Entrevista

Sheila de Carvalho: "é necessário praticar o antirracismo nas urnas"

Coalizão Negra por Direitos lança iniciativa de apoio a mais de 50 candidaturas de pessoas pretas aos legislativos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Ouça o áudio:

Quilombo nos Parlamentos apoia candidaturas de pessoas ligadas ao movimento negro - Agência Brasil

Com objetivo de impulsionar candidaturas de pessoas pretas, a Coalizão Negra por Direitos lançou a iniciativa Quilombo nos Parlamentos. O projeto apoia mais de 50 candidatas e candidatos que pretendem concorrer a cargos no Congresso Nacional e em Assembleias Legislativas de diversos estados. Para a advogada Sheila de Carvalho, integrante da Coalizão, "o Quilombo nos Parlamentos vem como um fruto de acúmulo de que precisamos potencializar as lideranças criadas no movimento negro".

A advogada, que é diretora do Instituto de Referência Negra Peregum, afirma que essas lideranças, que defendem uma agenda do movimento negro, devem ocupar espaços tradicionais. Em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, ela falou sobre a iniciativa e sobre a importância da representatividade para correção de um processo histórico que reforça desigualdades. 

"Nós vivemos um processo histórico que nós chamamos de falsa abolição ou abolição inconclusa. O que isso representa? Que no Brasil nós ainda não rompemos os traços coloniais que sustentaram a escravidão. A Escravidão sustenta as desigualdades brasileiras até hoje", pontua.

A iniciativa apoia mais de 20 pré-candidaturas à Câmara dos Deputados e outras dezenas a Assembleias Legislativas do Distrito Federal, de Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Goiás, Minas Gerais, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins. Entre as legendas representadas estão PT, PSOL, PCdoB, PSB, PDT e Rede. 

Leia abaixo a íntegra da entrevista com Sheila de Carvalho. 

Brasil de Fato: Como surgiu a iniciativa Quilombo nos Parlamentos e o que ela propõe?

Sheila de Carvalho: A iniciativa Quilombo dos Parlamentos vem com a própria construção histórica da Coalizão Negra por Direitos. A Coalizão nasce em 2019 como uma ação organizada do movimento negro de enfrentamento ao avanço do bolsonarismo e tudo que representa. O que nós quisemos propor em 2019 foi a articulação do movimento negro para incidência política, para ação política dentro das instituições democráticas. Como se tivéssemos um mandato sem ter um mandato.

A Coalizão Negra nasce com esse papel, esse ânimo de ocupar as institucionalidades trazendo as vozes do movimento negro para serem ouvidas pelas instituições democráticas. Esse tem sido o foco da Coalizão Negra por Direitos. Durante esses três últimos anos temos feito aliados, construções importantes. Os nossos espaços de denúncia não são somente as instituições democráticas nacionais, mas também atuamos em fóruns internacionais em instâncias internacionais.

Atuamos em instâncias comunitárias. Não tem como esquecer o trabalho que a Coalizão Negra fez na campanha Tem Gente com Fome, fazendo também um atendimento direto às nossas bases, conforme a urgência da fome se impunha antes da urgência das nossas lutas.

Tudo o que construímos foi para que conseguíssemos ter uma incidência efetiva das nossas agendas dentro desses espaços, especialmente o poder legislativo. O Quilombo nos Parlamentos vem como um fruto de acúmulo de que precisamos potencializar as lideranças criadas no movimento negro, lideranças que têm um histórico e trajetória de luta do movimento negro, que defendem uma agenda do movimento negro, para ocuparem espaços tradicionais.

Quando estamos falando de aumento da representatividade na política, não é somente ter uma presença negra dentro da política. Precisamos também falar em representatividade da agenda. Temos uma agenda de luta que quer nos salvar. Mais do que nos salvar da violência cotidiana que vivemos, temos uma agenda de luta que busca um bem viver, uma sociedade mais justa para todas e todos. O Quilombo nos Parlamentos surge com essa finalidade, de buscar essa vida melhor.

É uma iniciativa que move diversos partidos, basicamente são sete partidos que estão dentro do escopo no qual as nossas candidaturas estão sendo lançadas para ocupar as institucionalidades. Especialmente aqueles partidos que recentemente fizeram uma sinalização de apoio à agenda política da coalizão.

:: Na véspera do dia da abolição inconclusa, Coalizão Negra pede que STF reconheça genocídio negro ::

Há duas semanas nós ingressamos com uma ADPF pelas vidas negras no Supremo Tribunal Federal. Essa ação, a partir da provocação da Coalizão Negra por Direitos, foi patrocinada por esses partidos, que hoje lançam as candidaturas que são candidaturas de luta, cunhada no movimento negro brasileiro.

Como explicar a urgência dessa representatividade para toda a população?

Nós vivemos um processo histórico que chamamos de falsa abolição ou abolição inconclusa. O que isso representa? Que no Brasil nós ainda não rompemos os traços coloniais que sustentaram a escravidão. A escravidão sustenta as desigualdades brasileiras até hoje. Até hoje temos dificuldade de reconhecimento pleno da cidadania das pessoas negras.

Quando falamos da necessidade de que negras e negros ocupem a política, espaços institucionais, o parlamento, o executivo, estamos falando de um processo de reconhecimento pleno da cidadania dessas pessoas. O reconhecimento de que elas são sujeitos que podem votar e ser votados. O reconhecimento de que nós podemos nos representar. Nós não precisamos de intermediários para nos representar dentro desses espaços de poder. Atestar que a maior parte da população brasileira, que é a população negra, pode estar representada dentro desses espaços.

Para aqueles que se colocam à favor da luta antirracista, é necessário praticar o antirracismo também nas urnas. Esse é o nosso grande desafio para 2022. Há um momento de aumento da representatividade política, que vem a partir de 2018, que é importante salientar porque vem através do assassinato brutal de uma vereadora negra. Somos todos sementes de Marielle Franco. Marielle Franco está presente e dentro da nossa essência, dentro desse evento, dentro do lançamento desse projeto.

Isso surge como uma resposta à barbaridade que ela viveu e à barbaridade que é sempre a resposta para quando negros e negras buscam alcançar esses espaços. É sempre uma resposta violenta, em diversas dimensões de violência. Infelizmente, a Marielle viveu a mais grave de todas. Estamos nesse momento de superar essa violência. Estamos em um momento em que podemos reverter esse cenário de ausência de representatividade e é muito importante o engajamento de todas e todos.

Olhar para quem estou votando para o congresso, para quem estou votando para a assembleia. A que agenda essa pessoa pertence? Qual é o histórico de luta dessas pessoas? Esse é o desafio que queremos fazer. Porque não vamos conseguir transformar a sociedade ou que a nossa agenda prioritária por sobrevivência e para o bem viver seja incorporada pelo poder público enquanto não estivermos dentro desse poder público.

Sua agenda é violência policial? Pegue candidatos e candidatas que colocam essa agenda no centro. Sua agenda principal é o enfrentamento à fome? Pegue candidatos comprometidos com essa agenda, que lhe representem, que possam trazer mais cor para o parlamento. Essa é a iniciativa, que possamos colorir, de certa forma "aquilombar", os parlamentos do país. 

A representatividade das pessoas pretas na política se justifica também pelo fato de ser esse público o grande alvo das desigualdades no país?

As pessoas que são alvos prioritários da violência têm que ser também prioritárias na construção de soluções para essa violência. Não tem como fazer política pública se não vivermos a experiência que essa política pública vai afetar.

Não tem como votar em alguém que tem agenda prioritária nos transportes públicos, mas que nunca andou de transporte público. Alguém que fale de saúde pública e não utiliza o SUS. Alguém que fale de violência da polícia, que não mora em uma favela, que não é alvo prioritário da violência policial.

Precisamos trazer pessoas que têm dentro de suas vivências e militância o potencial de contribuir para soluções das mazelas que temos como prioritárias na sociedade. O projeto também impacta nisso, levar para o lugar da decisão e dar o poder da caneta àquele que já passou por essas experiências de violência.

Que próximos passos devem ser colocados em prática a partir de agora?

Nós estamos em um lugar em que precisamos pensar um projeto de futuro para esse país. Nós não temos um projeto de futuro pensado com as contribuições do movimento negro, com o olhar das pessoas negras, que estão sendo constantemente excluídas desse pensar.

Vamos olhar o que estamos vivendo hoje na Colômbia. A Colômbia pode ter uma vice-presidenta mulher negra, quilombola, ex-empregada doméstica, a Francia Márquez. Podemos construir mais. Não podemos viver em um Brasil que tenha 27 governadores e só uma é uma mulher. Não podemos aceitar que temos a maior parte das prefeituras desse país dominadas por homens brancos.

Estamos vivendo um processo em que podemos ir além. Os parlamentos são um começo, mas precisamos pensar no poder legislativo e precisamos pensar no poder judiciário, porque é esse sistema de justiça que legitima a violência contra os nossos corpos todos os dias.

Temos que pensar sim no poder executivo. É hora de sonhar um novo Brasil. Um Brasil que consigamos fazer para todas e todos e por todas e todos. Esse é o nosso desafio, porque enquanto houver racismo não haverá democracia.

Se temos uma democracia só construída por brancos, feita por brancos, executada por brancos, isso não é democracia. Precisamos entender o papel que o racismo tem na nossa sociedade e lutar para que tenhamos uma representatividade de perfis e de luta dentro do poder público. 

Edição: Felipe Mendes