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"Sem Caribe, não há América": campanha busca visibilizar a necessidade da integração regional

Economista haitiano propõe uma "pedagogia das revoluções" como estratégia contra o domínio imperialista em toda a região

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |

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Protesto em Porto Rico em fevereiro deste ano por melhores condições de trabalho - AFP

Não existe um espaço tão pleno de diversidade, heterogeneidade cultural e, ao mesmo tempo, com tantas semelhanças como no Caribe.

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– Rigoberto López Pego, cineasta cubano (1947–2019)

A luta por soberania e as problemáticas impostas pela lógica colonial, racista e capitalista dos países imperialistas costuma unir as pautas e as estratégias dos movimentos sociais da América Latina, mas pouco se fala ou se considera os países do Caribe. O diagnóstico parte das próprias organizações caribenhas durante a 3ª Assembleia Continental da Alba Movimentos, que aconteceu na Argentina. Entre os dias 27 de abril e 1º de maio, os representantes de países caribenhos colocaram essa temática em discussão nos debates e nas plenárias. Na oportunidade, lançaram a campanha "Sem Caribe, não há América", reunindo delegados dos países caribenhos para definir prioridades e problemáticas em comum para estender o chamado à América Latina.

"Há uma série de narrativas coloniais e imperiais sobre o Caribe e que o invisibiliza continuamente”, afirma o portorriquenho e um dos idealizadores da campanha, Carlos Alicea, do Movimento Ñin Negrón. “Estabeleceram a narrativa de que o mar nos separa, mas nossos povos originários pensavam diferente. Essas vias marítimas do Mar do Caribe justamente nos unem. Queremos retomar essa versão da história, redescobri-la, reforçá-la.”

No processo de construção da campanha, as organizações fizeram um levantamento e destacam que, atualmente, 14 territórios ainda são colônias dos Estados Unidos ou de países da Europa. Entre eles, está Porto Rico, Ilhas Virgens Britânicas, Cayman e Montserrat, para citar algumas. Outros territórios que declararam sua independência, alguns já há muitas décadas, continuam submetidos à lógica imperial, seja através de intervenções militares, de organismos internacionais (como a ONU e a OEA) ou no próprio processo eleitoral.

“É necessário consolidar uma base de apoio e solidariedade entre os países do Caribe para articular ações concretas no campo educacional, no desenvolvimento econômico e integrar esse conceito fundamental da Nossa América. É a única forma que podemos efetivamente enfrentar e libertar nossos povos do imperialismo estadunidense em nível continental", avalia Alicea.

O muro caribenho

A campanha também busca dar visibilidade aos problemas atuais do Caribe. Um dos episódios recentes é a materialização da divisão forjada pelo imperialismo entre as populações caribenhas em um muro que divide uma mesma ilha. O atual presidente da República Dominicana, Luis Abinader, concretizou sua promessa de campanha em fevereiro deste ano com a construção de um muro, obra que tem previsão de 9 meses de duração. O muro marca a divisão com o Haiti, que vive um processo de grave crise institucional e humanitária dada as inúmeras intervenções estrangeiras no país, culminando no assassinato do último presidente haitiano, Jovenel Möise.

:: O que se sabe até agora sobre o assassinato do presidente do Haiti ::

“Historicamente, a ilha sempre foi dividida, mas pelos intervencionistas”, explica Elsa Sánchez, da Articulação Nacional Camponesa da República Dominicana. Ela destaca que a forma de separação entre os povos caribenhos se dá também na forma de burocratização entre as fronteiras, com a exigência de vistos para cruzar os territórios.

“A América precisa conhecer o que fazemos e as problemáticas que temos”, afirma Sánchez. “Cuba luta contra o bloqueio econômico há mais de 60 anos. Porto Rico luta por sua independência dos Estados Unidos. Os haitianos chamam à solidariedade internacional diante das condições políticas impostas pelo imperialismo. Na República Dominicana, estamos lutando contra a impunidade dos acordos comerciais que só beneficiam os poderosos e o povo continua explorado”, diz.

Uma proposta estratégica de resistência antiimperialista 

Portanto, evitar um caminho de integração e articulação das lutas tem sido um dos objetivos imperialistas, o que também ajuda a explicar o pouco conhecimento da América Latina sobre a conjuntura caribenha e as lutas atuais e históricas desses territórios. 

“É importante ressaltar que o Caribe é parte da América e que, se bem sabemos disso geograficamente, há um apagamento narrativo”, aponta Daphnee Joseph, do Comitê Democrático do Haiti. “Estrategicamente, o Caribe é muito importante para o imperialismo, em termos comerciais e experimentais. São territórios que muitas vezes servem como terreno de ensaio capitalista que, se funciona, é repartido para toda a região.”

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Nesse sentido, a campanha levanta uma proposta estratégica de ação coordenada, que começa com a superação do bloqueio informativo e com a conscientização sobre a transversalidade dos interesses imperialistas em comum sobre a América Latina e o Caribe.

“O Caribe é uma zona de povos rebeldes, que nunca aceitou ser submetida à lógica total do capital, e temos uma vasta história de resistência que começou imediatamente após a chegada de Cristóvão Colombo”, descreve o economista e professor haitiano Camille Chalmers, da Plataforma para o Desenvolvimento Alternativo do Haiti (Papda).

“Desde o final do século 15, a resistência à dominação colonial se deu inclusive com a colaboração fraternal entre os povos. [O dominicano] Máximo Gómez foi general do exército que liberou Cuba; Fidel Castro tomou o fuzil, com 18 anos, para derrotar Trujillo, na República Dominicana; militantes dominicanos morreram no Haiti defendendo a dignidade desse povo, e haitianos morreram na República Dominicana em 1965 durante a invasão militar norte-americana”, diz.

“Há uma maravilhosa resistência internacionalista, fraternal, coletiva, também em um aspecto intelectual, com uma longa tradição de pensadores marxistas, críticos, que sempre insistiram na importância de pensar o Caribe como zona rebelde, de resistência”, ressalta Chalmers.

Nesse sentido, o economista, que também é coordenador do Capítulo Haiti da Assembleia dos Povos do Caribe, propõe o que chama de “pedagogia das revoluções”, um diálogo entre as experiências anticoloniais nos diferentes territórios da região latino-americana. A proposta parte do pressuposto de que os interesses imperialistas são comuns a toda a região.

Nesse sentido, Chalmers destaca que há várias razões para entender a importância do Caribe para o processo de acumulação do sistema capitalista, o que faz também a resistência latino-americana ser particularmente estratégica nesta região.

“A primeira razão é o desenvolvimento da produção industrial na Ásia. O fluxo crescente de intercâmbio de mercadorias entre o Atlântico e o Pacífico, que transita pelo Mar do Caribe. O segundo aspecto é que, desde o início do século 20, o Caribe foi definido como reserva de mão de obra barata. Isso faz com que, por exemplo, haja mais martinicanos na França do que na própria Martinica”, diz.

“Em terceiro lugar, são os recursos biológicos presentes no Mar do Caribe. Depois, está o fato de que, aproveitando as condições do colonialismo no Caribe, foram instalados uma grande quantidade de paraísos fiscais. Há milhares de empresas importantes que permitem, através do fenômeno da triangulação com empresas fantasmas, acelerar o saqueio dos recursos dos países do sul e a evasão fiscal.”

Para as organizações que compõem a campanha, a própria designação “América Latina e o Caribe” soa como uma redundância, embora ainda seja superada pelo enraizamento da narrativa separatista sobre a região. “É um recordatório da necessidade de reinventar as óticas para entender melhor quem somos”, afirmam no comunicado de lançamento. “Por isso afirmamos: sem Caribe, não há América.”

Edição: Thales Schmidt