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Justiça Federal anula compra de terrenos do povo Mura pela Potássio do Brasil

A juíza também determinou que empresa retire placas de identificação; AGU quer que processo saia das mãos de Jaiza Fraxe

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Acima, o casal indígena Jair Ezogue dos Santos e Maria Ezogue, que foi pressionado a vender sua terra para a empresa Potássio do Brasil - Bruno Kelly/Amazônia Real

A Justiça Federal do Amazonas determinou a anulação das compras de terrenos pertencentes a indígenas e ribeirinhos da comunidade Soares e ‘vizinhanças’, no município de Autazes (AM), pela empresa Potássio do Brasil, acatando a petição do Ministério Público Federal. A decisão é da juíza Jaiza Fraxe, da 1ª Vara Federal, do dia 11 de maio. Ela também determinou a retirada das placas da Potássio do Brasil instaladas à margem das áreas adquiridas dentro da comunidade Soares e que a empresa apresente o Estudo de Componente Indígena (ECI).

Na decisão, Jaiza Fraxe determina “a declaração da nulidade de todos os negócios jurídicos e contratos verbais ou escritos incidentes sobre roçados e áreas de uso tradicional firmados entre a empresa Potássio do Brasil (seus prepostos e interlocutores) e os indígenas/ribeirinhos na região da aldeia Soares e vizinhanças”. A juíza também determina que a empresa “não impeça ou realize qualquer ato contrário ao uso tradicional dos territórios objetos dos acordos irregularmente firmados, possibilitando aos ribeirinhos e indígenas retomar de imediato seus roçados e plantios de subsistência”.

No dia 27 de março, a agência Amazônia Real publicou com exclusividade que indígenas do povo Mura venderam, sob pressão, terrenos para a empresa. Um deles é Jair Ezogue dos Santos, de 83 anos, bisneto do fundador da comunidade, um indígena Mura que lutou na Revolta da Cabanagem (1835 e 1840). A agência também produziu um documentário curta-metragem sobre Soares e Urucurituba, onde os indígenas falam sobre a pressão para vender seus terrenos, intitulado “A Nova Guerra dos Mura” (veja aqui).

A reportagem esteve em Autazes no início de março para ouvir os indígenas de Soares e de Urucurituba, comunidades que serão diretamente afetadas pela exploração de silvinita. Em Soares será instalada a planta industrial, com perfurações de poços para a exploração do minério. A reserva do minério fica a alguns minutos do centro da comunidade, onde vivem mais de 100 famílias. O porto de escoamento do minério está previsto para ser construído em Urucurituba, à margem do rio Madeira. Segundo o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do Projeto Autazes, como foi denominado, a produção anual será de 8 milhões de toneladas por ano de minério,

Conforme revelou a Amazônia Real, as comunidades Soares e Urucurituba pedem há quase 20 anos a demarcação do território pela Funai, com envio de documentos em 2003, 2005 e 2018. Em 2018, as lideranças fizeram uma autodemarcação com o nome Terra Indígena Soares/Urucurituba.

Jair Ezogue dos Santos, que também foi ouvido pela juíza Jaiza Fraxe quando ela esteve na comunidade, durante inspeção judicial no dia 29 de março, vendeu seu terreno por R$ 110 mil, após uma intensa pressão de representantes da Potássio do Brasil, como relatou à reportagem. Constrangido, Jair cedeu ao assédio da empresa, mas se arrependeu.

“Até agora não me conformo. Eu estava tão bem. Meu trabalho era aqui perto. Eu tinha umas casas de farinha, tinha roçado, tinha curral bom, cercado bom. Ainda bem que meu pai tinha esse pedaço de terra e vim para cá”, afirmou, referindo-se ao pequeno terreno onde vive agora com sua esposa e os filhos na comunidade central de Soares.

Ele disse que, mesmo com os R$ 110 mil oferecidos pela empresa, demorou para encontrar uma nova área para trabalhar e manter seus roçados. E o que encontrou, fica muito distante da comunidade Soares.

“Fica lá pro rio Preto, muito acima. Está longe e eu só tenho despesa, um prejuízo danado. Só dá para ir lá quando o rio enche”, disse. A reportagem apurou que Jair encontra-se atualmente na área do rio Preto com a família, aproveitando o período da cheia no Amazonas.


O tuxaua de Soares, Sergio Freitas do Nascimento / Bruno Kelly/Amazônia Real

Informado sobre a decisão judicial pela reportagem, o tuxaua da aldeia Soares, Sérgio Nascimento de Freitas, disse que ela é importante, mas salientou que a medida deve ser aplicada a todos os terrenos adquiridos na comunidade pela empresa.

“Acho justo que os terrenos sejam devolvidos, mas espero que seja para toda a comunidade. É a nossa luta coletiva. Não foi só o seu Jair que vendeu. Outras pessoas que ficam nas cabeceiras também foram pressionadas a vender e hoje sabemos que elas não estão bem”, disse o tuxaua.

Milton Ribeiro, outro indígena Mura pressionado pela Potássio do Brasil, recebeu proposta de vender por R$ 120 mil, mas recusou. Seu terreno, contudo, foi perfurado irregularmente pela empresa, sem que ele soubesse. Milton vive com a mulher e dois filhos adolescentes em uma área à margem do Lago do Soares, cercada por terrenos adquiridos pela Potássio do Brasil.

“Quando passaram aqui querendo comprar só falaram coisa boa. Disseram que iria ter escola boa, hospital. Um deles chegou para mim e disse: ‘você não gostaria de ver seu filho estudando numa escola de primeira qualidade’? Eu disse: ‘mas aqui tem escola, é muito boa também’. Ficavam assim, o tempo todo pressionando para me convencer a vender. Teve um momento que ficamos desesperados. Minha mulher chorou, meus filhos também”, lembra ele.

Ainda assim, disse Milton, outros moradores de Soares cederam às tentativas da empresa e aceitaram vender. “Compraram (terrenos) do lado, de trás, da frente. Fiquei rodeado. Mesmo não tendo vendido, fico preocupado. Eles (Potássio do Brasil) já estão ocupando aqui mesmo sem trabalhar, imagine quando estiverem trabalhando”.

Ele contou que voadeiras grandes da empresa circulam pelas águas calmas do lago, incomodando e perturbando seu trabalho e sua rotina. “Eles ficam sempre visitando. Encostam na minha propriedade, sem o meu consentimento”.


Milton Ribeiro de Menezes mostra a perfuração feita pela Potássio do Brasil sem seu consentimento / Bruno Kelly/Amazônia Real

Na petição enviada à Justiça Federal, o Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas diz que “tomou conhecimento por informações locais de indígenas Mura, por constatação direta na inspeção, bem como por registros em vídeos gravados pela Justiça Federal e pelo MPF, de que a empresa Potássio, ou seus interlocutores efetuou pressão e coação sobre indígenas e ribeirinhos na região, de modo a ‘venderem’ seus terrenos/posses e territórios de uso tradicional para a empresa”.

Segundo o MPF, “alguns deles foram privados do uso destes territórios tradicionais, dos seus roçados, com prejuízo sobre a soberania e segurança alimentar durante a pandemia em andamento, fato gravíssimo”.

No Cartório de Registro em Autazes, o MPF descobriu não haver qualquer registro de negociação, o que levou a crer que tais “acordos” ou “contratos” feitos pela empresa com os moradores locais não possuem registro imobiliário. Segundo a investigação, ainda não se sabe se há documentos impressos ou contratos firmando o “acordo” entre ribeirinhos, indígenas e a empresa Potássio do Brasil, ou “simplesmente se foi objeto de tratativa verbal tal negócio”.

O MPF também considerou as placas espalhadas na região e ao redor da aldeia Soares uma “violação pela empresa Potássio do Brasil aos requisitos necessários para a existência de uma consulta prévia, livre, informada e de boa-fé, conforme determina a Convenção nº 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho)”.

Empresa está contratando

Apesar da decisão judicial, a Potássio do Brasil continua seu planejamento de avançar na área do empreendimento do Projeto Autazes. Nesta semana, a empresa abriu um edital para contratação de um profissional com formação em assistência social, comunicação social, antropologia ou magistério “para atuar em atividades de relações comunitárias indígenas e populações tradicionais”.

De acordo com o edital, o profissional deve ter “experiência em atuação em canais de relacionamento entre povos tradicionais e órgãos oficiais, empresas, organizações e na sociedade em geral”. Curiosamente, o edital da Potássio do Brasil se apropria de conceitos do Bem Viver, uma filosofia inspirada no saber e no modo de vida dos povos originários andinos e amazônicos, e que vem sendo discutida e implementada nas comunidades indígenas como crítica e reação à exploração dos recursos naturais e devastação da natureza promovida pela economia de mercado e pelo capitalismo.

Sérgio Freitas Nascimento mostrou-se preocupado com o edital da Potássio do Brasil. Para ele, a empresa está atropelando as decisões, já que as pré-consultas nas comunidades indígenas Mura não foram finalizadas. A previsão é que elam recomecem em junho. “Se já estão contratando é que pode ser um mal sinal de que eles podem entrar a qualquer momento. Já estão se preparando para explorar”, disse o tuxaua à reportagem.

“Queremos ser ouvidos nas pré-consultas. Nossa comunidade será a mais prejudicada se essa mineração acontecer. Estamos lutando, fazendo parcerias com as aldeias, levando nossa dor e preocupação. Mostrando a nossa angústia”, disse ele.

AGU quer tirar processo de Jaiza Fraxe

O processo judicial envolvendo a Potássio do Brasil tramita desde 2016, quando o MPF entrou com uma ação civil pública. No curso da judicialização, alguns acordos foram firmados, como por exemplo a Potássio do Brasil aceitar arcar com a logística das pré-consultas realizadas nas comunidades Mura de Autazes e de Careiro de Várzea.

Em 2019, os Mura finalizaram o Protocolo de Consulta para servir de parâmetro para a análise do empreendimento. A incidência da exploração minerária sobre a Terra Indigena Jauary e Paracuuba, ambas demarcadas e primeiro objeto de judicialização do MPF, também foi retirada pela empresa, segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM). Isso fez com que prevalecesse uma falsa retórica de que terras indígenas não serão afetadas pela atividade minerária, já que Soares e Urucurituba sequer foram consideradas território originário Mura pelo Projeto Autazes.


A juíza Jaiza Fraxe (de óculos), durante inspeção na comunidade Soares / Reprodução TV Globo

Mas o interesse para que o empreendimento seja destravado não está apenas na pressão aos indígenas Mura e na perspectiva do progresso para a região baseado na exploração do minério. Defensor fervoroso da mineração, o governo de Jair Bolsonaro (PL) vem atuando ao lado da Potássio do Brasil no campo jurídico como “auxiliar da ré”, quando entrou com petições pedindo o julgamento e a liberação do empreendimento.

A mais nova pressão é a que ocorreu no dia 4 de maio, quando a Advocacia Geral da União (AGU) entrou com um agravo de instrumento pedindo que Tribunal Regional Federal da 1ª Região– TRF1, em tutela de urgência, declare a 1ª Vara Federal do Amazonas, onde Jaiza Fraxe é titular, incompetente para julgar. A AGU quer que o processo passe para a 7ª Vara Federal e pede a suspensão cautelar da decisão agravada, “de modo que o licenciamento prossiga junto ao Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão estadual licenciador, até decisão do juízo competente ou até nova decisão do Tribunal sobre o tema”. A AGU também reitera o pedido para que o licenciamento não seja de competência do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

O Ipaam é o órgão de fiscalização e licenciador do governo do Amazonas. Em 2015, liberou o licenciamento do empreendimento. Posteriormente, a medida foi suspensa por decisão de Jaiza Fraxe. O órgão não esconde que é favorável ao Projeto Autazes. Após visita realizada no dia 29 de março à comunidade, junto com a inspeção judicial, publicou postagem em sua página no Instagram dando como certo o Projeto.

“Hoje, o Ipaam e a PGE (Procuradoria Geral do Estado), juntamente com outros órgãos, participaram da primeira inspeção judicial promovida pela juíza Jaiza Fraxe na futura área de instalação da mina de exploração de potássio”, diz o texto do post.

Procurada, a AGU disse que pediu o reconhecimento da 7ª Vara Federal da Seção Judiciária do Amazonas como competente para processar e julgar a ação, “uma vez que se trata da Vara Federal Especializada em ações que versam sobre Direito Ambiental, conforme está previsto nas regras de competência que determinam que todas as ações sobre Direito Ambiental da Seção Judiciária do Amazonas devem ser enviadas para a 7ª Vara Federal”. A AGU não comentou sobre o fato do processo tramitar na 1ª Vara Federal porque foi ingressado pelo 5.º Ofício, que atua junto a populações indígenas e comunidades tradicionais do MPF no Amazonas e o objeto da ação ser referente aos impactos da mineradora junto ao território do povo Mura.

A AGU disse que atua em favor do empreendimento “por se tratar de um projeto prioritário para a ampliação da produção de mineral estratégico para o país.”

O que diz a Potássio do Brasil

A Potássio do Brasil é subsidiária da Brazil Potash, de propriedade do banco Forbes & Manhattan, do Canadá. No Amazonas, ela tem sócios de empresários locais.

Procurada, a empresa disse que tomou conhecimento da decisão da Justiça Federal com “surpresa e preocupação”. Segundo a empresa, a propriedade não se encontra dentro de terra indígena e “foi adquirida de boa-fé e dentro dos parâmetros da lei e do mercado imobiliário do município de Autazes”, diz trecho da nota da empresa

Para a empresa, “a decisão feriu o devido processo legal, a segurança jurídica e o direito ao contraditório e a ampla defesa da Potássio do Brasil, pois foi infundada e sem oportunizar qualquer defesa de suas razões.”


Vista aérea da comunidade Urucurituba, do povo Mura, às margens do rio Madeira / Bruno Kelly/Amazônia Real

“A Potássio do Brasil sempre agiu com boa-fé em todo o trâmite processual, jamais deixou de cumprir qualquer decisão ou requerimento, contudo, a decisão em debate ofende direitos, princípios fundamentais e a instrução normativa da Funai, razão pela qual a empresa manejou Embargos Declaratórios, com o fito de esclarecer os pontos necessários para viabilizar o cumprimento da decisão”, diz a nota.

Conforme a Potássio do Brasil, “todas as aquisições de propriedades feitas foram embasadas por laudos técnicos de avaliação, elaborados por empresas independentes especializadas no ramo imobiliário, e realizadas em terra não indígena. A Potássio do Brasil atendendo aos critérios da lei, consultou a própria Funai, que concedeu o Termo de Referência em relação ao Estudo de Componente Indígena, considerando as terras indígenas existentes de Jauary e Paracuhuba”, diz trecho.

A Potássio do Brasil afirma que os Mura “têm suas terras a cerca de 8 km de distância das futuras instalações industriais do Projeto Potássio Autazes” e que “foi ouvido durante a elaboração do Estudo de Componente Indígena e está em procedimento de Consulta nos termos previstos pela OIT 169”. Também afirmou que o Projeto Autazes foi apresentado aos Mura em assembleia realizada em Urucurituba, em abril. 

A empresa não comentou o fato de que a decisão judicial refere-se à comunidade Soares e ‘vizinhanças’, onde pretende instalar a reserva do minério.

Sobre o Estudo de Componente Indígena,  a empresa afirmou que já elaborou o documento, mas que ainda não foi entregue à Funai para análise, e que o conteúdo ainda não pode ser compartilhado com terceiros. A empresa não comentou sobre o edital desta semana. Apenas disse para a reportagem ler o conteúdo do edital no site. A Funai, como nas vezes anteriores, não respondeu aos pedidos de informações da Amazônia Real.