Coluna

A geopolítica do imperialismo: a importância de 2014 para a Ucrânia atual

Imagem de perfil do Colunistaesd
Conflito em Lugansk e Donetsk já se arrasta por mais de 8 anos e matou mais de 14 mil pessoas - AFP
Ter um país grande e fronteiriço com a Rússia na OTAN tende a elevar a escalada bélica na região

Guerras são eventos duros e perversos na humanidade. Em regra, o mais prejudicado é o povo simples, as pessoas vulnerabilizadas, que passam todo tipo de violação de direitos, desde a fome até mesmo um potencial aniquilamento da própria vida.

No entanto, um conflito, como o ocorrido atualmente entre Ucrânia e Rússia, não pode ser visto como uma luta do bem contra o mal ou do mocinho contra o bandido. Este é um erro crasso. Da mesma forma, não é um evento que pode ser analisado sem o devido resgate histórico. O artigo destacará 3 eventos, que a partir do ano de 2014 evidenciam a crise civilizatória na Ucrânia.

:: Como os EUA utilizam do neonazismo na Ucrânia para isolar a Rússia ::

1) O Golpe de Estado

Em 2014, a Ucrânia tinha um presidente democraticamente eleito, Viktor Yanukovych. No entanto, a posição presidencial era contrária ao aprofundamento dos laços da Ucrânia com a União Europeia, os quais viabilizariam reformas liberalizantes promovidas pelo bloco. No final de 2013 manifestações violentas se espalham pelas ruas de Kiev, com a pauta política pró-Ocidente e contrária ao presidente, que tinha uma posição pró-Rússia.

No ano de 2014, o governo é deposto em um processo político recheado de vícios formais e materiais, o golpe de Estado é consolidado, e, em parte, abre caminhos para grupos neonazistas, muitos deles, formados por seguidores de Stepan Bandera, um colaborador de Hitler na Ucrânia na época da Segunda Guerra. Os Estados Unidos ajudou a financiar esses levantes e reconheceu a legitimidade do governo golpista. Após o golpe, vários sujeitos da extrema-direita foram alçados a cargos no governo estabelecido.

:: Guerras pelo mundo: Síria, Somália e Iêmen também sofreram ataques aéreos nos últimos dias ::

2) O segundo Massacre de Odessa: incêndio dos sindicatos e da sede do Partido Comunista

Odessa é uma cidade ucraniana marcada duplamente por grandes massacres realizados por tropas fascistas contra o povo. Em 1941, tropas fascistas romenas assassinaram mais de 30 mil judeus na cidade.

No ano de 2014, grupos de orientação neonazista incendiaram um prédio com inúmeras pessoas no seu interior. Na edificação funcionava sindicatos de trabalhadores e a sede do Comitê Regional do Partido Comunista Ucraniano. As pessoas que tentavam fugir do incêndio eram executadas a tiros, quando não eram linchadas. O saldo foi de 42 pessoas carbonizadas, sem a punição dos responsáveis até os dias de hoje. Dentre os grupos que participaram do massacre estão o Batalhão Azov e o Svoboda, dentre outros.

:: Entenda o que está em jogo na invasão da Ucrânia pela Rússia ::

O Batalhão de Azov é uma organização paramilitar ligada ao Estado Ucraniano em 2014, que usa simbologia neonazista e o discurso de pureza étnica. Atrelado a ele está o crescimento do Svoboda, partido de extrema-direita com práticas nazifacistas, além de outras organizações propriamente neofascistas crescentes na sociedade civil e estimuladas pelo Estado.

Há uma naturalização do nazismo na Ucrânia, quando se verifica ser possível comprar bonecos de Hitler em um shopping, por exemplo. Em 2015, a Ucrânia proibiu as atividades do Partido Comunista. Em 2018, a Ucrânia e os Estados Unidos foram os únicos países a votarem contra a Resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) que rechaçava o nazismo. No contexto atual do conflito entre Ucrânia e Rússia, inúmeras denúncias recentes dão conta de que diversos militares ucranianos dificultam ou impedem a saída de imigrantes africanos do país.

:: Qual o interesse dos EUA na fronteira entre Rússia e Ucrânia? ::

A recente conivência da Ucrânia com instituições e organizações nazifascistas é inaceitável. A cobertura internacional, de maneira irresponsável, parece ignorar isso e o mal em potencial que vem sendo causado.

3) Expansão da OTAN e a resistência de Lugansk e Donetsk

A expansão do imperialismo através da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) indica também um aprofundamento da crise capitalista e a necessidade de recomposição da hegemonia dos Estados Unidos no cenário mundial. Ter um país grande e fronteiriço com a Rússia na OTAN tende a elevar a escalada bélica na região e representa uma ameaça maior ao papel de influência da Rússia.

Até 2022 a mídia ocidental não deu nem um pio sobre um conflito que já se arrastava por mais de 8 anos (desde 2014) e matou mais de 14 mil pessoas em Lugansk e Donetsk. Regiões separatistas que foram atacadas durante todo esse período por militares ucranianos.

:: “A Rússia pode aguentar tranquilamente as sanções”, afirma professor da UFABC, assista ::

Na geopolítica se você não se antecipa ao inimigo, como em um xadrez, toma o xeque-mate. Mesmo não se tratando de países que encarnariam o bem ou o mal, a assimetria da política imperialista dos Estados Unidos através da Ucrânia frente a Rússia é evidente. Não há como comparar o poder político-econômico, ideológico e militar do imperialismo se expandindo via OTAN diante de um país que tem a base do seu desenvolvimento econômico em extração de recursos naturais e exportação de commodities como é o caso da Rússia. Qualquer comparação nesse sentido corre o risco de ser leviana, por mais que se reconheça que a Rússia, enquanto potência regional é conhecida por oprimir nacionalidades e grupos dentro do próprio país e no seu entorno.

O direito de autodeterminação dos povos é fundamental, mas não pode ser subterfúgio para a continuidade da expansão imperialista através da OTAN e, muito menos, para garantir a estabilidade e o fortalecimento de um espaço livre para o desenvolvimento do nazismo no mundo.

:: Veja como líderes latino-americanos reagiram ao conflito Rússia-Ucrânia ::

Nos cabe ser solidários com o povo ucraniano e os/as imigrantes que sofrem com a guerra, com a mesma firmeza que deve ser denunciada a política imperialista por trás do discurso da OTAN e o projeto, em andamento, conivente com organizações nazifascistas do Estado Ucraniano. Olhar para o conflito atual é entender que o ano de 2014 repercute até os dias de hoje.

 

*Gladstone Leonel Júnior é Professor Adjunto da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense. Doutor e Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Brasília. Realizou o estágio doutoral na Facultat de Dret, Universitat de Valencia, Espanha. Membro da Secretaria Nacional do IPDMS – Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais. Leia outros textos.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo