7 de fevereiro

No Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, escritora macuxi defende que literatura é ativismo

"Literatura coloca como protagonista o sujeito indígena que foi posto à margem durante cinco séculos", diz Julie Dorrico

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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A data foi estabelecida pela Lei 11.969/2008 e rememora o dia de falecimento, em 1756, do guerreiro guarani Sepé Tiaraju - Arquivo Pessoal

O 7 de fevereiro – Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas - chega em 2022 em momento de embates que deverão se acirrar ao longo do ano. Tomando formas específicas do atual contexto, as pautas dos povos originários envolvem, no entanto, questões que se arrastam ao longo dos cinco séculos de colonização.  

A escritora e pesquisadora macuxi Julie Dorrico explica que, intrinsecamente vinculada às lutas dos povos originários, a literatura indígena aborda, em forma de arte, “conflitos que envolvem ser indígena hoje no Brasil”. "Passamos essa mensagem de que os povos indígenas existem, que têm subjetividades e direito à soberania, autonomia, terra, narrativas ancestrais e culturas próprias", completa.

Os conflitos, como se sabe, não cessam há pelo menos 522 anos. Movimentos indígenas recentemente ganharam uma queda de braço com o órgão do governo federal que supostamente deveria defender seus direitos. 

:: Quem são os grupos indígenas isolados brasileiros e quais são os direitos deles ::

Depois que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) excluiu cerca de 239 terras indígenas (TIs) não homologadas das suas atividades de proteção, foi por meio do Supremo Tribunal Federal (STF) que 15 organizações indígenas conseguiram suspender os atos administrativos do órgão, no último dia 1º de fevereiro. 

E é exatamente o Supremo que deve ser palco de um dos mais importantes embates das lutas indígenas no país nesse ano eleitoral. 

No dia 23 de junho, o STF voltará a analisar o Marco Temporal. Se aprovado, as únicas terras que poderão ser reivindicadas como território tradicional indígena serão aquelas ocupadas até a data da promulgação da Constituição, em 1988. O julgamento, iniciado em setembro do ano passado com mais de 6 mil indígenas acampados em Brasília, está empatado.  

Enquanto isso, retomadas indígenas seguem se espalhando pelo país, resistindo a sistemáticas agressões – como é o caso de denúncias feitas contra ações de desmatadores na retomada Guarani Mbya em Canela (RS) e contra ataques praticados por seguranças privados contra os Guarani e Kaiowá da retomada Aratikuty em Dourados (MS).  

:: Retomadas em todo o país: indígenas ocupam suas terras ancestrais, ainda que sob ataque ::

Para abordar como essas questões são elaboradas por indígenas em todo o território nacional também de forma literária, o Brasil de Fato conversou com Julie Dorrico.  

Doutora em teoria da literatura pela PUC-RS, ela é autora do livro Eu sou Macuxi e outras histórias, publicado pela editora Caos e Letras. Além de administrar o perfil @leiamulheresindigenas no Instagram, Julie é curadora da I Mostra de Literatura Indígena: o território das palavras ancestrais, inteiramente online.  

Confira a conversa na íntegra: 

Brasil de Fato: Julie, você pode contextualizar a emergência e a consolidação da literatura indígena brasileira? Em um artigo em que você é co-autora, vocês falam dos anos 1990 como o período em que isso acontece. 

Julie Dorrico: O surgimento da literatura indígena para a sociedade brasileira está vinculado à conquista dos direitos constitucionais. Quando isso acontece, os escritores indígenas que já faziam poesia na década de 1970 e 1980 começam a atuar na cultura como uma forma de mostrar para a sociedade brasileira que eles não iam se integrar. Integração aqui num contexto de que a identidade indígena iria desaparecer e só sobreviveria a cidadania brasileira, como era pregado pela política indigenista.  

Na década de 1990 temos alguns atores indígenas como Daniel Munduruku, Kaká Werá, Olívio Jekupé e Marcos Terena, que passam a publicar livros. Isso foi crescendo.  

Atualmente, temos cerca de 60 autores, acredito que até mais, e não param de surgir. Passamos essa mensagem de que os povos indígenas existem, que têm subjetividades e direito à soberania, autonomia, terra, narrativas ancestrais e culturas próprias, que podem coexistir com essa cultura dominante.  

Ressalto a Lei 11.645/2008, que potencializou o estudo das histórias e culturas indígenas nas salas de aulas. E também esse movimento dos próprios escritores em cobrar das editoras que essas temáticas publicadas também sejam de autoria indígena.  

Por que você defende que a literatura indígena é ativismo? 

Porque protagoniza esse sujeito indígena que foi posto à margem durante cinco séculos. Ao ser protagonista, ele expõe essa face das culturas dos povos indígenas que existem no Brasil e que foram silenciadas.   

Você é curadora da I Mostra de Literatura Indígena: o território das palavras ancestrais que está no site do Museu do Índio, da Universidade Federal de Uberlândia. Do que se trata essa exposição? 

Os povos indígenas têm territórios para além da fronteira estabelecida na divisão dos estados. No caso do povo Macuxi, habitamos o estado de Roraima, mas estamos na fronteira com a Guiana e a Venezuela. Vários povos se situam nesse contexto transfronteiriço. 

Então pensamos nessa exposição para apresentar escritores indígenas a partir do mapa do Brasil, mas de forma mais alinhada com a própria constituição dos povos. Mostramos os escritores indígenas por biomas, mais próximos dos seus etnoterritórios. Então, no site vocês vão ver Amazônia, Cerrado, Caatinga, etc.  

A metodologia usada nessa curadoria foi, então, mostrar o rosto do escritor indígena, a minibio dele, a obra e um trecho da obra. E mostrar, assim, também a diversidade de linguagens. Se trata de mostrar o conflito que é ser indígena no Brasil. 

E se tiver que escolher alguns, quais livros de autoras e autores indígenas você indica? 

Vou puxar um pouco para a minha farinha! A gente está no centenário da Semana de Arte Moderna e existe um personagem que é muito famoso na literatura, o Macunaíma, do Mário de Andrade.  

Muita gente não sabe, porém, que o Macunaíma é uma entidade das culturas dos povos que habitam a região de Roraima. São os povos Macuxi, Wapichana, Taurepang, Ingarikó e Patamona. Esses escritores trazem de novo para a cena literária, para a sua escrita, o Makunaimã. Que é como falamos na nossa língua. Então o Macunaíma é o personagem e o Makunaimã é o vô.  

Entrem no site para encontrar esses autores, está fácil agora. Procurem o livro da Sony Ferseck, que se chama Movejo. Busquem o Kamuu Dan Wapichana, que tem uma obra chamada Presente de Makunaimã, é literatura infantil e é simplesmente maravilhosa. Uma das primeiras obras que denunciam a perversidade do agrotóxico sobre as plantações e territórios indígenas, é a coisa mais linda. O Gustavo Caboco também, que é Wapichana. E me leiam também, procurem neste site.

 

Edição: Monique Santos