imperialismo

Artigo | A culpa da guerra na Ucrânia é do sistema capitalista e do imperialismo dos EUA

Não precisa ser marxista para constatar que as crises econômicas são uma regra e não uma exceção do capitalismo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Os russos finalmente tiveram a coragem de apresentar um contraponto ao avanço da OTAN - Sergey Bobok / AFP

Antes mesmo de completar um século de existência, o capitalismo teve sua primeira grande crise. Nesse período, Vladimir Ilitch Ulianov (Lênin) constatou que a crise estrutural (iniciada em 1873 e alavancada a partir de 1900) impulsionou um processo de maior concorrência intercapitalista devido a decadência das taxas de lucro do setor produtivo e o deslocamento dos capitais em busca de uma maior taxa de lucro através da sua auto reprodução. Nesse contexto histórico, evidenciou-se que os bancos acumularam mais capitais e centralizaram as decisões tanto dos setores financeiro quanto produtivo. Ademais, esses novos oligopólios utilizaram dos aparatos de Estados para defender seus respectivos interesses. Ao perceber isso, Lênin defendeu a bandeira da Paz e uma posição contraria aos votos dos créditos de guerra que desembocaram na Primeira Guerra Mundial.

Ao fim desta guerra muitos problemas não foram solucionados, principalmente os de ordem econômica. As taxas de lucro e acumulação permaneceram mais elevadas e centralizadas no setor financeiro e isso só se alterou após a Segunda Guerra Mundial. A partir dessa, tivemos alterações substanciais nas relações internacionais.

As novas hegemonias foram cristalizadas, de um lado, pelo capitalismo estadunidense, e, de outro lado, pela hegemonia socialista da URSS. Logo após a Segunda Guerra Mundial algumas organizações internacionais foram criadas com o intuito de criar blocos opostos de poder. Do lado estadunidense destacam-se dois blocos: um econômico representado inicialmente pela Organização Europeia de Cooperação Econômica (1948), que visava coordenar os recursos oriundos do plano Marshall para Europa, e que depois se tornou a Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE - 1960); e um bloco militar conhecido como Organização do Tratado do Atlântico Norte formado (OTAN) fundado em 1949. Do outro lado, a URSS criou duas outras organizações internacionais: uma econômica conhecida pelo nome de Conselho para Assistência Econômica Mutua (COMECON – 1949); e um bloco de caráter militar, o Pacto de Varsóvia de 1955.

Desses elementos podemos fazer pelo menos dois comentários adicionais. O primeiro é perceber que o contexto de Guerra Fria foi se cristalizando a partir de que cada lado buscou atrair aliados para sua área de influência que são representados nessas organizações internacionais. O segundo comentário dialoga com algumas questões que tem sido levantadas atualmente na mídia comercial, que a OTAN foi criada para fazer frente ao avanço militar do Pacto de Varsóvia. Percebam que cronologicamente isso não faz o menor sentido porque a OTAN foi criada 6 anos antes da criação do Pacto de Varsóvia.

Ademais, vale ressaltar que a partir da Segunda Guerra Mundial o desenvolvimento tecnológico, sobretudo militar, possibilitou a criação de armas de destruição em massa, como o exemplo das bombas atômicas. O que iniciou com os ataques dos EUA a Hiroshima e Nagasaki foi só o começo, infelizmente. Atualmente, existem bombas com potência 100 vezes maiores do que essas, como é o caso da Bomba Tsar Russa. A evolução da corrida armamentista entre OTAN e Pacto de Varsóvia aumentou não só a potência de suas respectivas bombas, mas também a quantidade. Esse foi um dos principais fatores para que ocorresse um fato histórico novo, uma potência declinar sem confrontar diretamente seu principal inimigo.

Durante toda Guerra Fria as duas grandes potências militares não tiveram a coragem de se enfrentar diretamente. Diria não só coragem, mas um mínimo de racionalidade, devido ao fato que todos sabiam e sabem, uma guerra direta entre essas potências atômicas tem grandes possibilidades de dizimar não só toda a população humana, mas inclusive o planeta terra. Por isso, que os conflitos quentes da guerra fria ocorreram em países terceiros como formas de inclui-los sobre sua área de influência.

Ao ocorrer a dissolução da URSS (1989 e 1991) foi feito um acordo entre as potencias de que a OTAN não avançaria nem uma polegada em direção ao leste da Europa. Essa foi a promessa de James Baker, então, secretário de Estado estadunidense. Entretanto, sabemos que não foi isso que ocorreu.

Duas guerras ocorreram dentro do leste Europeu, a primeira foi a Guerra da Bósnia (1992-1995) que teve como resultado a independência da Bósnia-Herzegovina e a dissolução de parte da Ex-República Socialista Federativa da Iugoslávia. Resultado, onde antes existia um Estado, com bastante autonomia em relação a antiga URSS, passou a existir 6 países: Eslovênia, Croácia, Bósnia, Servia, Montenegro e Macedônia. Poucos anos depois ocorreu uma segunda guerra, mais conhecida como Guerra do Kosovo em 1999. Acredito que a essa altura os/as leitores/as já desconfiem que a OTAN teve participação ativa em ambas as guerras.

Caso tenham dúvidas, podemos constatar o resultado dessas guerras. Os fatos são, após 1997 até os dias atuais as fronteiras da OTAN se expandiram muito além da fronteira alemã e englobou um total de 14 países em direção ao Leste: Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Hungria, Romênia, Eslovênia, Croácia, Montenegro, Albânia, Macedônia do Norte e Bulgária.

Ademais, podemos evidenciar um outro conjunto de guerras que ocorreram fora do continente Europeu. Como o caso da guerra do Kwait (1991), Somália (1993 – 2007 e 2008 - 2022), Sudão (1998), Afeganistão (1998 - de 2001 a 2015), Yemen (2002 – 2009 - 2011), Paquistão (2007 a 2015) e a do Iraque em 1991 e 2003, sendo essa última em total violação ao Conselho de Segurança e a ONU. Esse conjunto de guerras deixa patente uma questões: Os EUA, através da OTAN, atua como a força policial internacional que impõe seus interesses sem o menor respeito a autodeterminação dos povos.

Vale ressaltar que a maior parte dessas guerras ocorreram ainda num período de dissolução da URSS e hegemonia unipolar dos EUA. Entretanto, dois novos elementos modificam expressivamente a balança de poder mundial. O primeiro foi a crise de 2007-2008 que expôs a fragilidade da economia estadunidense. Sabemos que esses possuem a maior quantidade de capitais de comércio e reserva internacional (o dólar), e possui uma base produtiva de alta tecnologia. Entretanto, grande parte da produção de mercadorias em geral está sendo deslocada para o sudoeste asiático e as ações para conter a crise não tem gerado o retorno dessa base produtiva para os EUA. Segundo e de gigantesca importância, a China, desde de seu processo de maior abertura ao mercado, em 1979, vem crescendo pujante e tenazmente os setores produtivos, tecnológico e de capital. Ou seja, a constatação da fragilidade da economia financeira dos EUA, após 2007-2008, foi colocada ainda mais em xeque com a ascensão econômica da China.

A partir desse momento, a crise hegemônica dos EUA começou a ser ventilada pelos diversos analistas. O problema é, quando uma hegemonia começa a declinar é justamente quando ela se faz mais violenta e perigosa para manter o seu status. Desse período em diante variadas formas de intervenção ocorreram, desde medidas de lawfare, como o caso da Lava Jato no Brasil, como as denúncias do Snowden de espionagem por parte dos EUA em relação as escutas telefônicas da presidenta Dilma Rousseff e de diversas lideranças Europeias, como a própria Angela Merkel.

Essas formas supracitadas de intervenção foram duras, mas quando comparado com outros países se revelam brandas. Os casos de golpes de Estado como ocorridos durante a Primavera Árabe tiveram dimensões muito mais violentas, como os casos da Tunísia, Egito e Líbia. Neste último país, a OTAN influenciou não só indiretamente, mas diretamente com a sua zona de exclusão aérea e com o envio de militares disfarçados de mercenários para destituir e executar o então presidente Muammar al-Gaddafi. Antes da guerra a Líbia era o país que tinha o maior IDH de toda África, índice bem superior quando comparado inclusive com o Brasil. Fato é que nessa nova reorganização mundial de poder, os países em ascensão na balança ainda não tinham se posicionado para apresentar um contra ponto a esses avanços desmedidos e unilaterais da OTAN.

O primeiro momento que apresenta-se um contra ponto é com a guerra na Síria. Vejam, a guerra na Síria tinha de um lado, o governo de Bashar al-Assad tentando defender o seu bloco de poder, e do outro lado tinha: manifestantes insatisfeitos com o governo; membros do Estado Islâmico e tropas da OTAN. Releia essa última frase e constate a realidade, as tropas da OTAN e as tropas do Estado Islâmico combateram juntos contra o governo Sírio. Foi nesse contexto que os russos apareceram para apoiar o governo Sírio. E os russos não estavam sozinhos, navios das marinhas chinesas e russas realizaram “treinamentos” conjuntos no mar mediterrâneo num dos momentos mais críticos da guerra.

Isto posto, não estou afirmando que os russos e chineses são os bonzinhos e querem salvar o planeta. Até porque esses países, e seus respectivos blocos de poder, possuem interesses próprios. Mas, não pode-se deixar de constatar que pela primeira vez após a queda do muro de Berlim tivemos um contra ponto ao avanço da OTAN.

Chegando a situação da Ucrânia. Vejam, em 2010 o FMI e Banco Mundial realizaram um acordo com o governo ucraniano de Yanukovich. Entretanto, tal acordo pouco saiu do papel porque o presidente da Ucrânia não quis aceitar as imposições do FMI e BM para realizar o empréstimo. Entre as condições estavam a maior flexibilização do câmbio da moeda ucraniana (Grívnia) e a eliminação de um subsidio familiar do custo de energia. Essas imposições fizeram o Yanukovich recuar do acordo e realizar um empréstimo com a Rússia.

Ademais, o governante ucraniano também desistiu de ingressar na União Europeia. Foi a partir dessa situação que surgiu as manifestações na praça de Maidan. Observem, diversos estudos documentados evidenciaram que as manifestações contra o governo tinham forte apoio do governo estadunidense. O famoso intelectual brasileiro, Moniz Bandeira, escreveu um livro chamado “A Segunda Guerra Fria” e dissecou toda uma rede de ONGs que repassava os recursos da Usaid e da própria embaixada dos EUA na Ucrânia para os manifestantes favoráveis a entrada da Ucrânia na União Europeia. Não só isso, o cineasta estadunidense Oliver Stone produziu um documentário (“Ucrânia em chamas”) que tem vídeos de congressista estadunidenses que foram a praça de Maidan declarar seu apoio as manifestações. Ou seja, os representantes estadunidenses não tiveram nem o cuidado de manter as coisas de forma subterrânea e deixaram evidente para todo mundo ver que estava violando a soberania ucraniana de forma sistemática.

Infelizmente, essas questões não são ventiladas pela mídias comercial. E não só essas questões, as manifestações de Maidan foram ganhando relevo com diversas situações, desde de execuções sumarias de manifestantes por franco atiradores - ação que o governo ucraniano afirma não ter ordenado - até o golpe de Estado que ocorreu em 2014. Quem substitui o governo de Yanukovich foi o bilionário Pedro Poroshenko, proprietário do grupo Roshen Chocolates, de um canal de televisão e outra fábricas.

A partir desse governo, diversas atitudes foram tomadas contra a população russa local. Desde a retirada do Russo como segunda língua oficial, como também interferência nos poderes da Igreja Ortodoxa para diminuir a importância do Patriarca Russo. Esses são alguns fatores que mobilizaram parte da população a um processo de xenofobia contra seus próprios conterrâneos de descendência russa, mas o mais decisivo foi quando começaram a surgir grupos neonazistas paramilitares que atacaram possíveis bastiões de resistência pró Rússia. Foi nesse contexto que o conflito em Donetsk e Lugansk se acirrou e o governo russo saiu em apoio a essas regiões. O resultado inicial desse conflito foram os acordos de Minsk, que os governos ucraniano e russo estabeleceram essas duas regiões como republicas autônomas do Estado da Ucrânia. Fazia parte do acordo também o cessar fogo nessas regiões e em Donbass. Entretanto, esse foi um acordo que não saiu do papel, a guerra permaneceu ocorrendo e o governo ucraniano seguiu armando os grupos paramilitares tendo a OTAN como a fornecedora de armas. Ou seja, desde 2014 que a guerra está ocorrendo, o que mudou agora foi: a dimensão e o apelo midiático.

Os pontos centrais do apelo midiático tem ressaltado três principais questões: 1) o expansionismo russo; 2) o apelo da oposição entre ocidente e oriente; 3) a fraqueza das forças militares russas em não tomar a Ucrânia rapidamente. Vejam, em relação ao primeiro ponto, acredito que as questões supracitadas deixaram evidente quem tem expandido fronteiras, apenas agregaria a seguinte questão. A autodeterminação dos povos é central para qualquer Estado-Nação, mas, como tentei deixar evidente acima, a autodeterminação do povo ucraniano foi sistematicamente destruída pela OTAN e estes estabeleceram governos fantoches. Em relação ao segundo ponto, faz parte da velha disputa de narrativa que ainda vive no inconsciente da população mundial. Percebam, o conflito não é originado da relação entre ocidente e oriente, a fonte do atual conflito são as próprias contradições do modo de produção capitalista; E por último, é curioso como muitos analistas teatralmente defendem o expansionismo violento russo e ao mesmo tempo afirmam que os russos não conseguiram invadir e destruir a Ucrânia. E de fato, os russos não estão invadindo e destruindo a Ucrânia ao modo dos EUA de fazer guerra. A Rússia tem atacado sobretudo as bases militares e tentando diminuir as possibilidades de destruição da infraestrutura e da população civil. Isso não quer dizer que não estejam ocorrendo destruições e mortes de civis, estamos falando de uma guerra. Mas compreendendo que os russos são a segunda maior potência militar do mundo e que a Ucrânia é um país satélite da própria Rússia, fica evidente que os russos estão realizando uma guerra de baixo perfil.

E, em relação a esse último ponto, quem achar que estou relativizando demais a “invasão russa” peço que levem em consideração algumas questões: 1) A origem do povo russo é a mesma origem do povo ucraniano, ambos tem forte ascendência eslava; 2) historicamente ambos países possuem forte relação, inclusive Kiev já foi uma das capitais da Rússia em 882. 3) A Ucrânia e a Bielorrússia foram os primeiros países que, junto com a Rússia, originaram a Comunidade dos Estados Independentes (1991), organização internacional que busca reaproximar os países que faziam parte da extinta URSS; 4) Manter Estados bem estruturados na fronteira russa, possibilitam a esse maior tranquilidade diante de um agressor externo, ou seja, mantem uma zona de distanciamento de qualquer outra potência da sua fronteira. Esse conjunto de elementos deixa evidente uma questão, a Ucrânia e a Bielorrússia são aliados estratégicos da Rússia, e não meramente uma aliança conjuntural.

A Europa mais submissa do que nunca.

As contradições atuais do apoio as sanções por parte da União Europeia são: 1) A guerra está ocorrendo em solo europeu e caso ganhe maiores dimensões arrastará parte dos Estados deste continente que já foi literalmente devastado por duas grandes guerras mundiais; 2) Os russos são os maiores fornecedores de gás para toda Europa, chega a abastecer 40% de todo seu consumo. O gás russo é muito mais barato do que o gás liquefeito e caso os Europeus precisem substituir isso pesará bruscamente na balança de pagamento de todos os países da Europa, o que acarretará numa nova crise econômica interna do bloco. E é digno de nota, os produtores do gás substituto ao dos russos são os próprios estadunidenses; 3) A Rússia é um país capitalista dependente, entre outros elementos, isso quer dizer que são grandes importadores de produtos de alto valor agregado. E pra quem tá achando que a Europa e os alemães são os principais fornecedores dessa mercadorias com alto valor agregado, não se surpreenda, vocês estão certos. Ou seja, a Rússia exporta para a Europa produtos de baixo valor agregado e importa da Europa produtos de alto valor agregado; 4) a Europa, através da OTAN, contribuiu para armar grupos neonazistas na Ucrânia, a questão é: a Ucrânia está dentro do continente europeu, será que os representantes da União Europeia não ponderaram que parte desses grupos podem se disseminar na própria Europa? Será que já faz muitos anos da guerra contra o nazismo e os europeus esqueceram o que ocorrem com quem choca o ovo da serpente?

E o erro de cálculo da OTAN não termina nessas questões. O próprio Kissinger tem alertado sobre o grande erro de reaproximar a Rússia (segundo maior potência militar do planeta) da China (segunda maior economia do planeta). Segundo a ex-presidenta Dilma Rousseff, desde 2014 os russos e chineses tem aumentado a relação econômica, assim, já se preparavam para essas sanções previsíveis dos países integrantes da OTAN. E, nesse novo contexto da economia mundial, os chineses são os que tem melhores condições de prover as mercadorias necessárias para a economia russa. Isso não quer dizer que os russos vão nadar no mar de flores diante das sanções, mas que essas tem mais potenciais lesivos para as economias europeias do que para a economia russa.

Por fim, tudo isso posto, são importantes algumas afirmações: 1) o atual contexto bélico tem relação direta com o declínio da hegemonia dos EUA. Uma das formas de sua economia voltar a crescer é através da indústria militar que com um contexto de maior tensão internacional irá gerar uma maior demanda por armas; 2) Quem tem invadido territórios sistematicamente é a OTAN; 3) Quem nunca respeita o direito internacional quando esse entre em conflito com os seus respectivos interesses é a OTAN; 4) Os russos finalmente tiveram a coragem de apresentar um contra ponto ao avanço da OTAN; 5) De toda forma, é importante ponderar com os russos para que não passem da Ucrânia e regressem para suas antigas fronteiras, pois sabemos que as classes dominantes da Rússia conseguiram ampliar bastante seu território ao longo da história; 6) A bandeira da Paz novamente se faz necessária para a luta anti-imperialista; 7) O modo de produção capitalista não possibilita a paz, ou seja, se verdadeiramente queremos a paz precisaremos construir o processo para superar o modo de produção capitalista.

* Leonardo Severo é integrante do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD)

Edição: Thales Schmidt