Desinformação

“PL das Fake News” pode ter urgência aprovada pela Câmara nesta quarta; entenda o debate

'Sociedade precisa ter capacidade de contestar quando são feitas certas moderações de conteúdo', defende Renata Mielli

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Entre outras coisas, PL 2630 impõe às empresas obrigações relacionadas à transparência em casos de moderação e suspensão de conteúdos das plataformas - Marcello Casal Jr. / Agência Brasil

 

Entrou em debate na Câmara dos Deputados, nesta quarta-feira (6), a tramitação de urgência* do Projeto de Lei (PL) 2630/2020, conhecido como “PL das Fake News”. Com o mérito (conteúdo) já aprovado desde 2020 pelo Senado, de onde veio originalmente, a proposta gera polêmicas pelo fato de modificar a legislação brasileira em questões como a responsabilidade em alguns ambientes da internet.

A rigor, o PL cria medidas de combate à disseminação de conteúdos falsos nas redes sociais e nos serviços de mensagens privadas, como é o caso do WhatsApp e do Telegram. Também exige, por exemplo, que provedores de internet, redes sociais e aplicativos tenham uma representação jurídica em território nacional para se comunicarem com as autoridades brasileiras, quando necessário.

Entre outras coisas, o texto impõe ainda às empresas transparência em casos de moderação e suspensão de conteúdos das plataformas, por exemplo.

“A sociedade precisa ter informações e precisa ter capacidade de contestar quando esse tipo de moderação é feito porque isso pode cercear a liberdade de expressão”, considera a jornalista Renata Mielli, coordenadora do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e integrante da Coalizão Direitos na Rede.

Em entrevista ao Brasil de Fato, a jornalista disse avaliar o PL como “um passo importante” para que as plataformas tenham transparência e garantam também os direitos dos seus usuários quando há moderação de conteúdos.

Uma das maiores especialistas no tema, Mielli também reflete sobre aspectos positivos e negativos da medida. Confira a seguir a entrevista na íntegra.  

BdF – Não é novidade para ninguém que a gente vive já há algum tempo uma epidemia de fake news que gera uma cascata de problemas. Eu queria começar perguntando a você o que tem de positivo em um texto como esse que tramita na Câmara. Você poderia pescar algumas coisas aqui pra gente?

Primeiro, é importante dizer que esse PL dá um passo importante pra que o Brasil regule a atividade dessas grandes plataformas de rede social e internet que prestam serviço no mercado brasileiro. São, em geral, empresas multinacionais e que não têm uma legislação específica que a regule no país.

Nesse sentido, uma das preocupações do PL é encontrar e trazer à tona pra sociedade informações sobre como se dá o processo de moderação e funcionamento dessas plataformas, pra que a gente possa enfrentar a disseminação de conteúdos tóxicos, como a desinformação, a fake news.

Então, o PL é bastante robusto nas medidas de obrigação de transparência por parte das plataformas, de como elas realizam o seu processo de moderação, de como conteúdos são suspensos, quais as motivações. [O PL] define um rol importante de transparência sobre conteúdos impulsionados de publicidade porque é importantíssimo pra que o usuário saiba quando ele está se deparando com um conteúdo de publicidade ou patrocinado, e não apenas com conteúdo editorial.

O braço da transparência nesse PL é muito importante pra sociedade. Além disso, ele também cria uma série de regras e procedimentos que precisam ser seguidos por essas plataformas pra garantir o direito do usuário no momento em que ele tem seus conteúdos moderados porque há muita moderação feita de forma equivocada pelas plataformas, seja retirada de conteúdo, suspensão de contas ou rotulação equivocada de conteúdo.

A sociedade precisa ter informações e precisa ter capacidade de contestar quando esse tipo de moderação é feito porque isso pode cercear a liberdade de expressão. E também o PL define vedações, como ao uso, por exemplo, de mecanismos de disparo em massa por parte de usuários que usam robôs ou usam tecnologias externas às plataformas pra garantirem maior alcance de conteúdo em serviços de mensageria. Isso fica vedado por esse PL.

Então, é um PL que tem ampla gama de comandos, todos na perspectiva de garantir maior empoderamento, mais transparência e mais segurança pra quem usa essas plataformas.

BdF – A proposta obriga os provedores a serem representados por pessoa jurídica no Brasil, o que hoje não ocorre, por exemplo, com o Telegram. Recentemente a plataforma viveu um bloqueio no país, por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do STF, por não atender decisões judiciais que pediam a interdição de perfis que disseminam conteúdos falsos. Você afirmou, na ocasião, que esse bloqueio precisaria ser encarado sob a ótica da soberania nacional. Esse ponto do PL estaria de acordo com essa mesma perspectiva ou vocês da Coalizão teriam alguma ponderação a fazer a respeito dessa proposta de regra?

Olha, falando aqui pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e com base na minha perspectiva especificamente, eu acredito que sim. Acho que essa obrigatoriedade de se ter uma representação no país é fundamental pra que essas empresas possam ser responsabilizadas, questionadas, instadas pelo Estado brasileiro, pela sociedade civil do país nas ocasiões em que seja necessário.

Haver uma representação legal, um escritório constituído é fundamental pra que a gente possa garantir a aplicação desses vários dispositivos, inclusive. Essas plataformas que não possuem essa representação podem ser procuradas ou questionadas de que maneira?

Então, considero que é um ponto importante, mas ele incita determinadas polêmicas. Há aqueles que consideram que essa obrigatoriedade é inócua, por exemplo, há aspectos polêmicos. Mas eu considero que esse é um dos pontos fundamentais porque as autoridades brasileiras precisam se reportar a uma representação oficial da empresa no país.

BdF – Na manifestação feita pela Coalizão, vocês lamentam o fato de a maior parte das plataformas não ajudar a construir o debate e um aprimoramento do texto. Como é o diálogo entre essas empresas e as entidades da sociedade civil que acompanham o tema?

Com algumas empresas a gente tem, sim, um diálogo. Não necessariamente ele envolve a discussão de busca de consensos ou de um texto comum, mas a gente procura pelo menos, na medida em que haja uma abertura, ouvir a posição dessas empresas.

Com relação ao debate do PL 2630, esse diálogo aconteceu mais no inicio do debate, quando o PL estava no Senado, e depois meio que se perdeu de alguma maneira. A gente reduziu bastante o diálogo com essas plataformas, a não ser nos momentos em que esse debate foi feito de forma pública. Em audiências públicas, algumas participaram dos debates, como na audiência pública que ocorreu no final do ano passado, presencialmente e em Brasília.

Com algumas, a gente consegue manter um diálogo mais aberto, com outras menos. Então, existe, sim, em alguma medida, o diálogo. Agora, que é preciso deixar bastante claro pras pessoas é que os interesses de algumas dessas empresas são diametralmente opostos aos da sociedade civil e do interesse público.

E isso fica bastante claro quando a gente vê plataformas que têm o poder econômico e de mercado como o do Google usando esse seu poder econômico e o seu poder de influência pra fazer terrorismo contra um projeto de lei dizendo que ele vai acabar com a internet como a gente a conhece ou que vai trazer prejuízos pros usuários, o que não é verdade, até porque o projeto não regula a internet.

A internet não se restringe ao Google, ao Facebook; ela é uma coisa muito maior. Então, só pra demonstrar aqui também qual o principal obstáculo pra esse diálogo, que é o fato de serem perspectivas muito diferentes sobre como a sociedade brasileira precisa enfrentar a discussão sobre como essas plataformas precisam prestar serviço no Brasil pautas pelo interesse público, e não apenas pelo interesse delas.

BdF – A atual versão do texto também estende ao terreno das redes sociais a chamada “imunidade parlamentar”. Levando em conta o acirramento ideológico que a gente sabe que há hoje no Brasil, sobretudo no meio virtual, esse trecho do PL não seria um tanto escorregadio?

Eu acho que a menção à imunidade parlamentar que está no projeto de lei ruim. Acho, inclusive, de alguma maneira, desnecessária porque a imunidade parlamentar é uma prerrogativa que os parlamentares já possuem previstas na Constituição Federal. Essa imunidade parlamentar material é importante pra preservar e garantir a liberdade que cada parlamentar tem no seu exercício da sua representação pública.

Segundo o relator Orlando Silva (PCdo B - SP), a reafirmação desse dispositivo constitucional na lei não tem o intuito de proteger ou criar uma blindagem pra impedir que as plataformas moderem conteúdos produzidos e publicados por autoridades públicas. Inclusive porque há todo um rol no PL com maiores responsabilidades pros agentes públicos que utilizam as redes sociais.

No entanto, apesar de haver essa avaliação, eu acho que a existência desse artigo pode trazer riscos pra que a gente tenha mecanismos mais céleres de moderação de conteúdos de parlamentares que usam as redes pra promover desinformação, discursos de ódio e outras coisas.

Vamos pegar agora [o que houve] recentemente o exemplo do Eduardo Bolsonaro, que fez aquele ataque à Míriam Leitão. Particularmente, eu considero que aquela manifestação dele em rede social não é protegida pela imunidade parlamentar. Inclusive, o próprio PCdoB, partido do deputado Orlando Silva, entrou com pedido de cassação de mandato do deputado Eduardo Bolsonaro a partir dessa manifestação.

Então, há interpretações em torno desse artigo que está na lei. Pra mim, se eu tivesse o poder de alterar isso, faria pra evitar qualquer tipo de má interpretação e risco para o debate público nesse dispositivo, mas é o debate que está colocado.

BdF – Esse projeto foi aprovado no Senado, veio originalmente de lá e agora enfrenta essa batalha na Câmara. Qual o saldo de lá pra cá? Como você avalia o debate que tem sido gerado em torno desse PL?

Primeiro, acho que o próprio processo de debate em si. No Senado, foi aprovado de forma relâmpago, sem nenhum tipo de debate público coletivo, aberto.  Só pessoas ou organizações que tinham acesso direto aos senadores conseguiam fazer reuniões bilaterais.

De lá pra cá, foram realizadas, por iniciativa do deputado Orlando, dezenas de audiências públicas que reuniram centenas de pessoas com visões bastante diferentes, inclusive das empresas, o que eu acho que produziu um projeto de lei que é a média do que são as posições existentes no Congresso Nacional.

Acho que ele avança muito nos quesitos que dizem respeito à transparência, à garantia de direitos dos usuários que têm suas contas como alvo de moderação. Eu mesma, por exemplo, fui alvo de uma moderação semana passada do podcast Tecnopolítica, que fazia uma crítica às plataformas pela ação delas contra o PL, e o Youtube me classificou como perigoso.

Então, esse tipo de coisa não pode acontecer. A sociedade tem que ter mecanismos de recursos e também todas as questões que envolvem mais responsabilidade com agente público, a existência de sanções, que são proporcionais e adequadas.

Então, acho que o projeto é um passo importante pra que o Brasil garanta obrigações pra que essas empresas tão poderosas no mundo e que têm tanta capacidade de interferência no debate público cumpram regras pra garantir um ambiente de comunicação mais saudável no nosso país.

* Atualização: Câmara rejeita pedido de urgência para “PL das Fake News”, com apoio do governo Bolsonaro

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho