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Janela para o Oriente: Rússia estreita laços com China e busca minar hegemonia dos EUA 

Rússia e China firmam parceria estratégica sem precedentes em meio à crise entre Moscou e Ocidente

Rio de Janeiro (RJ) |

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Presidente da Rússia, Vladimir Putin, se reúne com o líder chinês, Xi Jinping, em visita oficial a Pequim, em 4 de fevereiro de 2022. - Alexei Druzhinin / Sputnik / AFP

Enquanto a Rússia se prepara para enfrentar possíveis novas sanções do Ocidente em meio a escalada de agressões diplomáticas em torno da Ucrânia, Vladimir Putin movimentou o xadrez geopolítico e se reuniu com vários chefes de Estado nas últimas semanas. Apesar de encontros oficiais com líderes de França, Argentina e Hungria, o aperto de mãos mais importante ocorreu durante a estadia de Putin em Pequim - evento que pode ter sido um marco dentro da política internacional atual.

Na última sexta-feira (4), o presidente russo, Vladimir Putin, participou da abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim e aproveitou a visita à China para fortalecer os laços entre os dois países. Em uma declaração conjunta com o presidente chinês, Xi Jinping, os líderes estreitaram suas posições no plano das relações internacionais, com críticas aos EUA e a defesa de um mundo "multipolar". Foi a primeira vez que o presidente chinês recebeu um chefe de Estado em Pequim desde o início da pandemia. 

A aproximação entre Rússia e China tem se intensificado nos últimos anos e tem como pano de fundo a relação de Moscou e o Ocidente, em particular os EUA, que vêm classificando diretamente a Rússia e a China como seus principais oponentes no cenário mundial, exercendo forte pressão política e econômica. É o que afirma o cientista político Khalatyan Hayk em entrevista ao Brasil de Fato, destacando que, “afinal, Moscou e Pequim lutam por um mundo multipolar, que ameaça o status dos Estados Unidos como potência e líder mundial”.

“É por isso que as posições de Moscou e Pequim são próximas em tantos assuntos da agenda internacional, e naquelas questões em que os países tradicionalmente assumem uma posição diferente, eles se abstêm de críticas abertas à política do parceiro”, argumenta.

O cientista político cita como exemplo o fato de que a China, que tradicionalmente defende o princípio da integridade territorial, não considerando a independência de Taiwan, Tibete e dos Uigures, mas se abstém de criticar a Rússia por ações como de incorporar a Crimeia ao seu território e de defender separatistas de Donbass – no leste ucraniano – e da Abecásia e Ossétia do Sul – na Geórgia.

Neste caso, o que une a Rússia e a China é a oposição às “revoluções coloridas”, termo atribuído a manifestações políticas de caráter pró-EUA que ocorreram no território das ex-repúblicas soviéticas. Este foi outro ponto destacado na declaração conjunta de Putin e Xi Jinping. No comunicado russo-chinês, foi ressaltada a necessidade de combater “interferências de forças externas nos assuntos internos de países soberanos sob qualquer pretexto".

Um exemplo recente e concreto deste alinhamento foi a onda de protestos que que eclodiu no Cazaquistão, país que faz fronteira tanto com a Rússia quanto com a China, em janeiro deste ano. Na ocasião, a diplomacia chinesa apoiou a incursão da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), liderada pela Rússia, para controlar os distúrbios no país. A rápida ação militar da organização foi vista como uma demonstração de força em oposição à influência da Otan.


Blindado da Organização do Tratado de Segurança Coletiva no Cazaquistão / AFP

Nova ordem mundial?

Classificada por Putin e Xi como uma parceria estratégica que "não tem limites", a aproximação entre os dois países pode não só consolidar uma cooperação bilateral, mas redesenhar o equilíbrio de forças no cenário internacional.

Na medida em que Moscou pode receber sanções mais duras do Ocidente contra setores de sua economia por conta da crise na Ucrânia, uma reorientação para o Oriente parece uma saída estratégica a fim de estabelecer uma sólida aliança para antagonizar os EUA e, em extensão, a Otan.

O professor de Relações Internacionais da Universidade Estatal do Extremo Oriente, Andrey Gubin, em entrevista ao Brasil de Fato, lembra que, ainda sob a presidência de Donald Trump, os EUA publicaram a sua versão da estratégia nacional de defesa, que classificava a Rússia e a China como países revisionistas, cujo objetivo no cenário internacional seria derrubar a hegemonia global norte-americana. Gubin diz que isso naturalmente justifica a tese estadunidense de que a “Rússia e a China estariam se unindo contra o Ocidente, contra os EUA”.

Ele observa, no entanto, que os líderes de Rússia e China constantemente rechaçam esta tese e argumenta que a “posição de hegemonia norte-americana, como um líder global, já não é tão óbvia hoje”. De acordo com o pesquisador, “isso está ligado ao crescimento da China, está ligado ao crescimento da Índia e a outros países que talvez não queiram depender tanto dos EUA”.

“Quanto mais vai tendo independência no mundo, menor é o desejo de depender dos EUA, que é algo que não lhes agrada. Portanto talvez os principais revisionistas sejam justamente os EUA, e de nenhuma maneira eu julgo isso, é normal quando alguém perde a sua posição forte e quer tê-la de volta”, acrescenta.

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Especialista nas relações russo-chinesas, Gubin diz que “a ordem mundial está mudando não tanto por causa dos esforços da Rússia e da China, mas graças a um processo histórico objetivo sobre o qual é difícil influenciar”.

Ele observa que a China não exerce muita interferência nas relações entre Moscou e Europa, ou na agenda russo-ucraniana. No Oriente Médio, no que diz respeito à Rússia, a China tem uma atuação discreta.

Ao mesmo tempo, o professor da Universidade Estatal do Extremo Oriente afirma que a aproximação com a China não está diretamente relacionada com a tensa relação de Moscou com a Europa, pois seriam dois processos paralelos.

“Realmente a Rússia e a China têm muito em comum, inclusive sobre a agenda europeia, mas não há uma política unificada sobre a Europa entre a Rússia e a China. Há uma visão comum sobre a criação de uma grande Eurásia. Existe a concepção de uma grande parceria euroasiática”, disse.

Já o cientista político Khalatyan Hayk afirma que a guinada da Rússia para o Oriente, em particular para a China, também se deve à pressão de sanções dos Estados Unidos e de seus aliados europeus. Para ele, o objetivo da Rússia e da China é justamente a formação de uma nova ordem mundial: “um mundo multipolar sem hegemonia dos EUA”.

“É por isso que a declaração de Vladimir Putin e Xi Jinping fala em fortalecer a OTSC e intensificar o trabalho para vincular a União Econômica Eurasiática à iniciativa chinesa da Nova Rota da Seda [megaprojeto chinês que financia e constrói infraestrutura como portos, estradas, ferrovias, redes de telecomunicações e aeroportos em dezenas de países]”, diz Hayk.  

O pesquisador acrescenta que essa guinada sugere que “Moscou e Pequim não querem se limitar a um formato bilateral”, e abrem espaço para se juntarem a outros grandes países eurasianos, que também “sofrem pressão dos Estados Unidos ou defendem um mundo multipolar”.

Edição: Thales Schmidt