Coluna

Menos ressentimentos, mais racionalidade

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Também como numa guerra religiosa, foram demonizados os inimigos de lado a lado – e um dos lados, com a ajuda de aparelhos de ideologia, desferiram não apenas um golpe, mas golpes sucessivos - Ricardo Stuckert
O PT, por abrigar o maior líder político deste país, é a força hegemônica contra o bolsonarismo

“Ressentimentos passam como o vento
São coisas do momento
São chuvas de verão

Trazer uma aflição dentro do peito
É dar vida a um defeito
Que se extingue com a razão.”

Chuvas de Verão, Fernando Lobo

 

Num campo ideológico onde a religião é relativizada, causa espanto a forma como emerge, entre setores da esquerda, a oposição ao nome de Geraldo Alckmin como vice da chapa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República.

É demonização. A luta do bem contra o mal que polarizou o povo brasileiro nos anos posteriores à Constituinte de 1988 foi trazida para dentro de uma aliança ampla contra o fascismo, num momento em que a única polarização útil – e aceitável – para os democratas é aquela que os eleitores já definiram, entre um candidato do campo democrático, Lula, e um fascista, Jair Bolsonaro. Qualquer postura que não seja essa é manobra diversionista.

Mal-estares e desconfortos devem ser tratados com remédios e sangue frio. No futuro, vencida a luta contra o autoritarismo, as diferenças que separam a esquerda democrática e o centro político podem, e devem, ser recolocadas. Aliás, é recomendável que, iniciado o novo governo – e torcendo para que ele seja de Lula – essas diferenças se recoloquem. Aí as esquerdas terão o papel de tensionar as forças políticas para, no mínimo, retomar os direitos de cidadania da população pobre, aviltados pelos governos que se seguiram ao da presidenta Dilma Rousseff.

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A aliança que, em 1985, viabilizou a derrocada final da ditadura militar de 1964, era enorme. Naquele barco entraram a esquerda, o centro e até setores de direita; evangélicos e católicos; chefes políticos locais e novas lideranças; e uma massa imensa de brasileiros não filiados a partidos, ricos e pobres, com ou sem militância política, mas convencidos de que nada seria possível sem o restabelecimento do estado democrático de direito. As demais brigas foram deixadas para depois.

No Colégio Eleitoral que elegeria indiretamente o sucessor do último general-presidente, João Figueiredo, o candidato de oposição Tancredo Neves (PMDB) teve 480 votos, contra 180 do candidato governista, Paulo Maluf.

O Partido dos Trabalhadores, recém-formado, pode se dar ao luxo de não se aliar à burguesia e de não compactuar com um Colégio Eleitoral criado pela ditadura para referendar as escolhas da caserna – embora, naquele momento, estivesse sendo usado para tirar o Brasil do domínio dos militares. O partido tinha uma bancada de apenas 13 deputados, num colegiado de 686 votos.

Tancredo, sem o apoio do novo partido de esquerda que saía de um movimento sindical cujo renascimento foi decisivo para o processo de enfraquecimento do regime militar, obteve 72,4% dos votos (mas com a ajuda de três parlamentares petistas que desobedeceram a orientação do partido).

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Nessa ampla aliança, os demônios de antes, aliados do governo militar, até ajudaram com os remos para fazer a travessia, mas aquele momento seria apenas um interregno da luta de classes inevitável e necessária nesta sociedade desigual. A disputa ideológica encontraria a sua arena na Constituinte, onde os envolvidos na luta pela democracia (para todos) reassumiram seus papéis de classe (a banda conservadora, na defesa dos interesses de poucos), mas ainda assim a superação do autoritarismo permitiu uma repactuação social. Foi nesta arena que o PT encontrou adubo para florescer.

O avanço de um neoliberalismo tardio em terras brasileiras, após a assinatura desse pacto social, e a eleição dos avanços sociais da Constituição como o inimigo a ser combatido pelos setores conservadores, construiu gradativamente uma polarização semelhante àquela antecedeu o golpe militar de 1964.

Também como numa guerra religiosa, foram demonizados os inimigos de lado a lado – e um dos lados, com a ajuda de aparelhos de ideologia com tendências autoritárias incrustrados no Estado, desferiram não apenas um golpe, mas golpes sucessivos contra as instituições democráticas.

O efeito colateral das investidas contra o contrato social da Constituição de 1988 foi o processo de fascistização do país. Era óbvio que isso ia acontecer. Se você investe contra a democracia, a democracia derrete – simples assim, óbvio assim.

A interrupção do golpe contra a democracia brasileira tornou-se a questão central, como em 1985. Só que, entre 1985 e 2022, o PT, que era tão pequeno a ponto de não colocar em risco uma aliança amplíssima para derrubar a ditadura, agora é a peça central em toda e qualquer articulação para defender o que resta da democracia. Lula é o dono da bola. Mas só coloca o time em campo se convencer os jogadores a chutarem em gol. E se convencer a torcida que seu time tem chances de vitória.

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O PT, por abrigar o maior líder político deste país, é a força hegemônica contra o bolsonarismo. Em torno dele as forças democráticas devem se agregar. Mas é apenas uma parte do movimento de resistência contra o autoritarismo. É um grande erro de alguns setores de esquerda, miopia política de grau máximo, imaginar que um partido – grande, mas dentro de um quadro partidário extremamente pulverizado, onde ser grande representa apenas 20% dos votos em eleições proporcionais --, nesse cenário político, consiga caminhar sozinho, ou apenas na companhia de seus iguais. Sectarizar a disputa eleitoral é quase um delírio.

Os grupos que tão tenazmente combatem Alckmin, como se ele fosse o grande problema do país, devem imaginar que as forças progressistas, em estado puro, terão densidade suficiente para eleger uma bancada parlamentar que dê estabilidade ao governo Lula; que poderão persuadir os militares (cuja ideologia hoje é fundada no antipetismo) a voltarem quietinhos para a caserna, convencer os malucos que se armaram até os dentes a entregar suas armas na delegacia da esquina e conter as forças policiais dos estados dentro dos seus quartéis. Isso é conto da carochinha.

Não é hora de bobagem.

 

*Maria Inês Nassif é jornalista e cientista política.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante