Direitos humanos

Mãe da Praça de Maio, Nora Cortiñas comemora seu aniversário de 92 anos gritando: "Fora FMI"

Repudio ao Fundo Monetário Internacional é pauta na Marcha Mundial pela Água em Buenos Aires

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |
Nora Cortiñas comemorou seu aniversário na Marcha Mundial pela Água - Fernanda Paixão

"A água vale mais que ouro". O lema levantado em 2013 nos protestos populares contra a mineração em Chubut, na Argentina, esteve presente nas marchas em 30 cidades do país nesta terça-feira (22), no marco do Dia Mundial da Água, e também na abertura do discurso de Nora Cortiñas, mãe da Praça de Maio, em frente à Casa Rosada. A militante histórica da luta contra a ditadura comemorou seu aniversário de 92 anos como de costume: levantando a voz pelos direitos humanos e pelo bem comum.

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"Chubut demonstrou que lutar funciona, e que deve acontecer todos os dias", continuou Cortiñas, sustentando no pescoço a foto de seu filho, Gustavo, desaparecido durante a ditadura militar, e um cartaz em defesa da água. "Nós, mães da Praça de Maio, estamos vindo a esta praça há 45 anos e estamos orgulhosas da luta de todos vocês."

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Apenas dois dias antes do simbólico 24 de março, Dia pela Memória, Verdade e Justiça que marca a data do último golpe militar na Argentina, as marchas pela água aconteceram em todo o país. Os atos denunciaram o impacto de um modelo econômico e produtivo que consideram insustentável, enfatizando um movimento que vem ganhando força no país: o alinhamento do ativismo pelos direitos humanos, em um país que contabiliza 30 mil desaparecidos na última ditadura (e continua contabilizando assassinados pelo Estado em democracia), e a agenda ambiental. 

Não à toa: a seca, incêndios – sendo o último episódio mais preocupante o ocorrido na província de Corrientes, há três meses impactado pela seca e pelo fogo –, a expansão da fronteira agrícola, os agrotóxicos, a especulação imobiliária e o avanço de projetos extrativistas afetam diariamente todo o território e a qualidade – e possibilidades – de vida.


"A água vale mais que tudo: basta de extrativismo", dizia faixa na Praça de Maio, na marcha pela água nesta terça-feira. / Fernanda Paixão

Mercantilização de bens comuns

Esse modelo representa um braço importante da aposta econômica na América Latina, o que não é diferente no governo nacional argentino, aprofundada pela necessidade de dólares para o pagamento da dívida bilionária com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

O atual modelo econômico da América Latina não é diferente do adotado pelo governo nacional argentino, com o agravante da necessidade de dólares que Buenos Aires tem para conseguir pagar sua dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Seus críticos apontam para um inevitável aumento de exportações em detrimento do mercado interno e, em consequência, do fortalecimento do monocultivo.

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"É um retrocesso enorme para a Argentina e uma ameaça concreta à água", pontuou ao Brasil de Fato Beverly Keene, integrante do coletivo Diálogos 2000 e quem acompanhou a Nora Cortiñas durante a marcha nesta terça-feira. "Em letras pequenas, mas muito concretas, esse acordo propõe o aprofundamento do modelo extrativista para aumentar as exportações e gerar divisas para pagar o FMI e outras dívidas ilegítimas", disse. "Reivindicamos o direito da água diante da megamineração, das represas, do avanço da agroindústria com seus tóxicos, do fracking e todo um modelo econômico produtivo destrutivo e sempre financiado com o endividamento e com a especulação."

Nesse sentido, a preocupação de grande parte da sociedade civil com o acordo com o organismo estará presente nas marchas pelo aniversário do golpe que instaurou a ditadura em 1976. O acordo aprovado pelo Congresso argentino prevê que o FMI revisará trimestralmente as contas públicas do país.

"Começamos a ser co-governados e não queríamos isso. Não votamos para isso", disse Nora Cortiñas, seguida de aplausos, na histórica Praça de Maio. "Dizemos 'não' à política econômica do governo que abre as portas ao FMI."

"A água não se vende"


"A água não se vende: se defende": manifestante na Marcha pela Água, em Buenos Aires. / Fernanda Paixão

Declarado pela Organização das Nações Unidas (ONU), o dia 22 de março é reconhecido como o Dia Mundial pela Água desde 1993 e, neste ano, aconteceu no marco da semana da Greve Mundial pelo Clima, impulsionada por movimentos ambientalistas da Europa.

A marcha pela água na capital federal, em Buenos Aires, foi a segunda convocada pela Rede de Organização da Marcha Plurinacional pela Água para os Povos, em conjunto com a agrupação Basta de Falsas Soluções (BFS).

"A água cruza todas as lutas do país contra o neoliberalismo, o saqueio, o fracking, a megamineração, a extração de petróleo, o agronegócio", diz Mariano Sánchez Toranzo, integrante da Campanha Plurinacional em Defesa da Água pela Vida. "Nesta campanha em defesa da água, tratamos de abordar diferentes perspectivas: falamos sobre a soberania da água, a gestão pública, as atividades que a contaminam, as diferentes cosmovisões dos povos originários, a perspectiva dos jovens, jornalistas, de documentaristas, do ecofeminismo. E também, sobre como a dívida externa e tratados de livre comércio seguem gerando a perda de soberania dos povos sobre os territórios que habitamos."

No documento conjunto lido ao final do ato na Praça de Maio, os movimentos reivindicam o reconhecimento da água como sujeito de direito, "com toda a regulamentação que isso implica", e o tratamento do projeto de lei das zonas pantanosas (como as afetadas pelos incêndios em Corrientes), que representaM mais de 20% do território do pais.

O documento denuncia os delitos ambientais provocados por corporações como Barrick, Monsanto/Bayer, Chevron, Equinor, Shell e YPF, com o respaldo de políticas favoráveis a práticas extrativistas e sem o devido controle e proteção à biodiversidade e comunidades. Além disso, repudia os interesses econômicos sobre a água, sua mercantilização nos mercados internacionais e a privatização de fontes de água doce.

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Um dos efeitos ambientais do modelo vigente se manifesta sobre as comunidades indígenas wichí no norte argentino. "Hoje em dia, nossos filhos morrem por desidratação", publicaram na data, na página do Movimento de Mulheres Indígenas pelo Bem Viver. "Os territórios que habitamos foram saqueados, contaminados e dissecados pelas empresas extrativistas. Não há água, ao contrário: aumentam os incêndios ao longo de todas a latitudes de nossos territórios."


Marcha Plurinacional em Defesa da Água em Buenos Aires. / Fernanda Paixão

Edição: Thales Schmidt