Coluna

Passados 2 anos da pandemia, o cerco à Amazônia continua

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Ronda da Amigos da Terra e parceiros na região de Santarém (PA) mostrou que pescadoras e pescadores artesanais correm risco caso avancem projetos de portos - Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil
Região é uma das últimas fronteiras no país com mata e biodiversidade original preservadas

A federação internacionalista ambientalista Amigos da Terra, por meio do seu membro brasileiro, a Amigos da Terra Brasil, atua há anos em aliança com movimentos sociais, territórios e comunidades. Junto a muitos parceiros, estamos na luta popular contra o desmatamento, em defesa da água, da biodiversidade, da soberania alimentar dos Povos da Floresta e dos direitos dos povos - indígenas, quilombolas e camponeses e urbanos - em seus territórios na Amazônia. 

Toda a solidariedade e organização é necessária frente ao avanço do agronegócio, da mineração e dos grandes projetos de infraestrutura exportadora de commodities na região amazônica, uma das últimas fronteiras no país com mata e biodiversidade original preservadas pelos povos que a habitam, conhecem, respeitam e que seguem resistindo à destruição do capital. O compromisso permanente de buscar caminhos solidários e manter o apoio à organização dos povos em resistência às pandemias do neoliberalismo e na luta por justiça ambiental nos moveu a revisitar as situações denunciadas pelas vozes destes territórios, passados dois anos da conjuntura da covid, agravada pelas mazelas de um governo genocida que chega ao fim neste ano de 2022.

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Em meados de 2020, publicamos, em conjunto com a organização Terra de Direitos e sindicatos de trabalhadores rurais da região de Santarém, no Pará, um documentário em três idiomas intitulado "A História do Cerco à Amazônia". Contamos com os importantes apoios do Grupo Carta de Belém (GCB), da Jornada Continental pela Democracia e Contra o Neoliberalismo, da rede Jubileu Sul e dos grupos da Federação Amigos da Terra Internacional para produzi-lo. Neste material, denunciamos como os territórios amazônicos vêm sendo transformados em campos de cultivo para a expansão da monocultura da soja, principal commodity agrícola produzida para exportação, destinada especialmente à alimentação animal em outros países. 

Boa parte da cadeia global de produção da soja é controlada por grandes empresas transnacionais como Bunge, Cargill, Monsanto, Bayer, Syngenta entre outras. E está baseada no processo de grilagem de terras no Brasil, utilizando as queimadas e o desmatamento para “limpar” a terra, primeiro para a criação de gado e posteriormente para o plantio, e logo aumentando a pressão por estradas, portos e outros grandes empreendimentos para o seu escoamento. Também revelamos os impactos nas comunidades que residem ali há décadas sobrevivendo de suas lavouras, do extrativismo sustentável de produtos da floresta e da pesca. Quilombolas e trabalhadores rurais relataram a escalada de ameaças de serem expulsos de suas terras e os prejuízos econômicos em sua produção devido ao uso de agrotóxicos pelos fazendeiros e grileiros no entorno, bem como seus efeitos na saúde e no meio ambiente. 

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A instalação da cadeia da soja na região de Santarém, no Pará, ocorre por completo. Empresas do agronegócio, com apoio das prefeituras municipais e do governo paraense, buscam implementar estrutura portuária privada para escoar a produção, não apenas da região amazônica, mas também do Centro-Oeste. A multinacional Cargill já tem um porto graneleiro na cidade de Santarém, o qual foi construído sem a realização de estudos de impacto ambiental, em cima de uma área de sítios arqueológicos. O porto causou danos ambientais na Praia de Vera Cruz e afetou a sobrevivência econômica de pescadores e moradores, que tiveram que deixar de se banhar no local. 

Um segundo projeto, da EMBRAPS (Empresa Brasileira de Portos de Santarém), no Rio Maicá, teve processo de licenciamento ambiental suspenso pela Justiça após as comunidades atingidas denunciarem que sequer teriam sido consultadas. Quando estivemos na região para a produção do documentário, no final de 2019 e antes do início das medidas de isolamento social impostas pela pandemia, em 2020, pelo menos mais outras duas empresas tinham interesse em instalar portos privados na área. Se já não bastasse a pressão do poder econômico sobre as comunidades e o meio ambiente, o agronegócio emprega a violência contra as lideranças e quem mais ousar resistir, até mesmo ameaçando de morte - e matando - quem não se cala.

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Passados quase dois anos dessa ronda da Amigos da Terra Brasil e parceiros na Amazônia, os relatos das comunidades locais revelam que tudo o que estava acontecendo naquela época se mantém e que a pressão sobre os territórios está aumentando na região. Os garimpos ilegais, o desmatamento sem controle, a liberação de armas para os fazendeiros, a falta de políticas públicas que atendam parte das necessidades da população são alguns dos vilões dessa realidade. As consequências são o aumento da grilagem com facilidade, a fome, a violência no campo, entre outras violações de direitos, sem que o Estado tome alguma providência concreta para conter esses crimes.

Em conversa com a Amigos da Terra Brasil, o ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém (STTR), Manoel Edivaldo Santos Matos (o Peixe), defendeu a regularização fundiária como uma das principais saídas para esse transtorno que há muito tempo sofrem os trabalhadores e as trabalhadoras rurais, povos indígenas e quilombolas. Sem isso, opinou Peixe, fica difícil pensar em outras políticas. “A regularização fundiária é a porta para uma reforma agrária de verdade, sem isso é ficar enxugando gelo”, argumentou.

Frente a um ano eleitoral, os povos da floresta têm reivindicações que consideram fundamentais a serem pautadas pelos candidatos que realmente querem se comprometer com a preservação da Amazônia e de suas comunidades. A reestruturação e o fortalecimento dos órgãos dos governos estão entre elas para responder às demandas dos povos. No caso dos agricultores e das agricultoras familiares, Peixe considerou como importante o resgate do MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário) e o funcionamento do MMA (Ministério do Meio Ambiente) para combater o desmatamento, mas que o governo também apoie as iniciativas de organização econômica da população. Para isso, é preciso a desburocratização a fim de acessar financiamento público voltado para aumentar a produção de alimentos saudáveis. 

No entanto, a liderança reforça a necessidade da regularização fundiária urgente por meio da demarcação de terras indígenas, titulação dos territórios quilombolas, os parques de extrativismo com suas comunidades tradicionais, assentamentos de Reforma Agrária,  terras coletivas fora do mercado imobiliário e de uso e garantia dos povos. Caso contrário, não tem como preservar as florestas e seus povos.

Abandono dos governos e expostos à violência do agronegócio

No início deste mês, estudo do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), com base nos dados do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), concluiu que o desmatamento no bioma foi 56,6% maior entre agosto de 2018 e julho de 2021 que no mesmo período de 2015 a 2018, com avanço evidente a partir do segundo semestre de 2018. No período analisado, mais da metade do desmatamento ocorreu em terras públicas, sendo 83% destas em áreas de domínio federal. No mesmo período, proporcionalmente à área dos territórios, terras indígenas (TIs) tiveram alta de 153% em média no desmatamento, o equivalente a 1.255 km², enquanto em unidades de conservação (UCs) o aumento proporcional foi de 63,7%, com 3.595 km² derrubados no último triênio. Para se ter uma ideia, a perda de florestas em TIs e em UCs foi de mais de 1,7% da área total do estado do Rio Grande do Sul somente nestes anos do Governo Bolsonaro.

Somado a isso, com a liberação de agrotóxicos e de uso de armas para os fazendeiros, a violência no campo na região amazônica aumentou ainda mais sobre os povos da floresta. Dados parciais da Comissão Pastoral da Terra (CPT) apontam que em 2021 a destruição de casas, pertences, expulsão, grilagem, pistolagem e impedimento de acesso a áreas de uso coletivo até 31 de agosto de 2021 atingiu 418 territórios em todo o país e foi maior do que o verificado em todo o ano de 2020, sendo 28% destes território indígenas. Mortes em consequência de conflitos passaram de 9 em 2020, para 103 e, destas, 101 foram de indígenas Yanomamis. Mesmo diante desse terrível contexto, o presidente Jair Bolsonaro, em seu discurso a representantes do agronegócio em evento do Banco do Brasil no início deste ano, disse: "Nós praticamente anulamos as ações do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], tirando dinheiro que ia pra ONGs (...), estendemos a posse de arma de fogo com o apoio do Congresso Nacional (...) isso levou mais tranquilidade pra vocês (...), reduzimos em mais de 80% as 'multagens' [multas ambientais] no campo, não tivemos uma só demarcação de terra indígena no Brasil (...) e estamos trabalhando nesse sentido: devolver as terras da União para os estados e, consequentemente, para os senhores [do agronegócio]".

As consequências do desmatamento e a violência atingiram terrivelmente os povos indígenas na Amazônia, que seguem com seus direitos ameaçados, mas organizados em resistência frente à pauta devastadora do Congresso Nacional prevista para esse ano. A resistência à devastação ambiental da Amazônia, a defesa da vida, do clima, da sua diversidade cultural, biológica, das suas águas, matas e mitos mostrou-se com força em 2021 com as mobilizações indígenas de Abril a Outubro nos acampamentos Levante pela Terra e Luta pela Vida, na II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas e no Fórum de Educação Superior Indígena e Quilombola. Segundo o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), foi a maior mobilização indígena pós-constituinte, apoiada pelos mais diversos setores populares e movimentos sociais, e resultou na retomada da organização dos povos originários e tradicionais do Brasil pelos seus direitos.


Trabalho em grupos na assembleia do Povo Madija que aconteceu em Janeiro deste ano, na Aldeia Estirão, em Eirunepé (Amazonas) / Lindomar Padilha

Um exemplo é a situação do Povo Madija no Acre e no Amazonas que, depois das inundações na época das cheias de 2021, enfrentava uma situação devastadora de probreza, discriminação e com casos alarmantes de suicídio entre os jovens, o que nos demandou um chamado de solidariedade internacionalista. Rosenilda Nunes Padilha, do CIMI Amazônia Oriental, relatou em entrevista que o Povo Madija passa por dificuldades. “Apesar de ter em torno de 150 anos de contato com a nossa sociedade, nunca assimilaram o capitalismo. São 100% falantes de sua língua materna. Mulheres e crianças não sabem falar português", disse. 

No início deste ano, o Povo Madija realizou a sua assembleia. Ao denunciar constantes invasões aos seus territórios por madeireiros, caçadores, pescadores e outros, a falta de escolas, de contratação de professores indígenas e de merenda escolar nas aldeias e a falta de atendimento em saúde e de contratação de intérpretes da sua língua na FUNAI (Fundação Nacional do Índio), nos órgãos públicos e de assistência, entre outras violações, comunicou a todos os órgãos, instituições públicas e privadas e à sociedade em geral que: "NÃO SERÃO TOLERADAS nenhuma forma de discriminação, racismo, preconceito e, sobretudo, nenhuma forma de violência contra nosso povo ou qualquer pessoa de nosso povo. Utilizaremos de todos os meios necessários para que sejamos tratados com o mais absoluto respeito e dignidade, conforme nossos direitos assegurados".

É desde os territórios e dos povos da Amazônia em resistência que vêm se semeando as mentes com demandas, propostas e soluções para um Brasil com mais dignidade, democracia e Justiça Ambiental. Essas serão as vozes a serem, mais que ouvidas, participantes na construção de um novo projeto político para o país.

*Amigos da Terra Brasil (ATBr) é uma organização que atua na construção da luta por Justiça Ambiental. Quinzenalmente às segundas-feiras, publicamos artigos sobre justiça econômica e climática, soberania alimentar, biodiversidade, solidariedade internacionalista e contra as opressões. Leia outros textos.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo