Agroecologia

Como construir territórios sustentáveis resilientes às mudanças climáticas no semiárido?

Experiências de pequenos agricultores servem de exemplo para enfrentar a crise climática

Ouça o áudio:

Estudo do Método LUME, realizado pelo IRPAA no âmbito do Protejo DAKI Semiárido Vivo. - Acervo IRPAA
Esses pequenos agricultores têm conhecimentos que podem ajudar a mudar a vida do planeta

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) lançou no mês de março mais um relatório, desta vez, os pesquisadores alertaram para o aumento das estiagens, das temperaturas e até para o desaparecimento de rios no Nordeste brasileiro. Também foram citados os territórios do sul da Austrália e do Mediterrâneo aparecem como as três regiões do planeta em que os rios estão secando. 

Segundo o relatório, o aumento da frequência e intensidade das secas pode fazer com que rios perenes se tornem intermitentes; e rios intermitentes desapareçam, ameaçando peixes de água doce em habitats já caracterizados por calor e baixa precipitação de chuvas. Com o avanço da crise climática, a sobrevivência de populações rurais, que representam quase 30% da agricultura familiar do Brasil, ou seja, cerca de 1,5 milhão de famílias, fica ameaçada. 

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Antônio Barbosa, coordenador do Projeto Daki Semiárido Vivo - do qual a Articulação Semiárido Brasileiro (Asa Brasil) faz parte -, afirma que é necessário mudar a forma de se produzir nesta região, pois a agricultura tradicional tem piorado a situação ambiental e os mais afetados é a população mais pobre.

“O que o IPCC traz é alarmante e preocupante. E isso tem levado inclusive à desertificação no semiárido brasileiro, é só olhar para os estados de Alagoas e Paraíba que estão com situações mais graves. E isso e você deveria mudar a forma de fato de você produzir, porque a agricultura industrial tem aumentado o uso do solo, da água, quando deveríamos caminhar num outro caminho. E é uma pena que justamente os povos mais pobres sejam os povos que mais vão sofrer e o que mais tem sofrido com as mudanças climáticas”, analisa.

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Segundo Barbosa, o Nordeste já enfrentou algumas secas, a pior delas foi em 2018, que resultou em inúmeras consequências, como a morte de parte da biodiversidade e a falta de água, mas a situação não foi pior porque havia investimento em políticas públicas na região e agora elas estão paralisadas, como é o caso do Projeto de Cisternas


O relatório do IPCC traz um mapa global da tendência do fluxo médio anual de rios feito por 7.250 observatórios entre 1971 e 2010. / Agência Brasil/ Marcello Casal Jr

Saberes populares 

O representante da ASA explica que os povos que convivem no semiárido têm práticas que respeitam a natureza e que precisam ser valorizadas. “As áreas que estão preservadas na Caatinga têm esses agricultores. Imagina a quantidade de gente que vive aqui, tem que ter algum conhecimento para essa quantidade de pessoas produzir e eles continuam produzindo muito. E esse conhecimento é justamente a relação com a natureza, eles respeitam e olham para a natureza a partir das suas características”, salienta. 

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E são exatamente esses conhecimentos populares e tradicionais que apontam caminhos possíveis para enfrentar a questão climática. É assim que a família Gonçalves vive na comunidade Boa Vista, no distrito de Massaroca, no município de Juazeiro, no semiárido da Bahia. Em apenas cinco anos, entre 2016 e 2021, a família fez a transição para uma produção agroecológica e consolidou nove subsistemas produtivos, responsáveis pela produção e comercialização de alimentos, como explica Emily da Silva Gonçalves. 

“Demorou um tempo para percebermos que cultivar de forma tradicional não funcionava, que estava prejudicando a nós e o ecossistema. Começamos com pequenas ações na horta da família, depois nos outros subsistemas, surgiu ainda o sistema agroflorestal e hoje temos trabalhado de forma agroecológica no sistema de quintal, canteiro telado, sistema agrocaatinga e forragem integrando com as criações de caprinos, ovinos e aves”, afirma.


Agrossistema da família Gonçalves na Bahia / Acervo IRPAA

Ao todo são quatro pessoas, mas com o engajamento dos adultos e dos jovens da família, os Gonçalves têm garantido diversidade produtiva no semiárido baiano. Lá eles plantam hortaliças, frutíferas nativas, forrageiras desde batata doce até coentro e algumas ervas medicinais como manjericão e arruda. Emily me conta que eles comercializam quase toda a produção, mas em pequena escala e as principais são banana, maracujá, salsa, cenoura beterraba, abóbora mamão e pimenta. 

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“Apesar das dificuldades para comercializar e, às vezes, produzir, plantar no semiárido é ótimo e as condições do solo, na propriedade sempre foram boas e agora estão bem melhores. Houve um período de estiagens prolongadas e no cenário climático, podemos perceber uma desregulação coordenada por fatores ambientais, principalmente pelo avanço das monoculturas. Tivemos também um período em que ficamos quase sem água no poço artesiano para produzir, mas conseguimos superar e continuar produzindo na propriedade”, relata.

Intercâmbio

A família Gonçalves se tornou referência quando o assunto é agrossistemas resilientes. No Projeto Daki Semiárido Vivo, a família Gonçalves troca experiência com outras de regiões semiáridas da América Latina. 

O Daki Semiárido Vivo conta com a Articulação Semiárido, no Brasil, e com as organizações Fundapaz, da Argentina, e Funde, de El Salvador, em um programa de troca de experiências e de capacitação de outras famílias. A ideia do projeto que tem apoio do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola é promover a implementação de agroecossistemas como o da família Gonçalves em outros locais, com o intuito de construir territórios sustentáveis, resilientes às mudanças climáticas, como afirma Antônio Barbosa.


Subsistema de caprinocultura e a ovinocultura da família Gonçalves / Acervo IRPAA

“O projeto também está tentando sistematizar e fazer um processo de formação intercambiáveis.  Com isso o agricultor aqui do Brasil, do Ceará discute agricultura lá com pessoal na Argentina e com El Salvador que tem realidades socialmente parecidas, mas que tem ambientes que são únicos em cada um de suas regiões, mas que esses conhecimentos podem ter valor enorme, inclusive para mudar a vida do planeta”, explica o coordenador do projeto.  

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A iniciativa busca entender ainda como esses agroecossistemas têm garantido resiliência às famílias frente às mudanças climáticas, o custo de implementação desta política em comparação com outras ações de combate à fome e às mudanças climáticas e também como multiplicar estes conhecimentos junto às famílias que ainda não têm acesso. 

Além de ameaçar a vida desses agricultores, as mudanças climáticas na caatinga ameaçam a sobrevivência de 31 mamíferos e mais de 350 plantas. 

Edição: Daniel Lamir