Economia política

Artigo | O que está por trás da expansão da Otan e como isso tem alimentado o clima de guerra

Desde a dissolução da União Soviética, o Tratado do Atlântico Norte (Otan) tem se estendido a leste, em direção à Rússia

Brasil de Fato | Nova Delhi (Índia) |
Refugiados ucranianos atravessam a fronteira com a Polônia em 7 de março de 2022 - Louisa Gouliamaki / AFP

A mídia mainstream na Índia tem se envolvido em cobertura extensa, porém unilateral, do conflito na Ucrânia. Como todas as outras crises, o conflito na Ucrânia possui muitas dimensões que precisam ser examinadas rigorosamente. Neste artigo, procuraremos analisar o contexto da economia política desta crise.

Desde a dissolução da União Soviética, o Tratado do Atlântico Norte (Otan) tem se estendido a leste, em direção à Rússia, em muitas fases nos anos de 1999, 2004, 2009, 2017 e 2020. Apoiadores da “ordem internacional baseada nos direitos” argumentam que a expansão da Otan ocorreu devido às “escolhas voluntárias” de vários países do Leste Europeu. Todavia, os pontos a seguir precisam ser enfatizados ao sondar-se sobre essas “escolhas voluntárias”.

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Em primeiro lugar, a Otan é uma “aliança” militar “defensiva” “liderada” pelos Estados Unidos. Em outras palavras, os Estados Unidos têm tanto a primeira como a última palavra na Otan. Dependendo de quanta autonomia voluntária o país possa exercer, outros membros do tratado podem colocar mais ou menos palavras no meio. Em segundo lugar, o reestabelecimento do sistema capitalista nos países do leste da Europa por meio da terapia de choque levou à desarticulação destes países da economia russa.

Consequentemente, estes países foram incorporados ao sistema capitalista global como fontes de oferta de trabalho para o oeste da Europa e América do Norte, como produtores tanto de commodities primárias como manufaturadas (que são relativamente baratas na “escada” tecnológica), além de que se tornaram uma arena dominada por corporações financeiras internacionais, especialmente da Alemanha e Estados Unidos. Portanto, as novas elites destes países (que foram e são geradas pelos dois processos acima mencionados) direcionaram suas entradas “voluntárias” na Otan com autonomia estratégica atenuada. Deste ponto em diante eles se tornaram “autênticos” membros do “Ocidente”.

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Durante esse mesmo período, a terapia de choque na Rússia resultou em colapso catastrófico da economia e uma evisceração quase total de sua autonomia estratégica. A nova classe de capitalistas russos emergentes que surgiram nesse contexto estiveram concentrados essencialmente nas áreas de produção de commodities primárias e armas para exportação. Entre 1991 e 2007/2008, o “momento unipolar” passou a existir devido a esta evisceração da autonomia estratégica da Rússia e persistência, ainda que estreitando-se gradualmente, da ruptura estratégica entre China e Rússia. Deste modo, apesar das garantias dos Estados Unidos no começo da década de 1990 sobre a Otan desconsiderar expandir-se para o leste, foi precisamente isso que aconteceu.

Os frágeis protestos da Rússia na época não poderiam alterar este resultado, que consistia em manter a doutrina estratégica dos Estados Unidos de tentar prevenir o surgimento de um grupo de países na Eurásia que trabalhasse em conjunto e que pudessem, no futuro, liderar um desfazer do “momento unipolar”. Diferentemente de outros países do leste da Europa, a Rússia não fora estrategicamente feita para integrar o “Ocidente” e, portanto, precisava ser contida pela expansão da Otan para aquela região. A ausência do dimensionamento correto estratégico da Rússia se manifestou, por exemplo, no enfraquecimento político dos antes dominantes “liberais” pró-Ocidente no país. Logo, os Estados Unidos desejavam reforçar sua posição de cercar Rússia e China com bases militares para fornecer “segurança” aos vizinhos destes dois países na tentativa de assegurar que nenhum desafio estratégico emergisse na Eurásia.


Ucrânia pretende retirar 200 mil pessoas de Mariupol e 15 mil de Volnovakha ambas na região separatista de Donetsk / AFP

Contudo, uma virada ocorreu neste processo em 2008, quando os Estados Unidos decidiram avançar para a “eventual” adesão da Geórgia e Ucrânia à Otan a despeito dos protestos da Alemanha e da França. Em seguida, houve breve conflito armado entre Geórgia e Rússia naquele mesmo ano, o que levou à paralisação do processo de entrada da Geórgia na Otan. Essa nova rodada de expansão da Otan para o leste foi concebida pelos EUA em um momento no qual o país estava relativamente atrasado por conta da crise econômica mundial iniciada em 2007/2008, além de ser cada vez mais desafiado pela ascensão da China. Ainda, a ruptura estratégica entre China e Rússia reduziu-se abaixo do limiar necessário para a persistência do “momento unipolar”. Indiscutivelmente, ou os EUA não compreenderam completamente que o “momento unipolar” estava se esgotando ou queriam prolongá-lo com a expansão da Otan para o leste. Mas o país não tinha os meios estratégicos para empreender simultaneamente a expansão da Otan para o leste (que é um eufemismo para seu plano de contenção da Rússia), bem como ser o “pivô para a Ásia” (que é um eufemismo para o plano dos EUA de contenção da China). Em outras palavras, a dupla contenção tornou-se inviável.

Também na Ucrânia, as movimentações para a adesão à Otan interligaram questões internos e externos. Internamente, ações para a entrada na Otan tiveram mais “apoio” na porção oeste da Ucrânia, enquanto que no leste ucraniano a mudança não era bem-vinda. Há um contexto histórico para essa divergência regional de visões. Muitas áreas da Ucrânia ocidental que fizeram parte do Império Russo Czarista foram anexadas pela Polônia entre 1920/1921 após uma guerra entre o governo soviético e os poloneses. Estas áreas foram reintegradas à Ucrânia soviética em 1939, após a derrota polonesa para a Alemanha nazista. Durante a Segunda Guerra Mundial, houve considerável colaboração dos países da Europa continental com a Alemanha nazista, incluindo o envolvimento desses colaboradores nas políticas genocidas nazistas no que foi efetivamente uma política colonial “calibrada” no Leste Europeu e na porção soviética ocupada pelo Reich.

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Essas políticas genocidas foram “melhor praticadas” uma vez que foram “aperfeiçoadas” com base em práticas coloniais anteriores na Ásia, Américas e África. Na Ucrânia soviética, a colaboração com a Alemanha nazista concentrou-se desproporcionalmente na porção oeste do país. Algumas das organizações nazistas notáveis em solo ucraniano incluem a Organização dos Nacionalistas Ucranianos e o Exército Insurgente Ucraniano. Em seguida à derrota da Alemanha nazista, a imigração de muitos líderes e quadros dessas organizações criminosas para a América do Norte e oeste da Europa foi – direta e indiretamente – facilitada pelos Estados Unidos. Lá, esses ucranianos nazistas tiveram seu “devido papel” ao lado dos EUA durante a Guerra Fria.

Em seguida à dissolução da URSS, as elites emergentes tanto na Rússia quanto em outros lugares do leste europeu, bem como na Ásia Central, tiveram que “reimaginar”, ou seja, inventar a história desses países para consolidar suas regras na nova era. Isso aconteceu de distintas maneiras na Rússia e no resto da Europa. Na Rússia, as novas elites atribuíram a heroica contribuição da União Soviética para a derrota da Alemanha nazista a fatores ostensivamente trans-históricos, ao mesmo tempo em que não enfatizavam o papel do sistema socialista e (portanto) do Partido Comunista da União Soviética. O modelo para esta “reimaginação” da história europeia fora da Rússia foi oferecido pela União Europeia, que alegou que a Alemanha nazista e a União Soviética eram corresponsáveis pela Segunda Guerra Mundial no continente europeu. Este foi o começo ideológico para a incorporação do leste da Europa no âmbito da “ordem internacional baseada nos direitos” e a consequente consolidação do poder das elites locais dentro desses países.


Prédio danificado após bombardeio na segunda maior cidade da Ucrânia, Kharkiv, em 3 de março de 2022 / Sergey Bobok / AFP

Segundo esta “reimaginação”, colaboradores nazistas como a Organização dos Nacionalistas Ucranianos ou o Exército Insurgente Ucraniano, seus predecessores e antecessores lutaram ostensivamente contra a “ocupação” soviética na Ucrânia de 1917 até 1991. Ainda mais longe nessa “reimaginação”, eles foram “forçados” a participar em algumas ações “lamentáveis” durante a ocupação nazista, mas isso foi somente uma “pequena” parte de seu papel “histórico”. Após 1991, esta “reimaginação” tornou-se quase hegemônica no oeste ucraniano e procurou-se promovê-la em outras partes da Ucrânia nos anos posteriores a 2014. Já na mídia mainstream, discussões deste

passado têm sido eficientemente eliminadas uma vez que o “resultado desejado” dessa “reimaginação”, nomeadamente a “reorientação” da Ucrânia para o “Ocidente”, parece ter sido alcançado e não poderia ser prejudicado por “relíquias” ostensivamente históricas.

Em 2014, o presidente eleito da Ucrânia foi deposto pela “Revolução Laranja” orquestrada pelos EUA, resultando em breve conflito com a Rússia. A Crimeia, transferida da União Soviética à Ucrânia soviética em 1954, foi novamente incorporada à Federação Russa. No entanto, esta “reimaginação” da história e a “reorientação” da Ucrânia em direção ao Oeste após 2014 também envolve a emergência de um “novo” projeto nacional no qual os ucranianos falantes de russo, que estão desproporcionalmente concentrados no leste da Ucrânia, são classificados como “estrangeiros”. Como parte deste “novo” projeto nacional, esses “estrangeiros” devem ser trazidos para o “novo padrão ocidental”, cortando suas relações com a Rússia, ou devem ser expulsos para a Rússia. Sem dúvida, esse “novo” projeto nacional aplicou lições das melhores práticas realizadas por países como o Reino Unido (sobre os escoceses, galeses, irlandeses etc.) e Estados Unidos (sobre os povos nativos americanos, afro-americanos, hispano-americanos etc.) em relação àqueles que estão fora do “padrão”.

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Desde 2014, essa divisão entre “nós versus eles” tem sido encabeçada por organizações paramilitares neonazistas e partidos como o Batalhão Azov, Batalhão Aidar, Svoboda, Setor Direito e outros. Essas organizações surgiram como forças dominantes no “campo”, maquinário estatal e forças armadas pós-2014 na Ucrânia. Sua glorificação pública dos colaboradores da era nazista continua apesar de protestos, inclusive do governo de Israel. Afinal de contas, a “diversidade” na “ordem internacional baseada nos direitos” é grande o suficiente para abarcar tanto sionistas quanto neonazistas, além de alguns terroristas muçulmanos “moderados” no oeste do continente asiático.

Esses paramilitares neonazistas tem estado à frente do conflito armado na região de Donbass, leste ucraniano. Eles são confrontados por milícias armadas apoiadas pela Rússia. Inicialmente, os oponentes dos paramilitares neonazistas pareciam enfatizar a demanda pela Novorossiya como entidade independente cuja legitimidade viria dos laços trans-históricos ostensivos com os russos. Contudo, com o passar do tempo essas milícias constituíram-se nos governos da República Popular de Donetsk e na República Popular de Luhansk.

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Os Acordos de Minsk, assinados pelo governo ucraniano em 2014, previam o cessar-fogo em Donbass, a desescalada do conflito e mudança para regime federalista com autonomia para Donbass. No entanto, uma Ucrânia federalizada não é consistente com o “anseio” pela entrada na Otan – anseio este dos neonazistas, em primeiro lugar. Portanto, o confronto armado em Donbass persiste uma vez que o governo ucraniano não aderiu aos Acordos – unilaterais – de Minsk que, caso fossem implementados à risca, garantiriam a neutralidade da Ucrânia entre a Rússia e Estados Unidos. Essa não adesão pelo governo ucraniano foi impulsionado pela curadoria dos EUA.

Em 2021, o governo ucraniano continuou seus movimentos progressivos em direção à Otan sob a orientação de seus curadores baseados nos EUA. O governo russo exigiu negociações com os EUA sobre duas garantias de segurança principais: primeiro, rescisão permanente do processo de adesão da Ucrânia à Otan; segundo, retorno da Otan às fronteiras do leste da Alemanha. Moscou estava preocupada desde a saída dos Estados Unidos do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, em agosto de 2019, que teria permitido aos Estados Unidos transportar mísseis nucleares para a fronteira ocidental do território da Federação Russa. Dado o histórico dos Estados Unidos de desonra de acordos anteriores, a administração russa não considerou críveis as ofertas estadunidenses sobre as negociações dos locais de implantação dos mísseis. Afinal, os países membros da Otan podem “solicitar” aos Estados Unidos que os “protejam” de ameaças “externas” (leia-se: Rússia) ao implantar armas nucleares. Em todo caso, para os Estados Unidos as “regras sacrossantas” da Otan teriam precedência sobre os “acordos” firmados com países que não fazem parte do tratado.

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Os Estados Unidos rejeitaram essas demandas por garantias de segurança afirmando que a entrada na Otané “voluntária” e obedece à “prerrogativa de soberania” de cada país. Mas isso forneceu a desculpa de que a entrada da Ucrânia na Otan só poderia ser possível em um futuro “distante”. Contudo, os EUA ignoraram a experiência dos anos 1960, quando eles e a União Soviética retiraram seus mísseis nucleares respectivamente da Turquia e Cuba depois de negociarem um acordo. Não é preciso dizer que se os papéis fossem invertidos, com a instalação de uma aliança militar entre um país vizinho dos EUA e outro grande poder, então os eles invocariam a Doutrina Monroe para iniciar uma intervenção militar “efetiva” dentro de uma “estrutura legal sólida”. Na situação corrente envolvendo a Ucrânia, é possível que os EUA, estando numa “ressaca” unipolar, julgou mal o equilíbrio relativo de seu poder estratégico em relação à Rússia. Esse equilíbrio relativo de poder avançou contra os Estados Unidos após a Declaração Conjunta dos Presidentes da Federação Russa e República Popular da China e as consequências disso.

Por meio do processo do Formato da Normandia, que envolveu Alemanha, França, Rússia e Ucrânia, procurou-se negociar um acordo que abordasse as preocupações de todos os países e alcançasse equilíbrio entre várias preocupações (quando necessário). No entanto, os EUA torpedearam o processo ao exercerem seus poderes como curadores do governo da Ucrânia. Mas a postura pública dos EUA para tentar parar o processo do Formato da Normandia foi de alegar repetidamente que “a Rússia atacaria a Ucrânia qualquer que fosse o motivo”, isto é, as negociações eram “fúteis”. Dada a autonomia estratégica atenuada da Alemanha e da França, eles foram incapazes de levar o processo do Formato da Normandia à sua conclusão lógica. Embora seja “compreensível”, o despojamento quase total da autonomia estratégica da Ucrânia devido ao processo de tutelagem estadunidense também contribuiu para o fracasso das negociações. A intransigência dos EUA, portanto, semeou o conflito armado.

 

*C Saratchand é professor do departamento de economia do Satyawati College, Universidade de Delhi. 

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo