incra”.
Na frente de Garcia e Melo, Liva celebrou o encontro: “É tudo que a gente esperava, que o Incra pudesse estar aqui fazendo este trabalho e agora está acontecendo o que a gente espera há muito tempo”.
Assista também:
Destituição da presidenta
Joceli Rocha dos Santos era a presidenta da Associação dos Pequenos Produtores Rurais do assentamento Rosa do Prado.
Juridicamente, é ela quem poderia responder pela área ocupada pelo MST. No entanto, em 18 de outubro de 2019, Liva convocou uma assembleia extraordinária para deliberação de destituição da diretoria e nova eleição.
Em 27 de outubro de 2019, nove dias depois, a assembleia ocorreu, sem o quórum mínimo exigido e sem a presença da direção.
Na ocasião, Liva se autoproclamou o presidente da Associação dos Pequenos Produtores Rurais. Desde então, a área está sob duplo comando, provocando um racha dentro do assentamento.
Liva afirma que a transição foi legal, que 93% do assentamento apoia sua gestão à frente do grupo e que também pode ser destituído, caso não agrade.
Joceli Rocha solicitou à Justiça que reconheça a anulação da assembleia. Na ação, a presidenta da associação anexou oito boletins de ocorrência (BOs) registrados na Delegacia Territorial de Alcobaça, da Polícia Civil, em que assentados relatam ameaças e casos de violência cometidos por Liva e seus comparsas.
Em um dos boletins, com data de 9 de janeiro de 2020, Joceli Rocha afirma que Liva e “seus companheiros” estiveram em seu lote e a ameaçaram, dando um prazo de dois dias para se retirar da presidência da associação e entregar todos os bens da entidade, como maquinários e tratores.
Assentamento sob terror
Relatos de animais torturados, roubo de produção agrícola, homens armados e ameaças são comuns nos boletins. De acordo com os diversos registros, o bando, liderado por Liva, abordava os assentados exigindo que abandonassem o MST e apoiassem a nova direção da Associação dos Pequenos Produtores Rurais da Rosa do Prado.
Em um dos casos, um produtor rural do assentamento conta que Liva e o grupo estiveram em seu lote e o ameaçaram. Diante da negativa em abandonar o movimento, passaram a torturar um de seus porcos e cortaram uma de suas orelhas, com o animal ainda vivo.
Versão de Liva
Liva afirma que as denúncias teriam sido orquestradas pelo MST para prejudicá-lo. “Não há uma única queixa contra mim de pessoas que não sejam do movimento, é uma forma de tentar me atingir”, argumenta.
O bolsonarista afirmou que seu grupo também registrou “inúmeros boletins” contra o MST.A reportagem solicitou a Liva que enviasse os registros com as denúncias para que fossem publicados. Até o fechamento da matéria, nenhum boletim de ocorrência havia sido enviado ao Brasil de Fato.
Acesso privilegiado
Em entrevista ao Brasil de Fato, Liva negou que tenha acesso privilegiado ao governo federal, ao Ministério da Agricultura, ao Incra ou a Nabham Garcia. “Fui procurado como representante da associação”, argumenta.
Eliane Oliveira, dirigente estadual do MST no sul da Bahia, conta que, desde “meados de 2020”, o Incra e a Secretaria de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura têm dialogado apenas com o grupo dissidente, mostrando aos assentados e acampados que privilegiará os sem-terra que romperem com o MST.
“Nabhan é quem representa o governo. Ele vindo na região, a partir de tudo que Liva já vinha colocando para os assentados e para toda a região, só fez legitimar a posição de Liva. O objetivo é enfraquecer o MST e desarticular suas lideranças”, avalia.
Força Nacional
A visita de Nabhan Garcia ocorreu uma semana após o governo federal enviar a Força Nacional para o sul da Bahia, sob argumento de que a corporação seria necessária para garantir a segurança das equipes do Incra, durante visita técnica aos assentamentos do MST na região.
O envio da tropa para o território baiano é resultado de um imbróglio que teve início na manhã de 27 de agosto de 2020, quando duas viaturas da Polícia Militar do Estado da Bahia (PM-BA), escoltando um terceiro veículo branco, se aproximaram da entrada do assentamento Jaci Rocha, do MST, em Prado.
A 100 metros da porteira, os militares foram barrados por assentados que vivem na área e forçados a explicar o objetivo da operação.
“A gente tem um representante do Incra aqui. Libera aqui a passagem. Se afastem. Quando ele estiver subindo, fala com vocês”, pede um dos militares, como mostra um vídeo gravado por membros do movimento.
Quando os assentados solicitaram que os policiais apresentassem um documento que explicasse a operação, ou que o servidor do Incra descesse do veículo para se apresentar, a comitiva recuou e abandonou a área, desistindo de entrar no Jaci Rocha.
Em nota, o Incra informou que o servidor era o superintendente regional do instituto na Bahia, Paulo Emmanuel Macedo de Almeida Alves. “Ele apresentou-se na chegada ao assentamento Jaci Rocha e portava o crachá funcional de identificação”.
Segundo o movimento, o representante do governo federal não desceu do carro em nenhum momento.
Fogo no assentamento
Na noite anterior, dia 26 de agosto de 2020, o casal Aparecida da Silva Souza dos Santos e José Carlos Bispo dos Santos, que foi expulso do assentamento Jaci Rocha no dia 31 de julho de 2019, teria, de acordo com o MST, retornado à área com outras 13 pessoas. Entre eles, estaria Liva. O grupo ateou fogo em suas antigas casas para criminalizar o movimento.
O Brasil de Fato teve acesso à ata da reunião que resultou na exclusão de Santos e Aparecida da área. Os motivos apontados para a expulsão são: não residir com sua família no assentamento, após a conclusão das moradias; ausentar-se por mais de 30 dias do assentamento, sem autorização ou motivo justificado; porte de arma de fogo no assentamento; e não comparecimento de três dias consecutivos e seis dias alternados ao trabalho coletivo.
As razões que não constam na relação da ata, mas que se tornaram preponderantes para a decisão, de acordo com integrantes da direção do movimento, são o envolvimento do casal com o tráfico de drogas no sul da Bahia e o roubo de gado dos produtores rurais da área.
O incêndio nas casas dentro do Jaci Rocha e a operação da Polícia Militar barrada por militantes do MST foi suficiente para que, em 2 de setembro, o governo federal, após intervenção do então ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, confirmasse o envio da Força Nacional aos municípios de Prado e Mucuri.
Ação desproporcional da Força Nacional
A decisão surpreendeu o governo da Bahia, que considerou a presença da tropa um excesso, já que o episódio era uma contenda local, que não levava risco à vida dos baianos que vivem no sul do estado.
Em 6 de setembro, Liva procurou a imprensa local para defender o governo federal pela decisão apontada como precipitada por especialistas.
“Conseguimos trazer a Força Nacional para atuar em dois assentamentos aqui, no Prado (Rosa do Prado e Jaci Rocha) e em quatro assentamentos em Mucuri”, afirmou Liva.
Contato de Brasília
Na entrevista, o ex-militante do MST admitiu ser o contato de Brasília na região e ter trabalhado pela presença da tropa nas áreas do movimento.
“Estamos protestando desde o ano passado, e, de lá para cá, as coisas melhoraram, conseguimos avançar. Estamos em contato com o Ministério da Agricultura, com o presidente do Incra Nacional e algumas forças, inclusive com apoio da imprensa, que vem esclarecendo a verdade”, explicou Liva.
O governo da Bahia foi ao Supremo Tribunal Federal pedir que a presença das tropas no local fosse suspensa. Duas semanas depois, em 18 de setembro, o ministro Edson Fachin determinou a retirada da Força Nacional do local.
Outro lado
O Brasil de Fato procurou a Secretaria de Assuntos Fundiários, via Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Até o fechamento da matéria, a pasta não havia enviado respostas para os questionamentos da reportagem. Caso o faça, o texto será atualizado.
Após contato por telefone e email com a reportagem, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia não se manifestou.
Edição: Leandro Melito e Rodrigo Durão Coelho