Tesoura

“Um Estado mouco”: o que significam os vetos de Bolsonaro a PLs de origem popular

Nos últimos dois anos, presidente barrou diferentes propostas nascidas a partir de demandas e grandes articulações civis

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Vetos de Bolsonaro atingem especialmente projetos de lei que nasceram a partir de aspirações populares
Vetos de Bolsonaro atingem especialmente projetos de lei que nasceram a partir de aspirações populares - Divulgação/PR

Chamou a atenção, na quinta-feira (5), o mais novo veto do presidente Jair Bolsonaro (PL) a uma legislação aprovada após iniciativa e intensa articulação popular. Desta vez, a tesoura do presidente recaiu sobre a Lei Aldir Blanc 2, que previa investimentos anuais da ordem de R$ 3 bilhões no setor cultural até o ano de 2027.

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Os vetos a esse tipo de proposta têm contribuído para alimentar as recorrentes críticas por parte da sociedade civil organizada do campo progressista à gestão do ex-capitão. 

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Para Makota Célia Gonçalves, integrante da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, tais ações do presidente acendem um alerta porque contrariam as expectativas populares em relação ao Estado brasileiro e à sua inserção na dinâmica política de diálogo com as bases sociais.

“Por mais que a gente lute, por mais que tenha se esforçado pra mudar os rumos da administração pública do país, o que a gente percebe? Que ele não leva em consideração os anseios da população, não leva em consideração quem são os donos reais do Estado e a quem esse Estado deve atender.”


Protesto de rua contra gestão Bolsonaro durante pandemia, em Minas Gerais / Mídia Ninja

O texto da Lei Aldir Blanc 2 havia recebido sinal verde da Câmara dos Deputados e do Senado por ampla maioria, após grande mobilização política, social e virtual de segmentos artísticos. Tais grupos pressionavam por um apoio orçamentário de médio prazo para oxigenar as ações no setor, que esteve entre os primeiros a serem afetados pela pandemia.

Assim como essa legislação, Bolsonaro vetou, no último dia 6, outra norma que previa ajuda para o setor cultural, a Lei Paulo Gustavo. O texto da medida determinava a injeção de R$ 3,86 bilhões na área para amenizar os estragos causados pela crise sanitária.

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O chefe do Executivo também barrou quase integralmente, em 2020, os pontos da Lei Assis Carvalho I, aprovada pelo Legislativo para socorrer agricultores familiares impactados pela pandemia.

O projeto de lei (PL) havia nascido a partir de demandas colocadas diretamente por movimentos populares do campo a parlamentares de oposição e foi protocolado pela bancada do PT na Câmara, contando com apoio da maioria das bancadas do Congresso.

Em 2021, foi a vez de a Lei Assis Carvalho II, também voltada para pequenos agricultores e formulada a partir de demandas do setor, ser alvo da impiedade do presidente. O texto do projeto tinha o objetivo de resgatar pontos anteriormente cortados por Bolsonaro na primeira norma.


Responsáveis pela maior parte da produção de alimentos que chegam à mesa do brasileiro, agricultores familiares não tiveram auxílio emergencial específico em 2020 / Mapa/Divulgação

Nesse caso em particular, chamou a atenção o passo a passo da disputa: o ex-capitão vetou o projeto, o Congresso derrubou o corte do presidente, a legislação foi promulgada, mas agora é alvo de uma disputa judicial porque a gestão não vem aplicando os pontos previstos no texto.

No último dia 27, o PT ingressou com uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) junto ao Supremo para pedir que o Poder Executivo federal seja obrigado a cumprir os ditames da lei.

Absorventes

Outro corte recente de Bolsonaro se deu em outubro de 2021 no projeto que previa a distribuição gratuita de absorventes higiênicos a mulheres de baixa renda e em situação de rua, prevista na Lei nº 14.214. A proposta havia sido intensamente defendida nas redes sociais, por exemplo, por parte de mulheres e especialistas que propunham um combate estatal efetivo à pobreza menstrual.

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Após o veto, em março deste ano, Bolsonaro editou um decreto prevendo uma política de distribuição de absorventes de caráter mais restrito do que o que era estabelecido no PL. A nova norma veio dois dias antes de o Congresso avaliar o veto, que já contava com ampla projeção de queda. Por conta disso, a iniciativa foi vista como uma tentativa de evitar a derrota no Legislativo.


No Brasil, 28% das mulheres já deixaram de ir à aula por não poderem comprar absorventes, segundo relatório UNFPA/UNICEF / Foto: Marcelo Casal Jr

Ao mesmo tempo, foi interpretada como forma de pegar carona nas comemorações do 8 de Março. A data tende a mobilizar diferentes grupos de mulheres, segmento em que Bolsonaro tem considerável rejeição, segundo diferentes pesquisas de opinião – levantamento do PoderData publicado em fevereiro, por exemplo, identificou que 59% das mulheres brasileiras consideram o presidente “ruim” ou “péssimo”.

O Congresso acabou derrubando o veto ao PL, e a legislação foi promulgada. “Mesmo assim, a gente olha pra tudo isso, pra esses vetos do Bolsonaro e percebe que é como se as lutas populares não existissem porque você tem um Estado mouco, já que ele barra tudo. Parece que criaram um castelo pra governar, mas um castelo que não ecoa o clamor do povo”, considera Makota Gonçalves, ao falar em “sensação de impotência popular”.  

Neofascismo

No meio político, a tesoura desenfreada de Bolsonaro também é vista como tentativa de calar as vozes das ruas e sua capacidade de comando e emancipação popular.

“A Lei Aldir Blanc foi vetada por um único motivo: ela liberta e empodera quem faz e quem usufrui da nossa riqueza cultural. Isso essa gente que ocupa o poder não tolera. lutemos pela derrubada do veto. Lutemos pela cultura”, disse, por exemplo, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), via Twitter.

Para o presidente da Comissão de Legislação Participativa da Câmara, Pedro Uczai (PT-SC), as iniciativas do presidente que buscam frear PLs de interesse genuinamente popular são a síntese de uma postura política que se comunica com a veia do fascismo.

“Falando aqui das Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc, por exemplo, cabe lembrar que os neofascistas odeiam a arte porque a arte é livre, autônoma, soberana. Arte é rebeldia porque a arte não se subordina, não se ajoelha e, portanto, na própria experiência nazista e fascista, a arte busca a utopia mesmo diante da própria opressão.”  


Bolsonaro enfrenta ampla rejeição no eleitorado feminino / Mídia Ninja

Confronto

Na visão de Uczai, a necessidade de antagonizar com grupos populares que estão por trás de projetos relacionados à cultura, à agricultura familiar, à agenda feminista, entre outros segmentos também é um ponto importante na composição da persona política de Bolsonaro.

“Ele elege seus inimigos por uma postura que o fez como liderança política. É defender ditadura militar, perseguir a esquerda, a cultura, a arte, a universidade, a ciência. A ciência o assusta, a cultura o assusta porque cultura, ciência, conhecimento, educação deixam as pessoas mais livres, autônomas, rebeldes pra fazerem um posicionamento crítico.”

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O presidente já tesourou diferentes propostas legislativas nessas áreas. Um dos que tiveram realce nesses últimos anos foi o PL que garantia R$ 3,5 bilhões a serem repassados pela União para que os demais entes federados assegurassem acesso à internet para estudantes e professores da rede pública de ensino.

O projeto alcançaria 18 milhões de alunos e 1,5 milhão de docentes por meio do aporte de R$ 3,5 bilhões a serem empregados na ação. A medida partiu de dificuldades apresentadas pela comunidade escolar diante dos desafios impostos pela pandemia, mas foi vetada em março de 2021.

“É uma linha de ação política pautada numa perspectiva de confronto constante, de tensionamento das instituições do sistema político o tempo inteiro”, resume o professor Thiago Trindade, do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB).

O pesquisador sublinha que a expectativa popular de sanção presidencial aos PLs que nascem dos anseios populares é algo ligado a um padrão de política adotado em governos anteriores e que vem sendo extinto pelo atual ocupante do Palácio do Planalto.

“FHC, Lula, Dilma e até mesmo o Temer mantiveram algo desse padrão esperado de uma racionalidade de governo. Já pro Bolsonaro não interessa se um PL foi fruto de uma grande articulação da sociedade porque, pra ele, o que interessa é justamente manter o conflito com eles o tempo inteiro. O interesse não é em conciliar, e sim em se colocar como inimigo da democracia.”

Edição: Rebeca Cavalcante