DIREITO À MORADIA

Opinião | Por que o Despejo Zero é urgente nas cidades e no campo?

Meio milhão de pessoas podem ser despejadas a partir de junho no Brasil

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Criança da comunidade Nova Canaã, em Peabiru (PR), contra o despejo - Juliana Barbosa MST-PR

Despejo Zero é um chamado de urgência para um problema grave no Brasil: morar, trabalhar, se alimentar e viver é um privilégio de classe. As condições de vida pioraram drasticamente para os mais pobres.

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 Pesquisa divulgada em 2021 aponta que nos últimos 12 meses, entre os 20% mais pobres, 75% disse que havia faltado dinheiro para a compra de alimentos, segundo o Instituto Gallup; e a projeção para inflação de alimentos para 2022, de acordo com MB Associados, deve chegar a 12%. Em relação à moradia, cerca de 6 milhões de pessoas estão sem teto, pois o déficit habitacional está em alta, como aponta o Estudo da Fundação João Pinheiro.

Na Constituição, a vida está acima da propriedade privada e não o contrário, mas em tempos de destruição da nossa frágil democracia, a lei magna está sendo retalhada, principalmente nos capítulos que dizem respeito aos direitos humanos básicos que estão ali descritos, mas pouco assegurados na vida real. 

Leia mais: Em um mês acaba a suspensão de remoções no Brasil e 132 mil famílias têm despejo marcado 

Mas o que de fato pode assegurar direitos? Cada vez mais fica evidente que só a luta popular e a pressão da sociedade são capazes de colocar a vida acima de qualquer outro interesse, e é por isso que precisamos levantar com força o direito à comida, à moradia, à terra e ao trabalho. 

Despejo Zero é uma campanha articulada por movimentos populares urbanos e rurais contra as remoções e reintegrações de posse que foi lançada em junho de 2020, e durante a pandemia obteve conquistas importantes: a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 828  do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendeu despejos urbanos e rurais durante a pandemia e por período determinado, e a Lei do Despejo Zero , apesar da exclusão dos rurais por jogada inescrupulosa da Frente Parlamentar da Agricultura (FPA).

Além disso através da mobilização da campanha, diversas leis do Despejo Zero foram aprovadas nos estados, tais como o Rio Grande do Norte e o Pernambuco.

Outro apoio importante para a argumentação à Campanha Despejo Zero vem da Resolução nº 10 do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e a Recomendação nº 90 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Mas agora estamos diante de mais uma grave ameaça: pelo menos 500 mil pessoas ficarão sem terra e sem teto a partir de 1º de julho, o que agrava a alarmante situação social do país que conta atualmente com cerca de 500 mil  pessoas vivendo em situação de rua, segundo o Movimento Nacional da População de Rua (este número é uma estimativa empírica, já que o último dado oficial é do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA  -, que indicava 221.869 pessoas em situação de rua, em março de 2020, o que se agravou durante a pandemia).

A população de rua sofre com a políticas sociais específicas

A população de rua historicamente sofre com o descaso da falta de políticas sociais específicas e com a violência de Estado, que é uma constante. 

:: Barroso mantém até junho de 2022 a suspensão de despejos no país ::

No dia 30 de junho de 2022 vence o prazo de vigência da ADPF 828 do STF e a partir desta data os despejos devem ocorrer num efeito avalanche, já que vários pedidos de reintegração de posse foram indeferidos pela existência de tal medida da corte suprema. Segundo a Campanha Despejo zero, pelo menos 14,6 mil pessoas envolvidas em processos de reintegração de posse foram protegidas diretamente pela ADPF 828. 

Importante lembrar que a ADPF 828 foi protocolada inicialmente em maio de 2021 pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), seguido de várias entidades da Campanha Despejo Zero que ingressaram como amicus curie.

Sensível ao quadro sanitário no país, o STF determinou a suspensão dos despejos urbanos e rurais até 03 de dezembro, e com forte mobilização da sociedade, esse prazo foi prorrogado até 31 de março de 2022; houve nova mobilização, que acabou sensibilizando o STF a estender até 30 de junho, o período de vigência da ADPF. 

O argumento principal para a prorrogação da ADPF 828, que foi adotado até então pelo STF, é o da existência da pandemia da covid-19 e seus impactos sanitários aos mais vulneráveis da sociedade. O STF se apoiou na vigência da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) que estabeleceu parâmetros para adoção de medidas diante da gravidade da pandemia. No entanto, no dia 22 de maio, o governo Bolsonaro anunciou o fim da Emergência Sanitária.

Mas a pandemia não acabou. Os casos de infecção continuam elevados e, apesar da diminuição no número de mortos graças a proteção das vacinas, ainda temos uma média semanal alta de mortos, o que é muito preocupante e jamais pode ser normalizado. 

Além do aspecto sanitário, é necessário levar em consideração os impactos sociais e econômicos que a pandemia tem deixado, principalmente na vida dos mais pobres, somado a um agravamento das condições de vida devido a outros fatores como o desemprego, aumento dos preços de alimentos, dos aluguéis, do gás de cozinha e dos combustíveis. Por isso é fundamental adotar um período de transição para o pós pandemia, e protelar ao máximo a adoção de medidas extremas de reintegração de posse, pois sabemos, os despejos são desumanos, a qualquer tempo. 

Quem pode evitar o despejo de meio milhão de pessoas em junho?

Apesar da vigência da ADPF 828 até 30 de junho, verdade seja dita, os despejos estão acontecendo. Isso ocorre por diversos fatores isolados ou combinados: despejos feitos por força policial ou miliciana, de forma ilegal, sem ordem judicial; reintegrações de posse expedidas por juízes de primeira ou segunda instância que ignoram a ADPF 828 (e muitas vezes esses despejos ocorrem tão rapidamente que não dá tempo de recurso dos advogados populares, sobressaindo nessas situações, o despejo como fato consumado); e por fim, ocupações ocorridas depois de 20 de março de 2020, período determinado pelo STF como marco legal de proteção prioritária da ADPF 828.

É importante lembrar que ocupações feitas depois desta data, não podem ser despejadas de qualquer jeito, pois devem ser observadas as condicionantes que indicam como a excepcionalidade da reintegração de posse deve ocorrer, envolvendo audiência prévia de conciliação, respeito aos direitos humanos, dentre outros fatores. 

Portanto, uma situação de despejo que não se interrompeu durante a pandemia, pode ser agravada com o fim da vigência da ADPF 828, e se somarmos as 500 mil pessoas que podem ser despejadas, às 500 mil pessoas que já vivem em situação de rua, podemos ter 1 milhão de brasileiros e brasileiras em situação de extrema gravidade e risco. 

Podemos ter 1 milhão de brasileiros e brasileiras em situação de extrema gravidade e risco

Neste momento, quem mais pode evitar essa situação são os ministros do STF, pois a decisão mais imediata que pode evitar o despejo em massa é a prorrogação da ADPF 828. Além do Supremo, existe uma iniciativa de um novo projeto da lei do despejo zero, já que a Lei do Despejo Zero anterior venceu em 31 de dezembro de 2021, mas vale lembrar, que o processo de tramitação de um projeto de lei é lento, e deve ser aprovado pela Câmara, pelo Senado e sancionado pelo presidente. 

Seguimos mobilizados nos nossos acampamentos, assentamentos da reforma agrária, junto com os movimentos de luta por moradia popular e suas diversas ocupações, para que seja evitado o despejo das nossas famílias, que significará mais fome e violência. 

Sabemos que a luta por Despejo Zero tem caráter de resistência, mas para além disso, exigimos que seja feita uma ampla reforma agrária e reforma urbana no país, para suprir o direito humano essencial à terra, moradia, alimentação e trabalho. 

 

*Kelli Mafort é da Coordenação Nacional do MST

 

**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante